Duas entrevistas, uma visão convergente da justiça


Um político não é criminoso por ser político; um criminoso é que pode usar a política para melhor desenvolver a sua atividade nefasta para a sociedade, porque o exercício de um cargo político ou administrativo lhe facilita a tarefa.


Na semana passada foram publicadas, no mesmo dia e em publicações diferentes, duas entrevistas – uma da Juíza Conselheira do STJ Teresa Almeida e outra minha – que versavam sobre o Ministério Público (MP), os seus problemas e a sua importância para a realização da Justiça.

Relendo o teor de ambas as entrevistas, é fácil, desde logo, encontrar pontos de coincidência e, sobretudo, uma ideia convergente sobre o exato papel da Justiça penal enquanto instrumento de intervenção social numa sociedade democrática.

Tanto numa, como noutra, não se revelam quaisquer resquícios da ideia de que o exercício da Justiça penal deva ser encarado como uma luta em que as magistraturas participam contra a «casta» da política e dos políticos.

Tal visão do papel da ação penal nunca existiu nos magistrados – juízes e procuradores – da nossa geração.

Para os magistrados desta geração – a que ambos pertencemos – que lutou, com mais ou menos empenho e riscos, para que a sociedade portuguesa fosse governada em Democracia, tal visão da Justiça, da política e dos políticos é indefensável.

Claro está, que todos sabemos haver políticos que abusam do poder, que lhes foi confiado pelos cidadãos, e o transformam em instrumento para gerir e ampliar os interesses próprios.

Tal atuação, gravemente danosa para a sociedade, não é, contudo, exclusiva dos políticos.

Dado o modelo económico-social dominante, tal atuação não pode mesmo existir se, no lado dos interesses particulares, que concretizam atualmente muitas das funções do Estado, não interviessem dolosamente, também, alguns dos que administram as corporações privadas que as executam.

É procurando saber de onde veio, onde está ou para onde foi o dinheiro público que se esclarece a existência, ou não, de tal tipo de crimes; quem foram os que a tais verbas deram um destino diferente do que o Estado lhes reservara, quem o fez, a que preço e quem, de tal descaminho, beneficiou ou pretendeu beneficiar.

No entanto, investigar tais atuações não significa – e nunca pode significar – suspeitar, vigiar e perseguir os políticos, só porque o são.

Importa, pois, não pensar – ou deixar que se pense – a ação penal, como se fosse uma cruzada regeneradora contra a política e os políticos.

O exercício da ação penal, no plano do crime económico e financeiro, destina-se, tão somente, a punir as atividades fraudulentas de todos os que – políticos, altos funcionários e detentores de interesses privados – usam e abusam dos dinheiros públicos para deles se locupletarem, ou beneficiarem os amigos.

Quem, atuando do lado do poder político e da administração pública, pretender enriquecer à custa de dinheiros que não lhes pertencem e que estavam à sua guarda, viola, além do mais, a confiança política e os poderes funcionais que os cidadãos lhes atribuíram.

Põe, por isso, em causa a confiança política no sistema democrático.

Para quem, como a Juíza Conselheira – e eu próprio – exerceu funções de MP no Tribunal de Contas, esta visão das coisas é muito evidente, pois, pela jurisdição contável passam e são escrutinados muitos dos mais estranhos negócios realizados entre agentes do Estado e os privados, sem que, da ação preventiva deste Tribunal, se faça propaganda ou espetáculo desnecessário.

Mas é precisamente porque, em Democracia, tais casos são mais escrutinados e mais visíveis e os que neles participam podem, hoje, mais facilmente ser alvo da intervenção da Justiça, que importa separar o que é a legítima ação política – mesmo que com ela se não concorde muitas vezes – do que é já uma ação criminosa pensada e concretizada, embora através da intervenção política.

Um político não é criminoso por ser político; um criminoso é que pode usar a política para melhor desenvolver a sua atividade nefasta para a sociedade, porque o exercício de um cargo político ou administrativo lhe facilita a tarefa.

Tal separação de águas é, pois, fundamental para quem, na Justiça, tem por função investigar e, respetivamente, julgar, com objetividade e imparcialidade, os que, alegadamente, usam os seus cargos públicos em benefício próprio.

Pensar e falar da política e dos políticos em geral, como quem fala da máfia e dos seus padrinhos, é, mesmo que inconscientemente, assumir já um parti-pris contra o sistema democrático.

É, de facto, tomar uma posição política – ela também – contra a Democracia.

Tal forma de encarar a política democrática, tende, além do mais, a consentir, desenvolver e justificar práticas judiciais que não são adequadas a um processo equitativo e respeitador das garantias constitucionais, próprias de Estados civilizados e governados pela lei.

Repete, em outros termos, o que acima disse sobre disfunção no exercício da política: põe em causa a confiança política no sistema democrático.

