França: barril de pólvora

França: barril de pólvora


Rejeitada por Macron, a ideia de uma guerra civil está presente à esquerda e à direita. A violência foi muita.


Por Teresa Nogueira Pinto

Em abril, Emanuelle Macron anunciou o relançamento do seu segundo mandato com cem dias de «apaziguamento, unidade, ambição e ação ao serviço da França». Mas ainda na ressaca dos protestos contra a reforma das pensões, o caos voltou às ruas. Desta vez, os motins têm raízes mais antigas, evidenciam clivagens mais profundas e acentuam visões irreconciliáveis sobre o que é, e o que deveria ser, a República. 

‘Nahel é filho de todos’

Há sempre um acontecimento concreto que desencadeia os protestos, normalmente uma tragédia. Nahel, um jovem de 17 anos de ascendência argelina e marroquina, foi parado numa operação de controlo policial, por alegadamente estar a conduzir de forma perigosa. Não obedeceu à ordem de parar, e morreu depois de ser alvejado pela polícia. Filho dos ‘bairros difíceis’ e da imigração, Nahel não era um criminoso, embora fosse conhecido da Justiça.
A tragédia suscita várias leituras. Para uns, é prova do racismo estrutural da polícia (e da República). A mãe de Nahel, que perdeu o seu único filho, declarou à TV5: «Não culpo a polícia. Eu culpo uma pessoa: a que tirou a vida do meu filho». Acrescentando que o agente «viu um rosto árabe, um miúdo, e quis tirar-lhe a vida». O agente, de 38 anos, foi detido e acusado de homicídio voluntário.

Segundo Sebastian Roché, politólogo e especialista em questões de segurança, a tragédia resulta de uma lei de 2017 que, mediante uma formulação vaga e criticada por vários juristas, autoriza à Polícia o uso de armas de fogo como medida preventiva. Em entrevista ao Le Temps, Roché refere que a lei foi aprovada num contexto marcado pelo aumento dos ataques terroristas contra policiais e pela ideia de «uma Polícia desarmada face a uma sociedade cada vez mais violenta». Desde então, o número de mortos às mãos da Polícia após episódios de desobediência em controlos rotineiros é anormalmente alto.

Para muitos, a violência repete, nas suas causas e dinâmica, os tumultos de 2005, que eclodiram depois de dois adolescentes, Bouna Traoré e Zyed Benna, terem morrido eletrocutados numa subestação elétrica onde se refugiaram quando tentavam fugir à Polícia. Mas desta vez os protestos foram mais intensos, deixaram um rastro de destruição maior e chegaram a todo o país. 

Noites a ferro e fogo

45.000 polícias na rua em antecipação de um «teatro de violência urbana». O saldo de várias noites de protestos foi de milhares de detidos e centenas de polícias feridos. Veículos particulares e transportes públicos foram incendiados, centenas de edifícios queimados ou vandalizados, incluindo esquadras da Polícia, escolas e bibliotecas públicas. Lojas de eletrónica, tabaco e roupas de desporto foram pilhadas, e os produtos posteriormente vendidos nas ruas ou na internet, onde, segundo a Polícia, explodiu o número de contas de vendedores. Na sequência dos protestos houve linhas de transportes encerradas e eventos cancelados. 

Na segunda-feira, o presidente da confederação empresarial francesa estimou os prejuízos para as empresas em mil milhões de Euros.

O Presidente Macron foi ao terreno quando se registou uma diminuição da intensidade dos motins, na segunda-feira à noite, numa visita não anunciada à Polícia de Paris, num gesto de apoio às forças de autoridade. 
Jean Messiha, porta-voz da candidatura de Zemmour às presidenciais, lançou uma campanha de recolha de fundos para a família do polícia acusado de homicídio. Segundo os promotores, o agente limitou-se a «fazer o seu trabalho» e foi condenado a «pagar um preço muito alto». A conta, encerrada na terça-feira, teve mais de 80.000 doações, chegando aos 1 636 190 milhões de euros em seis dias. Para a deputada da França Insubmissa, Clémence Guetté, o apoio mostra «indecência e horror absoluto»: «Quase um milhão de euros angariados por iniciativa de um polemista de extrema-direita em apoio a um polícia que matou um adolescente. A mensagem? Matar um árabe compensa».

