Smart glasses. Os óculos do futuro que violam a privacidade

Smart glasses. Os óculos do futuro que violam a privacidade


Facebook e Ray-Ban lançam óculos que fotografam e filmam para ajudar a “viver no momento”, mas interferem com a privacidade e impõem vídeo-vigilância a terceiros.


E se pudesse descartar o seu smartphone e conseguisse fazer praticamente tudo com uma armação de óculos de sol? Parece uma ideia descabida à partida, que há umas décadas só podia existir em filmes de espiões, mas é isso a que se propõem os novos óculos da Ray-Ban, em parceria com o Facebook.  

Os Ray-Ban Stories Smart Glasses, no icónico modelo Wayfarer, são a “primeira geração de óculos inteligentes [smartglasses, em inglês]”, equipados com duas câmaras e microfone integrado, descreve a empresa fundada por Mark Zuckerberg.

Este par de óculos de sol permite tirar fotografias, filmar vídeos até 30 segundos – com um botão de captura ou comandos de voz do Facebook Assistant (assistente virtual da rede social) –, partilhar as imagens nas redes sociais, atender chamadas e ouvir música ou podcasts. A ideia é libertar as pessoas dos telemóveis e ajudá-las a “viver no momento”. 

“Os Ray-ban Stories são um passo importante em direção a um futuro em que os telemóveis deixam de ser uma parte central das nossas vidas. E deixa de ser preciso escolher entre interagir com um aparelho ou com o mundo em redor”, explicou o presidente executivo do Facebook, num vídeo de apresentação. Para já só estarão à venda nos Estados Unidos, Austrália, Canadá, Irlanda, Itália e Reino Unido, por 299 dólares (329 euros na Europa).

Apesar de possibilitarem o upload de conteúdos em todas as plataformas do Facebook e também no Twitter, TikTok, Snapchat, e companhia, prometem ser desenhados “para a privacidade”. Isto porque acende-se uma luz  LED na haste dos óculos sempre que se está a filmar ou fotografar. “Isto é mais do que os smartphones fazem”, reforça Zuckerberg.

O conceito de smart glasses não é novo. Os Eyewear, da Huawei, lançados no ano passado funcionam como uma alternativa a auscultadores mas não tiram fotografias. Em 2014, também a Google lançou óculos com uma câmara incorporada, mas o projeto teve que ser abandonado porque levantava preocupações ao nível da segurança e da privacidade.

As luzes LED do gadget do Facebook pretendem evitar dúvidas sobre privacidade e a empresa também garante que as fotografias e vídeos que ficam guardados no aparelho são todos encriptados. Ainda assim, isto não invalida que sejam recolhidas imagens no espaço público sem o consentimento de terceiros e que posteriormente estas imagens sejam publicadas no universo online. E este não é um problema isolado dos óculos inteligentes. 

“As câmaras dos computadores pessoais e telemóveis têm levantado muitos problemas de privacidade e segurança, desde pessoas que as ligam inadvertidamente e gravam o que se passa à sua frente, por exemplo no contexto de uma chamada Zoom, até ao de cibercriminosos que as ativam remotamente para espiar e por vezes posteriormente chantagear as pessoas vigiadas. Há ainda casos de empresas e escolas que usam deliberadamente as câmaras para vigiarem os seus funcionários/alunos”, alerta Miguel Correia do Instituto Superior Técnico. 

No entanto, no caso dos óculos como os da Facebook e Ray-Ban, mas também já há mais tempo da Google e outros, “o problema é acrescido pois as câmaras são usadas em lugares públicos e estão dirigidas para a frente. Assim, estes óculos podem tornar-se mais um mecanismo de videovigilância e de atividade criminal associada: espionagem, por exemplo para roubo de propriedade intelectual, chantagem, bullying, etc.”, acrescenta o especialista em cibersegurança.

Miguel Correia considera que a solução do Facebook em acionar a lâmpada LED quando a câmara é ligada é a opção certa. “Assim, quem estiver nas imediações — e bem atento — pode concluir que está a ser filmado”. Contudo, noutros contextos, como por exemplo em alguns computadores portáteis, “essa luz é ativada por software, o que pode permitir a cibercriminosos desativá-la” mas no caso dos óculos Ray-Ban, “esse LED é ativado automaticamente, por hardware, de modo a ser impossível de desligar através de um ciberataque”. Ainda assim, o professor catedrático do Técnico, reconhece que “um dono mal intencionado pode com alguma facilidade tapar ou desligar esse LED”.

Para já, não há previsão de que estes óculos venham a ser comercializados em Portugal, também porque os smart glasses levantam questões em termos legais, sob o ponto de vista da privacidade. “É interessante perceber se podem ser usados no contexto legal europeu atual, no qual o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) cria grandes restrições à recolha e processamento de dados pessoais, como muitas vezes será o caso de imagens recolhidas por esse tipo de óculos, uma vez que as imagens de pessoas são sem dúvida um dado pessoal”, atenta Miguel Correia.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) em Portugal tem sido particularmente restritiva em relação à instalação de câmaras de vigilância na via pública, mesmo em casos críticos como os do Campo Grande em Lisboa, em frente à Universidade de Lisboa, onde foi morto um aluno, recorda o professor. “Tanto quanto sei, a CNPD não permitiu a instalação de câmaras no local, logo deve encarar de forma negativa o uso indiscriminado de dispositivos com câmaras”, comenta.

Em declarações ao i, a Deco Proteste mostrou-se igualmente preocupada com os perigos que este tipo de óculos podem representar.

“De facto os Smart Glasses do Facebook, Ray Ban, Xiomi, Huawei e de outros que irão inevitavelmente aparecer, levantam algumas questões relacionadas com a privacidade, uma vez que permitem ao utilizador tirar fotos e gravar pequenos vídeos, sem que as pessoas fotografadas ou filmadas se apercebam facilmente”, afirma a organização portuguesa de defesa dos consumidores.

“Apesar de o Facebook afirmar que a pequena luz LED que os óculos possuem  permite às pessoas aperceberem-se que o utilizador dos óculos está a fotografar ou filmar, a verdade é que esse argumento não é convincente”, acusa a Deco.

Por essa razão, as comissões nacionais de proteção de dados da Irlanda e de outros países já questionaram formalmente o Facebook, uma vez que consideraram que, ao contrário dos smartphones, em que os “alvos” das fotos se apercebem minimamente de que estão a ser fotografados ou filmados, a utilização dos smart glasses não permite a terceiros aperceberem-se disso, podendo assim por em causa a proteção da sua intimidade e privacidade.

“Por enquanto nenhum destes modelos chegou a Portugal, mas é inevitável. Por isso seria bom saber qual a posição da nossa CNPD sobre o uso destes gadgets, pois preocupa-nos a existência de produtos, como estes, que não permitem a terceiros aperceberem-se  que estão a ser alvos de gravações ou fotos contra a sua vontade, violando assim grosseiramente a sua privacidade”diz a Deco. O i contactou o CNPD, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.