Galeria 111. Uma tela de afectos com 50 anos


Livros escoados pela porta do cavalo e festa rija quando o ditador morreu. Um precioso livro de autógrafos que traça a história da arte portuguesa do século xx e ainda as moscas que a endiabrada Paula Rego oferecia às crianças da casa, para arruinarem a sopa do jantar com uma pitada de humor. É impossível…


Livros escoados pela porta do cavalo e festa rija quando o ditador morreu. Um precioso livro de autógrafos que traça a história da arte portuguesa do século xx e ainda as moscas que a endiabrada Paula Rego oferecia às crianças da casa, para arruinarem a sopa do jantar com uma pitada de humor. É impossível esquecer episódios como estes durante uma visita à mostra que por estes dias evoca quase todos os artistas que expuseram individualmente na segunda casa do clã. Dizemos quase, porque as paredes deste número não chegam para todos quantos por aqui mostraram à cidade e ao mundo a sua arte e engenho. São 94 os trabalhos que povoam até Março o interior da Galeria 111, menina dos olhos de Manuel de Brito (1928-2005), que a 3 de Fevereiro de 1964 inaugurava uma pequena sala dedicada à comercialização de arte. Um exotismo à época, contíguo à Livraria Escolar Editora, que cresceu para os lados, avançou para o Porto, privou com investidas pidescas e participou de um movimento cultural alimentado por nomes como Amália Rodrigues, Jorge Sampaio, Natália Correia, entre muitos outros. Arlete, viúva do fundador, e Rui, o seu filho mais novo, à frente dos destinos desta morada, recuperam um trajecto que é obra.

 

Um esboço saído do papel. Dos livros técnicos para os quadros

Primeiro, um manuseio fundador da história deste endereço, que até hoje mantém a tipologia de galeria dos anos 70, uma alternativa ao conceito white cube, que permite uma certa narrativa durante a visita. “O meu pai sempre teve um contacto muito forte com o papel. A minha avó paterna fazia aqueles cartões de visita, de casamento, relevos. Ele pegava num papel e dizia logo a gramagem. O papel sempre foi uma referência”, explica Rui Brito, que não estranha a consequente paixão paterna pelos livros.

Desde os anos 50, Manuel de Brito esteve ligado à Escolar Editora, na Rua da Escola Politécnica. No começo da década de 60, chegava o desafio da transição para a zona da Cidade Universitária. Livros técnicos e científicos forravam as estantes de um endereço procurado pela vizinhança académica, que recebeu o nome de Livraria 111 por se instalar neste número do Campo Grande, num tempo em que a circulação de obras estava longe de facilitar a vida a vendedores e compradores. “Juntamente com a Barata, era a única livraria que vendia os livros proibidos pelo regime. Nasci em 77 mas curiosamente tenho uma imagem muito forte de testemunhos do meu pai e de amigos sobre apreensão de livros”, recorda o actual vice-presidente da Associação Portuguesa de Galeristas de Arte, e segunda geração ao leme da casa.

Com o mercado da arte então votado à categoria de excentricidade remota, numa das salas da livraria passaram a expor-se trabalhos de pintura. Poucos anos depois, a iniciativa ganhava novo fôlego, por incentivo de nomes como os do professor Rui Mário Gonçalves e de Fernando Conduto, artista que começou por orientador o novo projecto.

Censura e resistência. E o início de uma história de amor com 40 anos

Galeria de Março, Anos 50, Galeria Diário de Notícia. Exemplos de experiências que a cidade de Lisboa já conhecera antes da 111. “Mas naquela altura não havia nenhuma”, frisa Arlete, viúva de Manuel de Brito e seu braço-direito nesta epopeia familiar entre livros e quadros. “Vim para aqui no dia 3 de Setembro de 1963. Era uma rapariga muito independente, queria ter o meu dinheiro. O meu pai conhecia Manuel de Brito, rapaz empreendedor, com mais 16 anos que eu. Na altura era casado e isto foi tudo complicado, mas conseguimos ter uma vida em conjunto de 40 anos.”

Cursava Germânicas quando aceitou o trabalho em part-time em regime de faz-tudo na livraria, onde se conservava já espaço para a futura galeria, de um sapateiro que tinha falido. Cedo, o dedo feminino de Arlete arrumou o quotidiano do negócio. Organizou o ficheiro de clientes, compilou moradas, preencheu envelopes à mão. “Ao princípio era tudo muito primário. Expunha-se com uns vidros e um platex com molas, material que dava para reutilizar.”