‘A lei somos nós’

«A lei somos nós», «Morte aos porcos», «Um keuf bom é um keuf morto», «Tiraram-nos uma vida, queremos um polícia». As frases, inscritas em edifícios por todo o país, eram palavras de ordem dos motins protagonizados por jovens, muitos deles adolescentes.

Rejeitada por Macron, a ideia de guerra civil está presente à esquerda e à direita, entre manifestantes, polícias e detentores de cargos públicos. Em L’Haÿ-les-Roses, a mulher e os dois filhos do Presidente da Câmara ficaram feridos depois de um carro ter sido projetado contra a casa do autarca, Vincent Jeanbrun. Para Jeanbrun, eleito pelo Les Républicains (LR), tratou-se de uma tentativa de assassinato: «Tentaram assassinar a minha mulher e os meus dois filhos, queimando-os vivos enquanto dormiam». 

Stéphanie Von Euw, Presidente da Câmara de Pontoise, foi atacada enquanto estava no carro, tendo sofrido ferimentos ligeiros. Contou o incidente em declarações à Europe1: «Reconheceram-me e, literalmente, bombardearam-me [com tiros de fogo de artifício]. Depois, dois jovens saltaram sobre a viatura e começaram a abaná-la. Ouvi: ‘É a Presidente da Câmara, é a Presidente da Câmara, vamos fazer-lhe a folha!’».

O líder da associação de autarcas franceses deixou um alerta: «Se a calma está de volta, é muito graças ao formidável trabalho das forças da ordem, mas também porque os traficantes apitaram para o fim do recreio. É revelador de uma ordem mafiosa. Há bairros inteiros controlados por eles».

Resposta política 

Na segunda noite de protestos, Emanuelle Macron foi a um concerto de Elton John. Dois dias depois, tornava-se evidente a urgência, e o Presidente foi obrigado a sair mais cedo de um encontro do Conselho Europeu e a adiar uma visita oficial à Alemanha. 

Até segunda-feira, Macron falou pouco e não apareceu. Depois, durante uma visita surpresa à Polícia de Paris, afirmou: «É preciso mantermo-nos cautelosos, mas o pico a que assistimos nos últimos dias já passou». 

Macron resistiu às pressões à direita, e não declarou o estado de emergência, consciente que depois disso não lhe restaria mais nada. Uma medida que, segundo uma sondagem do Ifop para o Le Figaro, sete em dez franceses apoiariam. Número em linha com a percentagem de inquiridos (69 por cento) que diz condenar os protestos. Já 28 por cento afirmou compreender, mas não aprovar, e apenas 3 por cento expressaram apoio. 

A primeira-ministra garantiu «tolerância zero» aos atos de violência, e o ministro da Economia prometeu ajuda às empresas e comerciantes cujos estabelecimentos foram vandalizados. Na terça-feira, após uma reunião com mais de 250 autarcas, Macron anunciou «uma lei de urgência para esmagar os prazos, e criar um procedimento para acelerar a reconstrução». Indo ao encontro de uma reivindicação da direita, mencionou o possível corte de subsídios sociais às famílias dos que participaram nos motins: «Deveríamos poder penalizar fácil e financeiramente as famílias na primeira infração».

Mélenchon isolado, Le Pen reforçada 

Ainda que a origem não lhe possa ser imputada, os acontecimentos evidenciaram a debilidade política de Macron, resultaram em dificuldades para a esquerda e em (mais) uma oportunidade para Le Pen. 

