“Já antes da Revolução sentia-se que havia um desejo de mudança”

“Já antes da Revolução sentia-se que havia um desejo de mudança”


Depois da Revolução a moda nunca mais foi a mesma. As pessoas passaram a ter mais liberdade e a vestir o que mais gostavam. Mas já antes de Abril houve quem tivesse a ousadia de trazer para o nosso país o que já se fazia lá fora…


A moda é cíclica e o que se vestia na década de 70 é completamente diferente do que vestimos hoje. A época de 70 foi a época dos hippies, padrões psicadélicos e até do punk. Mas isso era em outras partes do mundo que não Portugal. Por cá, nos primeiros anos desta época, vivíamos em ditadura e os padrões eram outros, mais tradicionais e conservadores.

Calças à boca de sino, decotes e míni saias eram permitidos lá fora, mas por cá, praticamente só os homens usavam calças e nada de decotes nem míni saias para as mulheres. Pelo menos para muitas, não todas. É que nem tudo era a preto e branco e várias marcas conhecidas foram à descoberta e aventuraram-se num país cheio de regras e restrições.

A marca Porfírios era um desses exemplos. Foi no último mês de 1965, em Lisboa e no Porto, que chegou a visão empresarial dos irmãos Porfírio – Augusto, Luís e António –, até aí conhecidos como “Porfírios das meias”. A novidade consistia numa loja especializada em roupa jovem que, ainda que confecionada em Portugal, era copiada da Carnaby Street em Londres e outros estilos europeus. 

Situava-se na Rua Vitória e não passava despercebida. Tinha salas escuras, corredores estreitos, luzes psicadélicas e música muito alta. No fundo, parecia uma discoteca que vendia roupa. Os Porfírios foram pioneiros no mercado da moda em Portugal e trouxeram roupa extravagante: calças à boca de sino, camisas floridas ou com a barriga à mostra, míni saias e muitos acessórios: lenços, colares, collants, cintos, entre outros. “A única ligação com o mundo, num Portugal pautado por uma mentalidade um bocado tacanha e provinciana, a loja remava contra a maré e o obscurantismo do país”, chegou a dizer o estilista Manuel Alves, citado pelo blog Lisboa de Antigamente. A Porfírios encerrou as portas em 2001.

Depois da Porfírios, há outra marca que vem também trazer irreverência a Lisboa e ao país. A Maçã, da estilista Ana Salazar, nasce em 1972, ainda antes do 25 de Abril, primeiro em Alvalade e depois no Chiado. Diz-se que foi a “revolução antes da revolução” e trazia ao país o último grito do que se fazia em Londres, como era o caso das gangas com delavées, vestidos compridos, às flores e também peças com influências etnológicas.

Ao i, Ana Salazar, explica que até ao 25 de Abril, “as pessoas em geral eram bastante conservadoras” mas “já antes da revolução sentia-se que havia claramente um desejo de mudança”. Um desejo que, continua a estilista, se “refletiu em 72 quando abri a minha primeira loja, A Maçã, pois esta foi um êxito apesar de ter o vestuário o mais anticonvencional possível”.

Em entrevista ao i em 2015, Ana Salazar já havia recordado o que fazia na sua loja, algo muito pouco comum em Portugal naquela época. “Basicamente, importava moda de Londres. Foi nessa altura que aconteceu a revolução. E porquê Londres? Porque nessa altura, em termos de maneira de estar, os anos 70 foram para mim dos anos mais criativos, os tais loucos anos em que a separação da linha entre o bom e o mau gosto era tão ténue que era inexplicável. Muito graças à criatividade e ao design, a qualidade não era tão importante nessa altura. A Maçã não foi o ovo de Colombo, havia outras lojas que importavam igualmente de Londres, mas talvez tenha sido a seleção, em termos de sensibilidade e de um gosto próprio que acabou por a diferenciar das outras. Passaram por lá todo o tipo de pessoas que marcaram aquela geração”.

Agora, reforça que a sua loja “trouxe o contemporâneo, ou seja, os loucos anos 70, que já existiam no resto da Europa”.

Questionada sobre se as pessoas se tornaram mais irreverentes depois da Revolução, Ana Salazar não tem dúvidas: “Penso que no momento da revolução sim”, acrescentando que “as pessoas que eram mais conservadoras e com poder de compra quiseram misturar-se com novos estilos, parecerem mais abertas. E as outras que antes não tinham poder de compra passaram a gastar muito mais que anteriormente. Num primeiro momento, e até aos anos 80, houve grandes mudanças na atitude e cultura portuguesa”. Mas lamenta: “Essa mudança tem vindo a desvanecer-se”.

E havia mais alguns que pensavam fora da caixa. Pelo menos fora da caixa para o que era habitual em Portugal uma vez que o nosso país chegou tarde àquilo que já se fazia lá fora. Destaque ainda para a Migacho que abriu na década de 70 no Chiado pelas mãos de Maria da Graça Costa Segurado Pavão. A loja mantém-se, situa-se hoje no Amoreiras.

Praia e boémia 

A dois passos de Lisboa, Cascais era um lugar de lazer e de boémia, onde também se respirava outro ar. “Como estância balnear de excelência, Cascais era visitado por muitos estrangeiros que traziam as tendências atuais e um lifestyle a que os portugueses não estavam habituados, mas que depressa contagiou quem por cá vivia”, recorda o texto “O estilo mudou com a Revolução de Abril?”, publicado no site da Câmara de Cascais. Que evoca também a imagem da geração “dos ‘meninos de Cascais’, jovens com dinheiro para viajar, comprar discos e dançar até ser dia. Um estilo de vida vibrante que contrastava com o país a preto e branco de Salazar. Não se estranhava ao ver jovens com calças boca-de-sino, minissaias, vestidos justos e sapatos plataforma ou botas altas de camurça, a passear nas ruas de Cascais e do Estoril. Tendências revisitadas de cidades europeias como Londres e Paris”.

O que mostravam os jornais 

Olhando para os jornais da época, os anúncios de moda não são muitos, ao contrário do que acontece nas revistas. Nos jornais, a maioria dos anúncios são sobre fábricas têxteis, nas revistas há mais a oportunidade de ver fotografias do que se vestia nessa época – antes e depois do 25 de Abril – ainda que muitos dos outfits não fossem usados pelos portugueses. Carcassone, Rei das Peles, Armazéns do Conde Barão, Terylene mas também marcas como Lacoste faziam parte das muitas páginas das revistas e jornais da época como a Flama, o Século Ilustrado, A Capital, entre outros, que o i teve oportunidade de ver no site da Hemeroteca.

E a moda era retratada mesmo em texto. A edição de 3 de maio de 1974 da revista Flama avança com uma rubrica chamada ‘Pronto a vestir: As formas livres da moda’, que revela aos leitores qual a tendência para o outono de 74 e o inverno de 75 (ver figura ao lado). Um estilo “clássico, rejuvenescido de pormenores” ou “um estilo nitidamente jovem”. 

A maioria dos anúncios publicitava fábricas têxteis. E o que mais existiam eram alfaiates. Depois do 25 de Abril as ruas encheram-se de prontos a vestir.