Por sua vez, o estigma de Salazar e da PIDE ensombrava processos e relações. “Os artistas que colaboravam com as obras públicas eram completamente postos de lado pelos outros. Lembro-me de o Palácio da Justiça ser decorado com tapeçarias e esculturas e de porem de lado o Camarinha e o Cutileiro por terem feito peças.” De resto, a polícia política era visita assídua do espaço. Dois “pides privativos” protagonizavam razias semanais, sedentos de abater pombas. No dia em que a “A Paz” de Aristófanes chegou à 111, os 100 exemplares que acabavam de chegar voaram da loja pela mão da autoridade. “Imagine o prejuízo.” Arlete lembra ainda as primeiras transacções que em tudo dependiam da discrição. “Orlando Costa era um grande amigo do meu marido. O primeiro livro que andei a vender debaixo da mesa era dele. Tudo quanto publicava estava proibido.” Por aqui também se vendiam e escutavam discos à revelia de censores. “Meninos do Bairro Negro”, de Zeca Afonso, seguia o método de venda sigiloso, enquanto os trabalhos do exilado Luís Cília viajavam de França para Portugal com fato camuflado: uma capa de cantares populares.

Jorge Sampaio, então empenhado no movimento estudantil do princípio dos anos 60, era um dos oradores preferidos de Manuel de Brito, que várias vezes se deslocou à Faculdade de Direito para ouvir o futuro presidente da República. “Ficaram amigos. Sampaio sempre veio aqui. Quando foram as greves académicas, a cave da livraria teve mais de 100 alunos lá enfiados.” Hoje no mesmo local escondem-se depósitos de livros, mas a história destas instalações não se esquece de como até o regime, que por aqui se combatia, recorreu aos serviços da galeria. “Marcelo Caetano chegou a passar cá. Quando o sogro morreu pediu ao meu marido que avaliasse as suas sobras de arte. E Paulo Pitta e Cunha foi nosso cliente.”

Todos os nomes. De Joaquim Bravo a Vespeira, autor do logo da casa

Coube a Joaquim Bravo a honra da primeira exposição na galeria. O balanço da mostra, em Fevereiro de 64, saldou- -se na compra, por parte de um médico, de um único quadro do pintor, desaparecido em 1990. “Foi uma alegria muito grande mas depois fizemos imensas exposições sem vender nada. Naquela altura as pessoas não eram materialistas. Ninguém vendia e também não havia grande competitividade. Dizia-se que o mundo dos artistas era muito puro comparado já com o do teatro, por exemplo. Hoje… tudo mudou. Havia um espírito mais de convívio”, destaca Arlete.

Seguem-se António Palolo, então com 17 anos, Álvaro Lapa, Santa Bárbara, António Sena e muitos outros nomes então desconhecidos que conquistaram paredes e admiradores. Quando Marcelo Caetano sucede a Salazar, a anunciada primavera permite uma certa abertura. “As pessoas começaram a fazer negócio e houve uma esperança. Uma das pessoas fundamentais foi Jorge de Brito. Era um apaixonado pela arte. Por volta de 74 houve um leilão do retrato de Pessoa do Almada e ele comprou-o. O meu marido saiu de casa e levava 100 contos para comprar o quadro e o Jorge de Brito comprou por 1300, que era uma coisa impensável. Nenhum artista português valia aquilo. Achou que ia dar um impulso às artes, e deu.”

Manuel e Jorge ficaram unidos por apelidos, pela devoção ao Benfica e ainda pela obra de Vieira da Silva, uma espécie de “madrinha da galeria”. “No 25 de Abril estávamos a negociar um Picasso rosa para ele. Mais tarde começámos a dar apoio a nomes que estavam no estrangeiro.” Arlete enumera outros artistas essenciais. Paula Rego, Eduardo Batarda, Bartolomeu Cid dos Santos, Júlio Pomar, Gonçalo Duarte. Todos viram as suas obras representadas nesta morada do Campo Grande. “Tivemos bastante sucesso. Sempre guardámos as obras que achámos mais importantes. Aí começou a ser construída a colecção Manuel de Brito”.

Desde 2006 que o acervo do fundador está instalado no Palácio Anjos, em Algés, no CAMB – Centro de Arte Manuel de Brito, recuperando um trajecto que começou num tempo à margem de museus ou coleccionadores de arte com perfume de vanguarda. Assim nascia a galeria dedicada a obras contemporâneas cujo logótipo foi concebido pelo pintor Marcelino Vespeira. Quatro anos depois foi criado “o grupo da galeria 111”. 100 escudos, o valor da quota mensal paga pelos sócios, valiam vantagens na aquisição de obras e ofertas anuais. Ponto de encontro de intelectuais, contava entre os habitués com Amália Rodrigues, David Mourão Ferreira, Natália Correia, entre muitos outros, sem esquecer as visitas regulares dos alunos de Direito ou Medicina.