No Twitter, Jean-Luc Mélenchon afirmou: «Os cães de guarda ordenam-nos que apelemos à calma, nós apelamos à justiça». Mas os ataques a edifícios públicos e contra eleitos tornaram politicamente difícil, mesmo para a esquerda radical, apoiar os revoltosos. E também evidenciaram dilemas e contradições. Em Brest, um café LGBT foi obrigado a fechar provisoriamente depois de ser apontado como alvo prioritário nas redes sociais: «Queimemos os PD, que eles morram no inferno do Corão», «Explodam o Happy Café, façam respeitar a nossa religião».

Os protestos tornam as linhas políticas menos claras. À direita, o LR e a direita identitária do Reconquête convergiram no apelo ao estado de emergência e apoio às forças de autoridade. Se, para Zemmour, os subúrbios se transformaram em «enclaves étnicos», para Guilhem Carayon, líder da juventude do LR, trata-se de uma «guerra civilizacional». Éric Ciotti, presidente do LR, propôs que se retirasse a nacionalidade francesa aos participantes nos tumultos que tenham dupla nacionalidade para «mostrar que a França reage». 

Marine Le Pen reforça a imagem presidenciável, consciente de que é preciso vencer as eleições para chegar ao Eliseu. Como nos protestos contra a reforma das pensões, absteve-se de declarações incendiárias, que deixou para o Presidente do Rassemblement National (RN), Jordan Bardarella. Mas a mudança é de forma, não de substância. Num discurso na Assembleia Nacional, Le Pen questionou a Primeira-ministra: «Agora que o nosso país está entregue à pilhagem, ao saque e a uma raiva incendiária, coloco-lhe a questão que colocam todos os franceses: que fizeram vocês da França? Vocês que seguem a política dos vossos predecessores, a mesma desde há quarenta anos. (..). Que fizeram vocês que deixaram prosperar a ignorância sobre a nossa cultura, a hostilidade face à autoridade legal do Estado, a legitimidade das nossas leis e o ódio ao nosso povo? (…) É preciso, antes de mais nada, parar com a imigração anárquica».

Crise profunda

Os protestos populares obedecem a uma dinâmica própria. Podem ser reprimidos, desmobilizar com o tempo, ou levar a revoluções. As redes sociais, plataformas de projeção do descontentamento, mobilização e organização, podem acelerar os protestos, mas não são a sua causa. 

Hoje a revolta é uma ameaça constante que paira, como uma espada de Dâmocles, sobre a cabeça da República. Por agora a violência esmoreceu, mas poderá voltar no 14 de julho; ou em setembro, quando a França acolher o campeonato mundial de rugby, ou em 2024, durante os Jogos Olímpicos. Ou quando houver outra tragédia, como as que vitimaram Bouna, Zyed ou Nahel. 

Uma crise profunda que divide dois lados, cada um com as suas razões, noção de comunidade, pertença ou marginalização, os seus mártires e inimigos. À esquerda não se fala de motins, mas de revoltas, e invoca-se a precariedade dos subúrbios e o racismo estrutural. À direita fala-se de ordem, e lembra-se os franceses que não vandalizam nem pilham, mas pagam os custos da destruição, e uma polícia mal paga obrigada a lidar com o resultado de políticas falhadas.

Num discurso à nação durante os motins de 2005, Jacques Chirac afirmou que «os acontecimentos eram testemunho de um mal profundo», uma «crise de sentido, de referências, de identidade» e lembrou aos jovens manifestantes que eles eram «todos filhos e filhas da República». 

Como foi lembrado a Le Pen, a maioria destes jovens são franceses, filhos da República. Mas são também filhos da imigração. Uma imigração que parece aceitar os termos do contrato social que a França, e o seu generoso estado-providência, propõe. Segundo o Institut national de la statistique et des études économiques, 90 por cento das pessoas imigradas deseja permanecer no país. 

E, como em 2005, é contra a França que estes jovens se revoltam. Dezoito anos mais tarde, como muitos previram à esquerda e à direita, a crise aprofundou-se. A rebelião contra os princípios, símbolos e representantes sugere que a nação francesa está a desintegrar-se. E, sem nação, a República pode não subsistir.