Mais; tende, além disso, a pôr em crise o Estado de Direito.

Os magistrados – juízes e procuradores – que, em condições diversas e com vinculações diferentes, participaram na luta pela Democracia, até pelas consequências pessoais que muitos deles tiveram e sofreram, nunca desenvolveram um discurso e uma atividade processual que os setores restauracionistas, normalmente os mais securitários, querem integrar naquilo que, demagogicamente, denominam de «luta contra o crime» e a corrupção dos princípios morais da nação.

Para estes magistrados, o escrutínio e a responsabilização que compete à Justiça fazer no escrupuloso respeito pela Constituição e a lei não se traduzem numa tomada de posição coletiva (corporativa?) contra um outro poder constitucional.  

O fenómeno do terrorismo e o da corrupção determinaram, nas últimas décadas, é certo, ultrapassagens perigosas das reservas e garantias constitucionais e das normas processuais adquiridas pelo Direito Penal e Processual Penal, depois de muitos séculos de evolução, apuramento e consagração de conceitos e práticas humanistas.

A justificação teórica para tal deriva encontra-se no chamado «Direito Penal do Inimigo» e o seu resultado prático é, ainda, escandalosamente visível, entre outros, em sítios como Guantánamo.

Essa deriva securitária, aprovada, com mais ou menos exageros, pelos legisladores democráticos em diferentes países do chamado bloco ocidental, contaminou, afinal, o Direito penal clássico e atemoriza, hoje, os que, no plano político, permitiram a subversão de princípios clássicos e humanistas que ela implicava.

Pior ainda; moldou uma nova cultura e praxis judiciária.

O sistema judicial português que, nos termos da nossa Constituição, o MP também integra, não foi constitucionalmente concebido, nem é estruturado para lutar contra o que quer que seja: foi pensado, e bem, para, de acordo com as garantias constitucionais, apurar factos, identificar os responsáveis por eles e punir, nos termos da lei, e quando se justifique, os que cometeram crimes devidamente comprovados em juízo.

A luta contra o crime é, nestes precisos termos, uma ação de natureza puramente executiva e compete, no essencial, às polícias.

A política criminal estabelecida por lei, nos termos da nossa Constituição, em nada altera tal posicionamento, pois ela apenas elege prioridades abstratas.

Por tal razão, aquilo a que chamamos política criminal – como resulta do nosso ordenamento jurídico – não intervém, ou pretende intervir, como em outros países acontece, na gestão, pelo MP, dos casos concretos.

A investigação e posterior julgamento destes regem-se, sobretudo, pelas regras e princípios estabelecidos na Constituição e no Código de Processo Penal, que são os instrumentos próprios do poder judicial para regular a atuação e os limites da intervenção das magistraturas, no âmbito de um processo crime judicializado, desde o início, como é o nosso.

O nosso sistema judicial foi e é, somente, pensado, projetado e organizado para apurar a verdade e, de acordo com ela, aplicar a lei.

A ação da Justiça, por mais objetiva que seja, não se situa, contudo, fora do meio político-social que a creditou, para que exercesse as funções que a Constituição lhe comete.

Por tal razão, ela não é imune ao uso e à instrumentalização que, do seu funcionamento, possa ser feito.

A ação da Justiça conduz – umas vezes bem, outras mal – a punir os que ela considera culpados de crimes e a absolver os que ela entende não ter provas suficientes para isso, ou mesmo que, comprovadamente, não considera terem cometido os crimes de que foram acusados.

Por isso, o sistema judicial contempla um conjunto de garantias, designadamente em termos de recursos e de reapreciação das decisões inicialmente tomadas, processadas por outros e diferentes magistrados e instâncias judiciais.

Por isso, e apesar disso, a Justiça suscita apreciações alternadamente positivas e negativas, por parte de quem é por ela investigado e julgado e, nessa condição, absolvido ou condenado.  

O uso indevido que, em alguns casos, com as mais diversas intenções políticas, da sua atuação é feito, por uns e outros, dentro e fora do sistema de Justiça, não deve, mesmo assim, levar a condenar de tabela – como muitos fazem da política e dos políticos – a generalidade dos magistrados e as suas estruturas funcionais.

A crítica à sua atuação é legítima e deve ser considerada importante para o seu aprimoramento e responsabilização, mas, como na política, uma coisa é uma crítica fundada, outra, bem diferente, é uma campanha oportunista dirigida à sua descredibilização, assente, sobretudo, em sound bites e tendo como objetivo estratégias políticas circunstanciais que são alheias à Justiça.

Afinal, juízes e procuradores – mesmo quando agem mal – também gozam da presunção de inocência, pelo menos até ao momento em que se prove que prevaricaram.

De Robespierre até hoje, percorreu-se um longo percurso, no que respeita à Justiça penal.

