A guerra russo-ucraniana: a frente jurídica


Continuando a guerra na Ucrânia prossegue a batalha jurídica no Tribunal Internacional de Justiça, com a intervenção de 32 Estados, um deles Portugal.


Na ordem jurídica internacional o respeito pelas prerrogativas de soberania dos Estados deixa-os livres para a aceitarem a jurisdição dos tribunais internacionais, mesmo a do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), “o principal órgão judicial das nações Unidas”, na terminologia do artigo 92º da Carta da ONU. Uma das possibilidades de aceitação da jurisdição do TIJ resulta da vinculação de um Estado a uma convenção internacional que lha atribua. É o caso artigo IX da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, de 1948. “Os diferendos entre as Partes Contratantes relativos à interpretação, aplicação ou execução da presente Convenção, incluindo os diferendos relativos à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio ou de qualquer dos actos enumerados no artigo 3º, serão submetidos ao TIJ, a pedido de uma das partes no diferendo.”

A esmagadora maioria dos Estados (153) são partes na Convenção, tendo Portugal chegado tarde (1999) à ratificação, por mor da má consciência da guerra colonial, da distracção e das limitações constitucionais em matéria de extradição de nacionais. Quer a Ucrânia quer a Federação Russa são partes na Convenção desde 1954. O Presidente Putin, aquando da invasão da Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022, acusou as autoridades de Kiev de terem praticado,  nas regiões de Donetsk e de Luhansk, contra populações etnicamente russas, actos de genocídio, o que justificaria o recurso à força pela Federação Russa.

A 26 de Fevereiro de 2022 a Ucrânia accionou, junto do TIJ, a Rússia, ao abrigo do artigo IX da Convenção, invocando a violação da mesma e solicitando o decretamento de medidas provisórias. Kiev considera como falsa a acusação de genocídio feita por Moscovo, o que se traduziria numa invocação abusiva da Convenção e solicitou ao Tribunal uma declaração de não violação da mesma, de impossibilidade de a Rússia agir contra a Ucrânia com base na alegada violação da Convenção, incluindo nessa impossibilidade a “operação militar especial” e o reconhecimento da independência das auto-denominadas “Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk”. A Federação Russa recusou-se a participar na audiência pública que precedeu a decisão do TIJ que deferiu as medidas provisórias. Aquando da discussão da acção principal, a Rússia apresentou 6 objecções preliminares à competência do Tribunal. Ao abrigo do artigo 63º do Estatuto do TIJ, 32 Estados, incluindo Portugal, intervieram no processo em defesa das posições ucranianas (o pedido de intervenção dos EUA foi recusado na medida em que contrariava a respectiva declaração de vinculação à Convenção).

No dia 2 de Fevereiro de 2024 o TIJ recusou 5 das objecções formuladas pela Rússia e aceitou a 2ª, relativa à incompetência ratione materiae. O Tribunal considera que mesmo se ficasse provado que a Rússia qualificou, de forma abusiva e com má fé, a conduta da Ucrânia nas regiões de Donetsk e de Luhansk como genocida tal não se traduz numa violação da Convenção. O TIJ considera que a conduta russa se pode traduzir numa violação das regras relativas ao uso da força (invasão da Ucrânia) e ao reconhecimento dos Estados (em relação às “Repúblicas Populares”). Mas estas regras de Direito Internacional Público não fazem parte da Convenção sobre o Genocídio pelo que não estão abrangidas pela jurisdição do Tribunal no presente processo. E a Convenção, como lembrou o Tribunal, mesmo que possa ser lida como obrigando os Estados a “employ all means reasonably available to them, so as to prevent genocide so far as possible” (caso da Aplicação da Convenção, Bósnia Herzegovina v. Sérvia e Montenegro, in ICJ Reports, 2007-I, pp. 221, § 430) não transforma toda e qualquer violação de uma norma de DIP numa violação da Convenção.

