CGD


O que mais lhe prendeu a atenção foi a profissão dos opinantes: havia secretárias, contabilistas, escriturários, professores, economistas e outros doutores, operários e toda a sorte de trabalhadores, todos com empregos e supostamente – julgava o Zé – a trabalhar àquela hora


O Zé, quando se desloca na sua furgoneta, costuma ter a telefonia ligada, mais por defeito do que por feitio, e naquela manhã, entre uma carga e uma descarga, absorto nos seus pensamentos, ouvia em fundo, intermitentemente, um daqueles programas abertos à opinião dos ouvintes e que dão a ilusão de que a chamada sociedade civil participa e se interessa. O tema, que realmente o não era, transformara-se nos dias anteriores num intenso tema de política (com minúscula, a maiúscula reserva-se para coisas que raramente ocupam o tempo nobre dos noticiários e das atenções).

Às tantas começou a interessar-se, não tanto pelo tema ou pelas opiniões, mas pela quantidade e pela intensidade das participações, entrincheiradas em campos opinativos bem marcados, mais parecendo um debate entre políticos e não um fórum de ouvintes. Mas o que mais lhe prendeu a atenção foi a profissão dos opinantes. Choviam telefonemas, o locutor geria como podia e dizia “agora fulano de tal, fala deste sítio, e tem tal profissão”, “agora sicrana, que está em tal sítio, de profissão é isto”, e assim por diante. Havia uma doméstica, um reformado, um taxista, um sindicalista e um equilibrista, nada de espantar, pensou o Zé, pois a meio da manhã de um dia de semana não é de estranhar que essas pessoas possam pegar no telefone e deitar opinião para as ondas hertzianas.

Mas também havia secretárias, contabilistas, escriturários, professores, economistas e outros doutores, operários e toda a sorte de trabalhadores, todos com empregos e supostamente – julgava o Zé – a trabalhar àquela hora, de mais a mais num dia que não era de verão nem encostado a um feriado (daqueles que eram causa do atraso nacional e agora já não são), nem sequer segunda-feira, dia calhado para frutificarem opiniões da chamada sociedade civil, seja a propósito do futebol do fim de semana, seja a respeito das revelações oraculares do dr. Marques Mendes. Que diabo – exclamou o Zé para os seus botões –, tanta gente empregada com tempo livre para pegar no telefone e opinar!

Ele já tinha ouvido o boato de que havia gente que falava para estes programas e que dizia ser fulano e sicrano mas não era, era apenas mais um profissional da política (com minúscula) ou candidato a, alimentando as trincheiras da discussão. Então não quisera crer, mas agora, ouvindo bem, talvez fosse verdade, com tanto empregado livre a meio da manhã e com opiniões enérgicas sobre um tema que não valia mais do que dois ou três caracóis. Que diabo! E se não era isso, então era falta de ocupação ou relutância à mesma, daquelas que ele já ouvira dizer – sem querer aceitar – que eram uma das explicações para o facto de os portugueses passarem tanto tempo no local de trabalho e não terem uma produtividade correspondente. Seria? Fosse como fosse, uma coisa é certa: ouvir com atenção aquele programa e outros semelhantes e o que por lá se diz daria uma boa ajuda para elaborar um manual CGD, ou seja, um manual de Como Gastar os Dias (com maiúsculas).