Um passo ao lado, dois passos em frente. E uma grande festa no dia em que Salazar morreu

Na década de 70, a galeria muda-se para o número 113 do Campo Grande. No 111 continua a existir até hoje a livraria, agora com feição de alfarrabista, que Manuel de Brito haveria de vender. A partir de 1971, a 111 estende a sua actividade ao Porto. Primeiro funda a Galeria Zen. No ano da Revolução de Abril, ocupa todo o edifício do 246 da Rua D. Manuel II. Em 1996, depois de generoso restauro, reabre ao público como Galeria 111 Porto. As obras foram possíveis graça à venda de um Vieira da Silva da colecção pessoal de Manuel de Brito. Já no Campo Grande, para comprar outro espaço expositivo e o armazém, o filho do fundador recorda como o pai se desfez de uma das mais relevantes obras de Pomar, “O Gadanheiro”, que “aliás passava já a maior parte do seu tempo no Museu do Chiado”.

Não há memória de percalços com telas, a não ser quando Rui, ainda miúdo, em casa, teve a ideia de enfiar a chave de um armário num Palolo. “Apareceu um rasgão. Sempre fui um bocadinho rebelde. Sempre houve uma rotação grande de quadros em casa.”

Em 1970, o espaço lisboeta expande- -se para o lado, ocupando uma antiga pastelaria e uma casa de bicicletas. E o dia 27 de Julho desse ano não poderia ter trazido melhor pretexto para festejos. “Inaugurámos no dia em que Salazar morreu. As autoridades tinham mandado fechar tudo. Toda a Lisboa caiu aqui para a festa. De repente um vizinho faz queixa à polícia de que estávamos a celebrar. Tivemos de fechar portas mas fizemos um beberete óptimo, com os amigos reunidos à luz das velas. Uma semana depois fizemos outra inauguração”, conta Arlete.

O macaco de Pomar e uma mosca na sopa

Os outros miúdos forravam os quartos com posters de bandas e carros. Rui não precisava de arrancar as centrais das revistas para decorar o seu mundo. Amigos da casa como Júlio Pomar e Paula Rego ofereciam-lhe obras com dedicatórias de valor sentimental incalculável. “A arte é vista como um negócio mas recordo episódios de infância marcantes. Ia ao ateliê do Pomar e quando a Paula Rego vinha de Londres era uma delícia. Trazia coisas incríveis, como aquelas moscas de plástico, que nos dizia para pormos na sopa quando os pais tivessem um jantar importante. Criava toda uma história.”

Guarda ainda um livro de autógrafos especial, refinada alternativa às velhas cadernetas de cromos. Com dez anos, começou a pedir aos frequentadores da galeria que deixassem a sua marca no pequeno caderno, como a pata da cadela Bolota, de Lourdes Castro, ou a dedicatória de um artista americano, que em 1996 lhe ofereceu uns quantos fios de cabelo da actriz Sharon Stone.

Rui, que cresceu no Dafundo, onde os pais se estabeleceram, habita hoje nos últimos andares do prédio comprado pela família nos anos 80, onde mantém telas vinculadas a episódios de afecto, como a colagem de um macaco que Pomar lhe ofereceu quando nasceu. No primeiro andar do imóvel funcionam os escritórios e o arquivo. Em 1987, os últimos andares estavam reservados a uma galeria privada, a que os visitantes podiam ascender depois de ver a exposição corrente no piso térreo. “Na altura até disse ao meu pai que o espaço dava era um belo apartamento. Ele disse-me “cresce e aparece”. E eu cresci e apareci.”

Começou a trabalhar na galeria com 16 anos, a tempo parcial, aos sábados. “Já fiz um bocadinho de tudo na galeria. Até já transportei quadros e conduzi uma Ford Transit. É muito importante seguir estas fases todas. O meu pai foi um self made man. Não viemos propriamente de famílias abastadas. É bom aprender. Só não faço as molduras; de resto sei fazer tudo. Mesmo hoje não me importo nada de fazer estas coisas.”