A guerra russo-ucraniana: a frente jurídica


Continuando a guerra na Ucrânia prossegue a batalha jurídica no Tribunal Internacional de Justiça, com a intervenção de 32 Estados, um deles Portugal.


Na ordem jurídica internacional o respeito pelas prerrogativas de soberania dos Estados deixa-os livres para a aceitarem a jurisdição dos tribunais internacionais, mesmo a do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), “o principal órgão judicial das nações Unidas”, na terminologia do artigo 92º da Carta da ONU. Uma das possibilidades de aceitação da jurisdição do TIJ resulta da vinculação de um Estado a uma convenção internacional que lha atribua. É o caso artigo IX da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, de 1948. “Os diferendos entre as Partes Contratantes relativos à interpretação, aplicação ou execução da presente Convenção, incluindo os diferendos relativos à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio ou de qualquer dos actos enumerados no artigo 3º, serão submetidos ao TIJ, a pedido de uma das partes no diferendo.”

A esmagadora maioria dos Estados (153) são partes na Convenção, tendo Portugal chegado tarde (1999) à ratificação, por mor da má consciência da guerra colonial, da distracção e das limitações constitucionais em matéria de extradição de nacionais. Quer a Ucrânia quer a Federação Russa são partes na Convenção desde 1954. O Presidente Putin, aquando da invasão da Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022, acusou as autoridades de Kiev de terem praticado,  nas regiões de Donetsk e de Luhansk, contra populações etnicamente russas, actos de genocídio, o que justificaria o recurso à força pela Federação Russa.

A 26 de Fevereiro de 2022 a Ucrânia accionou, junto do TIJ, a Rússia, ao abrigo do artigo IX da Convenção, invocando a violação da mesma e solicitando o decretamento de medidas provisórias. Kiev considera como falsa a acusação de genocídio feita por Moscovo, o que se traduziria numa invocação abusiva da Convenção e solicitou ao Tribunal uma declaração de não violação da mesma, de impossibilidade de a Rússia agir contra a Ucrânia com base na alegada violação da Convenção, incluindo nessa impossibilidade a “operação militar especial” e o reconhecimento da independência das auto-denominadas “Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk”. A Federação Russa recusou-se a participar na audiência pública que precedeu a decisão do TIJ que deferiu as medidas provisórias. Aquando da discussão da acção principal, a Rússia apresentou 6 objecções preliminares à competência do Tribunal. Ao abrigo do artigo 63º do Estatuto do TIJ, 32 Estados, incluindo Portugal, intervieram no processo em defesa das posições ucranianas (o pedido de intervenção dos EUA foi recusado na medida em que contrariava a respectiva declaração de vinculação à Convenção).

No dia 2 de Fevereiro de 2024 o TIJ recusou 5 das objecções formuladas pela Rússia e aceitou a 2ª, relativa à incompetência ratione materiae. O Tribunal considera que mesmo se ficasse provado que a Rússia qualificou, de forma abusiva e com má fé, a conduta da Ucrânia nas regiões de Donetsk e de Luhansk como genocida tal não se traduz numa violação da Convenção. O TIJ considera que a conduta russa se pode traduzir numa violação das regras relativas ao uso da força (invasão da Ucrânia) e ao reconhecimento dos Estados (em relação às “Repúblicas Populares”). Mas estas regras de Direito Internacional Público não fazem parte da Convenção sobre o Genocídio pelo que não estão abrangidas pela jurisdição do Tribunal no presente processo. E a Convenção, como lembrou o Tribunal, mesmo que possa ser lida como obrigando os Estados a “employ all means reasonably available to them, so as to prevent genocide so far as possible” (caso da Aplicação da Convenção, Bósnia Herzegovina v. Sérvia e Montenegro, in ICJ Reports, 2007-I, pp. 221, § 430) não transforma toda e qualquer violação de uma norma de DIP numa violação da Convenção.