A insensibilidade ao mal


A omnipresença das imagens do sofrimento do povo palestiniano, passadas em continuum nas televisões de todo o mundo, quase sempre sem qualquer enquadramento, acaba por insensibilizar o que de humano sobra em nós.


No dia 5 de Novembro a maioria da humanidade não votará nas eleições presidenciais dos EUA. Dos que votam a maioria não fará da questão palestiniana um argumento para escolha de um dos candidatos. Na cabeça de Biden e de Trump (e dos seus marketeiros) a escolha já foi feita a favor do Estado de Israel, independentemente da miséria moral de Netanyahu, miséria muito anterior aos ataques do Hamas do dia 7 de Outubro do passado ano. O apoio incondicional dos EUA a Israel está a cavar ainda mais fundo o abismo entre a praxis e o discurso político de Washington. Os duplos standards convocam comparações, odiosas mas inevitáveis, começando pela invasão da Ucrânia. Do ponto de vista ético (e criminal) a distância entre fazer o mal e deixar fazer o mal é ténue.

A astenia moral dos EUA contribui para o dilatar das fissuras de uma ordem jurídica internacional erguida sobre os escombros daquele que se quis o último conflito planetário. No dia 25 de Março os EUA, depois de quase seis meses de vetos expressos e tácitos, abstiveram-se na votação da Resolução 2625 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada com 14 votos a favor. Sob liderança de Moçambique e numa iniciativa conjunta dos 10 Estados membros não permanentes, a Resolução retomou parte do texto várias vezes proposto pela Argélia e exigiu um cessar fogo imediato, ainda que limitado ao período do Ramadão (termina a 10 de Abril). Os EUA não perderam a oportunidade de destruir o capital de boa vontade resultante da abstenção e, pelas bocas de um porta-voz do State Department e da Representante Permanente na ONU, declararam ser a resolução “não vinculativa”. Supõe-se que assim aludiam à ausência no texto da Resolução de uma invocação do Capítulo VII da Carta. O argumento é curto. O artigo 25º da Carta não deixa margem para dúvidas: “Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança.”

A 28 de Março o Tribunal Internacional de Justiça, reforçou, a pedido da África do Sul, as medidas provisórias que já havia decidido a 26 de Janeiro de 2024, e, face ao agravar da situação dos Palestinianos em Gaza, em particular a fome generalizada, decidiu que Israel, ao abrigo das obrigações que lhe incubem no âmbito da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, deve:

               -permitir, sem demora, a assistência humanitária, incluindo comida, água, electricidade, combustível, abrigo, roupas, higiene, saneamento, medicamentos e assistência médica (decisão unânime);

               -garantir, com efeito imediato, que os seus militares não cometam actos que constituam uma violação dos direitos dos Palestinianos enquanto grupo protegido pela Convenção, nomeadamente o acesso à assistência humanitária (decisão por 15-1).

Vários juízes apensaram declarações de voto, lamentando que o TIJ, em sede de medidas provisórias, não tenha decidido pela suspensão das actividades militares das forças israelitas. O cessar-fogo decidido no dia 25 de Março pelo Conselho de Segurança, ainda que limitado no tempo, não está a ser cumprido. A essência do Direito não depende do imaculado respeito pelas suas regras. Muitas das violações da ordem jurídica internacional cometidas pelos Estados são acompanhadas de tortuosas justificações, o que só reforça a juridicidade das normas que estão a desrespeitar. Mas a “descoberta” pelos EUA das resoluções do Conselho de Segurança como não vinculativas é o equivalente moral da invocação pela Rússia da legítima defesa como causa de justificação da invasão da Ucrânia.

A insensibilidade ao mal


A omnipresença das imagens do sofrimento do povo palestiniano, passadas em continuum nas televisões de todo o mundo, quase sempre sem qualquer enquadramento, acaba por insensibilizar o que de humano sobra em nós.


No dia 5 de Novembro a maioria da humanidade não votará nas eleições presidenciais dos EUA. Dos que votam a maioria não fará da questão palestiniana um argumento para escolha de um dos candidatos. Na cabeça de Biden e de Trump (e dos seus marketeiros) a escolha já foi feita a favor do Estado de Israel, independentemente da miséria moral de Netanyahu, miséria muito anterior aos ataques do Hamas do dia 7 de Outubro do passado ano. O apoio incondicional dos EUA a Israel está a cavar ainda mais fundo o abismo entre a praxis e o discurso político de Washington. Os duplos standards convocam comparações, odiosas mas inevitáveis, começando pela invasão da Ucrânia. Do ponto de vista ético (e criminal) a distância entre fazer o mal e deixar fazer o mal é ténue.

A astenia moral dos EUA contribui para o dilatar das fissuras de uma ordem jurídica internacional erguida sobre os escombros daquele que se quis o último conflito planetário. No dia 25 de Março os EUA, depois de quase seis meses de vetos expressos e tácitos, abstiveram-se na votação da Resolução 2625 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada com 14 votos a favor. Sob liderança de Moçambique e numa iniciativa conjunta dos 10 Estados membros não permanentes, a Resolução retomou parte do texto várias vezes proposto pela Argélia e exigiu um cessar fogo imediato, ainda que limitado ao período do Ramadão (termina a 10 de Abril). Os EUA não perderam a oportunidade de destruir o capital de boa vontade resultante da abstenção e, pelas bocas de um porta-voz do State Department e da Representante Permanente na ONU, declararam ser a resolução “não vinculativa”. Supõe-se que assim aludiam à ausência no texto da Resolução de uma invocação do Capítulo VII da Carta. O argumento é curto. O artigo 25º da Carta não deixa margem para dúvidas: “Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança.”

A 28 de Março o Tribunal Internacional de Justiça, reforçou, a pedido da África do Sul, as medidas provisórias que já havia decidido a 26 de Janeiro de 2024, e, face ao agravar da situação dos Palestinianos em Gaza, em particular a fome generalizada, decidiu que Israel, ao abrigo das obrigações que lhe incubem no âmbito da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, deve:

               -permitir, sem demora, a assistência humanitária, incluindo comida, água, electricidade, combustível, abrigo, roupas, higiene, saneamento, medicamentos e assistência médica (decisão unânime);

               -garantir, com efeito imediato, que os seus militares não cometam actos que constituam uma violação dos direitos dos Palestinianos enquanto grupo protegido pela Convenção, nomeadamente o acesso à assistência humanitária (decisão por 15-1).

Vários juízes apensaram declarações de voto, lamentando que o TIJ, em sede de medidas provisórias, não tenha decidido pela suspensão das actividades militares das forças israelitas. O cessar-fogo decidido no dia 25 de Março pelo Conselho de Segurança, ainda que limitado no tempo, não está a ser cumprido. A essência do Direito não depende do imaculado respeito pelas suas regras. Muitas das violações da ordem jurídica internacional cometidas pelos Estados são acompanhadas de tortuosas justificações, o que só reforça a juridicidade das normas que estão a desrespeitar. Mas a “descoberta” pelos EUA das resoluções do Conselho de Segurança como não vinculativas é o equivalente moral da invocação pela Rússia da legítima defesa como causa de justificação da invasão da Ucrânia.