Lições herdadas de Manuel de Brito, cuja vida atribulada daria outra história. De dia estudava, à noite entregava telegramas dos CTT de bicicleta. Os avós paternos emigraram para o Brasil, onde nasceu, e de onde saiu, com destino a Portugal, aos dois anos. O pai teria negócios para finalizar no Rio de Janeiro e viria mais tarde, mas nunca voltou. A certa altura deixa de se corresponder com a mulher e surge a notícia de que teria morrido. “Já homem feito, à frente da livraria, o meu pai sentiu necessidade de ir para o Brasil e descobriu o pai vivo, acamado há uns meses. Tirou-lhe uma foto e ele morreu nesse dia.”

O irmão mais velho de Rui, Manuel, nascido do primeiro casamento do pai, enveredou pelo desporto e foi vereador da Câmara de Lisboa. A irmã também aprecia arte, mas foi Rui quem assumiu este legado. O sonho de menino era a aviação, mas a mãe sempre tentou desviá-lo do perigo dos voos. Tentou Gestão, experimentou Direito, passou pela Economia, até se render à História da Arte. “De certa forma senti a pressão de manter esta marca 111, o desejo forte do meu pai de haver uma continuidade. Seria triste terminar.” Como deixar uma ambição de infância pelo caminho. O curso de piloto segue hoje a bom ritmo.

Do arquivo e armazém. Sem esquecer as molduras do senhor Paulo

Alguns milhares de peças terão circulado por estas assoalhadas ao longo das décadas, assinadas por mais de uma centena de nomes. 1600 obras passaram pelo CAMB. A 111 editou mais de 200 gravuras e serigrafias, dezenas de livros de autor e monografias dos artistas com quem trabalhou. Tamanho elenco só poderia dar origem a um espanto de biblioteca. Por cima da galeria, o arquivo é uma viagem à história da arte portuguesa do século xx. Aqui acumulam- -se catálogos de exposições e leilões, correspondência entre artistas e galeristas; um espólio impressionante. Em breve será editada uma fotobiografia da Galeria 111, que passa em revista o lado comercial mas também o conjunto de memórias afectivas, casos de obras com dedicatórias pessoais, como a de Paula Rego: “Meu querido Manuel, obrigada pelo dinheiro que me mandaste. Era mesmo o que precisava.”

Artistas que batiam à porta, outros tantos que continuam a fazê-lo. Todos os dias Rui recebe emails e portefólios de jovens criadores. Recentemente expuseram João Leonardo, Prémio EDP, e lançou Gabriel Abrantes. “Nunca tinha exposto e toda a gente achou que eu era maluco. Sempre gostei dele.” Na exposição em curso, que abrange 94 peças, já existem algumas reservadas, mas o período recomenda prudência. “Nos anos 80 havia lista de espera e muitas vezes vendia-se tudo antes mesmo da exposição. Até à crise as coisas corriam bem. Continua- -se a ver a arte como um bom investimento, mas há muito mais cautela na aquisição”, explica Rui. Os compradores nacionais cruzam-se com forasteiros, muitos oriundos de mercados emergentes, como o Brasil.

De molduras percebe outro membro deste clã, por afinidade de quem conhece os cantos à casa. É no armazém da casa, 600 metros quadrados inaugurados em 2000, vizinho da extensão do 5B, que se alojam milhares de obras que já estiveram expostas, outras deixadas à consignação pelos autores. Das mãos de Paulo, responsável pela oficina, saem as molduras usadas nas telas, arte herdada de um mestre carpinteiro, o senhor Augusto. Paulo, com 49 anos, começou a trabalhar na galeria aos 17 anos. Margarida, sentada ao balcão, ia buscar Rui à infantil do Colégio Moderno. “Acaba por ser uma família.”

A última homenagem ao fundador

Os livros, o grande prefácio destes 50 anos, continuaram a fazer parte, com edições dedicadas aos artistas. No número 5B da Rua Dr. João Soares, uma perpendicular ao 113, pode ser vista a obra que Joana Vasconcelos concebeu a propósito dos 40 anos da 111. Um jogo de mesa e cadeiras com o tradicional crochet, com o nome de cada interveniente envolvido no negócio da arte desenhado nas costas dos assentos – crítico, cliente, artista e a família Brito.

Além da programação regular, o espaço recebeu recitais de poesia, a cargo de Ary dos Santos, Maria Barroso ou Luís Miguel Cintra, enquanto José Cardoso Pires, David Mourão Ferreira e Sophia de Mello Breyner Andresen apresentaram obras suas. Foi também aqui que Manuel de Brito foi velado, quando morreu, em Novembro de 2005, numa homenagem sentida a que acorreram os amigos, rodeado pelos omnipresentes quadros.