Duas entrevistas, uma visão convergente da justiça


Um político não é criminoso por ser político; um criminoso é que pode usar a política para melhor desenvolver a sua atividade nefasta para a sociedade, porque o exercício de um cargo político ou administrativo lhe facilita a tarefa.


Na semana passada foram publicadas, no mesmo dia e em publicações diferentes, duas entrevistas – uma da Juíza Conselheira do STJ Teresa Almeida e outra minha – que versavam sobre o Ministério Público (MP), os seus problemas e a sua importância para a realização da Justiça.

Relendo o teor de ambas as entrevistas, é fácil, desde logo, encontrar pontos de coincidência e, sobretudo, uma ideia convergente sobre o exato papel da Justiça penal enquanto instrumento de intervenção social numa sociedade democrática.

Tanto numa, como noutra, não se revelam quaisquer resquícios da ideia de que o exercício da Justiça penal deva ser encarado como uma luta em que as magistraturas participam contra a «casta» da política e dos políticos.

Tal visão do papel da ação penal nunca existiu nos magistrados – juízes e procuradores – da nossa geração.

Para os magistrados desta geração – a que ambos pertencemos – que lutou, com mais ou menos empenho e riscos, para que a sociedade portuguesa fosse governada em Democracia, tal visão da Justiça, da política e dos políticos é indefensável.

Claro está, que todos sabemos haver políticos que abusam do poder, que lhes foi confiado pelos cidadãos, e o transformam em instrumento para gerir e ampliar os interesses próprios.

Tal atuação, gravemente danosa para a sociedade, não é, contudo, exclusiva dos políticos.

Dado o modelo económico-social dominante, tal atuação não pode mesmo existir se, no lado dos interesses particulares, que concretizam atualmente muitas das funções do Estado, não interviessem dolosamente, também, alguns dos que administram as corporações privadas que as executam.

É procurando saber de onde veio, onde está ou para onde foi o dinheiro público que se esclarece a existência, ou não, de tal tipo de crimes; quem foram os que a tais verbas deram um destino diferente do que o Estado lhes reservara, quem o fez, a que preço e quem, de tal descaminho, beneficiou ou pretendeu beneficiar.

No entanto, investigar tais atuações não significa – e nunca pode significar – suspeitar, vigiar e perseguir os políticos, só porque o são.

Importa, pois, não pensar – ou deixar que se pense – a ação penal, como se fosse uma cruzada regeneradora contra a política e os políticos.

O exercício da ação penal, no plano do crime económico e financeiro, destina-se, tão somente, a punir as atividades fraudulentas de todos os que – políticos, altos funcionários e detentores de interesses privados – usam e abusam dos dinheiros públicos para deles se locupletarem, ou beneficiarem os amigos.

Quem, atuando do lado do poder político e da administração pública, pretender enriquecer à custa de dinheiros que não lhes pertencem e que estavam à sua guarda, viola, além do mais, a confiança política e os poderes funcionais que os cidadãos lhes atribuíram.

Põe, por isso, em causa a confiança política no sistema democrático.

Para quem, como a Juíza Conselheira – e eu próprio – exerceu funções de MP no Tribunal de Contas, esta visão das coisas é muito evidente, pois, pela jurisdição contável passam e são escrutinados muitos dos mais estranhos negócios realizados entre agentes do Estado e os privados, sem que, da ação preventiva deste Tribunal, se faça propaganda ou espetáculo desnecessário.

Mas é precisamente porque, em Democracia, tais casos são mais escrutinados e mais visíveis e os que neles participam podem, hoje, mais facilmente ser alvo da intervenção da Justiça, que importa separar o que é a legítima ação política – mesmo que com ela se não concorde muitas vezes – do que é já uma ação criminosa pensada e concretizada, embora através da intervenção política.

Um político não é criminoso por ser político; um criminoso é que pode usar a política para melhor desenvolver a sua atividade nefasta para a sociedade, porque o exercício de um cargo político ou administrativo lhe facilita a tarefa.

Tal separação de águas é, pois, fundamental para quem, na Justiça, tem por função investigar e, respetivamente, julgar, com objetividade e imparcialidade, os que, alegadamente, usam os seus cargos públicos em benefício próprio.

Pensar e falar da política e dos políticos em geral, como quem fala da máfia e dos seus padrinhos, é, mesmo que inconscientemente, assumir já um parti-pris contra o sistema democrático.

É, de facto, tomar uma posição política – ela também – contra a Democracia.

Tal forma de encarar a política democrática, tende, além do mais, a consentir, desenvolver e justificar práticas judiciais que não são adequadas a um processo equitativo e respeitador das garantias constitucionais, próprias de Estados civilizados e governados pela lei.

Repete, em outros termos, o que acima disse sobre disfunção no exercício da política: põe em causa a confiança política no sistema democrático.

