Peter Bogdanovich (1939-2021). Uma paixão imoderada pelo cinema

Peter Bogdanovich (1939-2021). Uma paixão imoderada pelo cinema


Morreu na passada quinta-feira, aos 82 anos, o realizador de A Última Sessão (The Last Picture Show), um dos personagens mais ilustres de Hollywood na década de 1970, e que nas duas subsequentes se tornaria uma das figuras mais ostracizadas naquela cidade.


Chamam-lhe La La Land, mas a verdade é que Hollywood não tem grande paciência para os caprichos e devaneios dos sonhadores. Não oferece assim tantas hipóteses, e consegue ser bastante cruel com aqueles que, em nome da arte, acabam por espantar as receitas, demorando-se a afinar os instrumentos e a perspectiva, que, no fim de contas, redunda sempre no mesmo: os estúdios querem a garantia dos seus investimentos. Tudo o resto são balelas. E a fantasia, todas essas artimanhas com que a nostalgia vai enovelando as atribulações dos dias passados, ocorrem entre parêntesis, na sombra de um negócio impiedoso. Um bom exemplo é Peter Bogdanovich, um dos grandes nomes do cinema norte-americano do século passado, que morreu na quinta-feira, aos 82 anos, e que depois de ter arrombado as portas da meca do cinema nos anos 1970, com a sua entrada em cena a ser comparada à de Orson Welles, tornando-se um dos mais celebrados realizadores da nova geração, nomeadamente pelo filme A Última Sessão (The Last Picture Show), nos duas décadas seguintes, como notou o obituário do The New York Times, tornar-se-ia uma das figuras mais ostracizadas da indústria.

Bogdanovich não era só mais outro desses agentes de viagens que abrem o mapa da imaginação e apontam para lugares onde se está melhor do que neste mundo. Ela trazia um deslumbramento educado na Era de Ouro do cinema, e a sua paixão vinha desde a mais tenra infância, sendo que, dos 12 aos 30 anos, manteve um arquivo com fichas de todos as fitas a que assistiu, avaliando os méritos de cada uma. Quando, por fim, abandonou esse regrado hábito, tinha já cumulado cerca de cinco mil fichas. Se tinha boca, e essa o levou a tantos sítios, isso acontecia porque tinha uma memória prodigiosa, e foi tecendo o próprio fio da sua vida entre as malhas do cinema. Tendo começado como actor de teatro, tendo sido aluno de Stella Adler, foi ainda no período do liceu que se iniciou nas lides da crítica de cinema, e foi primeiro seguindo a pista dos outros que se lhe abriram muitas portas, provando um talento admirável para escrever sobre os seus heróis. Muito antes de começar a realizar, entrevistou os grandes nomes, lendas como Howard Hawks, Alfred Hitchcock, John Ford, John Wayne, Cary Grant, Jean Renoir, e Orson Welles, entre tantos outros. Tinha o talento dos grandes admiradores, e soube fazer deles mestres, amigos, colaboradores futuros. Além de ter sido crítico e programador, cedo desenvolveu as competências necessárias para dominar todos as fases do processo que envolve criar um filme, desde a produção, à escrita de guiões, à montagem e edição.

Ele mesmo acabaria por se tornar um personagem de uma indústria que, antes de enveredar pelo registo preguiçoso das gigantescas produções que atraem turmas de adolescentes para os seus carroceis de efeitos especiais, tinha a sua própria mitologia. Bogdanovich, que foi tantas vezes descrito como um “sacana arrogante”, tinha uma figura distintiva, sempre com um lenço ao pescoço, os óculos de massa e aquele rosto carregado e que denunciava a expressão trágica de um intelectual com origens no Velho Mundo. Os seus pais eram imigrantes recentes nos EUA – o pai era um pintor sérvio e a mãe era membro de uma abastada família judia austríaca. Foi só aos oito anos que ficou a saber o motivo porque a vida familiar sempre foi marcada pela dor, o silêncio e o afastamento. Peter tinha tido um irmão mais velho que morreu ainda bebé depois de um tacho de sopa a escaldar ter-se virado acidentalmente sobre ele.

Enquanto cineasta, além de ter tido a ousadia de seguir os velhos mestres, questionando as fórmulas, ainda que tivesse na nostalgia o seu ponto fraco, foi aclamado, não apenas pela luminosidade ao mesmo tempo terna e dolorosa que conjurava uma época perdida, mas ainda pela sua capacidade de extrair performances cheias de nuance dos actores. Com o segundo filme que fez, A Última Sessão, na altura em que este chegou às salas de cinema, um crítico da Newsweek coroava-o, falando numa “obra-prima”, e acrescentando que se tratava do mais esplendoroso filme feito por um jovem realizador desde Citizen Kane. Mas depois daquela fulgurante década, a reputação de Bogdanovich viria a ser manchada, acumulando fracassos tanto de crítica como de bilheteira, com muitos conflitos com os estúdios pelo meio. Além das atribulações profissionais, os seus enlaces românticos com algumas das actrizes que dirigiu viriam a alimentar as páginas de mexericos e tornou-se alvo de troça junto de outras figuras tão capazes de serem sacanas como ele. “Não é verdade que Hollywood seja um lugar amargo, em que todos rivalizam por motivos de ódio, ganância e inveja”, disse certa vez o realizador Billy Wilder. “Tudo o que é preciso para unir esta esta comunidade é outro flop de Peter Bogdanovich.” 

O certo é que, se aquela não é uma cidade conhecida por estender segundas oportunidades, Bogdanovich soube manter uma postura digna mesmo quando a sua carreira parecia reduzida a cinzas, e veio a ser resgatado mais tarde por realizadores como Noah Baumbach e Wes Anderson, que assumiram a influência dele nos seus filmes, tal como ele fizera em relação aos seus predecessores, e acabou por recuperar algum do prestígio de que gozara. E se isso se deu também atrás da câmara, foi com um papel recorrente na série Os Sopranos, da HBO, interpretando o psiquiatra Elliot Kupferberg, aquele que segue a psiquiatra de Tony Sopra, interpretada por Lorraine Bracco. O seu rosto tornava-se, assim, familiar para as audiências que seguiram o passo decisivo dado por David Chase (criador da série) no sentido de servir-se do pequeno ecrã para prosseguir a aventura cinematográfica numa altura em que as salas de cinemas se tornavam zona de pasto para as manadas de comedores de pipocas.