Mais; tende, além disso, a pôr em crise o Estado de Direito.

Os magistrados – juízes e procuradores – que, em condições diversas e com vinculações diferentes, participaram na luta pela Democracia, até pelas consequências pessoais que muitos deles tiveram e sofreram, nunca desenvolveram um discurso e uma atividade processual que os setores restauracionistas, normalmente os mais securitários, querem integrar naquilo que, demagogicamente, denominam de «luta contra o crime» e a corrupção dos princípios morais da nação.

Para estes magistrados, o escrutínio e a responsabilização que compete à Justiça fazer no escrupuloso respeito pela Constituição e a lei não se traduzem numa tomada de posição coletiva (corporativa?) contra um outro poder constitucional.  

O fenómeno do terrorismo e o da corrupção determinaram, nas últimas décadas, é certo, ultrapassagens perigosas das reservas e garantias constitucionais e das normas processuais adquiridas pelo Direito Penal e Processual Penal, depois de muitos séculos de evolução, apuramento e consagração de conceitos e práticas humanistas.

A justificação teórica para tal deriva encontra-se no chamado «Direito Penal do Inimigo» e o seu resultado prático é, ainda, escandalosamente visível, entre outros, em sítios como Guantánamo.

Essa deriva securitária, aprovada, com mais ou menos exageros, pelos legisladores democráticos em diferentes países do chamado bloco ocidental, contaminou, afinal, o Direito penal clássico e atemoriza, hoje, os que, no plano político, permitiram a subversão de princípios clássicos e humanistas que ela implicava.

Pior ainda; moldou uma nova cultura e praxis judiciária.

O sistema judicial português que, nos termos da nossa Constituição, o MP também integra, não foi constitucionalmente concebido, nem é estruturado para lutar contra o que quer que seja: foi pensado, e bem, para, de acordo com as garantias constitucionais, apurar factos, identificar os responsáveis por eles e punir, nos termos da lei, e quando se justifique, os que cometeram crimes devidamente comprovados em juízo.

A luta contra o crime é, nestes precisos termos, uma ação de natureza puramente executiva e compete, no essencial, às polícias.

A política criminal estabelecida por lei, nos termos da nossa Constituição, em nada altera tal posicionamento, pois ela apenas elege prioridades abstratas.

Por tal razão, aquilo a que chamamos política criminal – como resulta do nosso ordenamento jurídico – não intervém, ou pretende intervir, como em outros países acontece, na gestão, pelo MP, dos casos concretos.

A investigação e posterior julgamento destes regem-se, sobretudo, pelas regras e princípios estabelecidos na Constituição e no Código de Processo Penal, que são os instrumentos próprios do poder judicial para regular a atuação e os limites da intervenção das magistraturas, no âmbito de um processo crime judicializado, desde o início, como é o nosso.

O nosso sistema judicial foi e é, somente, pensado, projetado e organizado para apurar a verdade e, de acordo com ela, aplicar a lei.

A ação da Justiça, por mais objetiva que seja, não se situa, contudo, fora do meio político-social que a creditou, para que exercesse as funções que a Constituição lhe comete.

Por tal razão, ela não é imune ao uso e à instrumentalização que, do seu funcionamento, possa ser feito.

A ação da Justiça conduz – umas vezes bem, outras mal – a punir os que ela considera culpados de crimes e a absolver os que ela entende não ter provas suficientes para isso, ou mesmo que, comprovadamente, não considera terem cometido os crimes de que foram acusados.

Por isso, o sistema judicial contempla um conjunto de garantias, designadamente em termos de recursos e de reapreciação das decisões inicialmente tomadas, processadas por outros e diferentes magistrados e instâncias judiciais.

Por isso, e apesar disso, a Justiça suscita apreciações alternadamente positivas e negativas, por parte de quem é por ela investigado e julgado e, nessa condição, absolvido ou condenado.  

O uso indevido que, em alguns casos, com as mais diversas intenções políticas, da sua atuação é feito, por uns e outros, dentro e fora do sistema de Justiça, não deve, mesmo assim, levar a condenar de tabela – como muitos fazem da política e dos políticos – a generalidade dos magistrados e as suas estruturas funcionais.

A crítica à sua atuação é legítima e deve ser considerada importante para o seu aprimoramento e responsabilização, mas, como na política, uma coisa é uma crítica fundada, outra, bem diferente, é uma campanha oportunista dirigida à sua descredibilização, assente, sobretudo, em sound bites e tendo como objetivo estratégias políticas circunstanciais que são alheias à Justiça.

Afinal, juízes e procuradores – mesmo quando agem mal – também gozam da presunção de inocência, pelo menos até ao momento em que se prove que prevaricaram.

De Robespierre até hoje, percorreu-se um longo percurso, no que respeita à Justiça penal.