Mentecaptos num país de chico-espertos


Tudo é cada vez mais tribal, entrincheirado, exercitado em função de interesses particulares, sem capacidade de gerar diálogo, compromisso e soluções que possam sobreviver às circunstâncias das mudanças do poder político em funções.


O cidadão devia estar no centro da organização e das respostas dos serviços públicos, da ação dos partidos políticos e do modelo de sociedade. A cidadania, 50 anos depois de Abril, deveria ser o resultado de um processo de oportunidades democratizadas de realização pessoal, crescimento e capacitação para pensar e agir em função das convicções construídas ao longo da vida, ao invés da configuração para o debitar das aprendizagens, o conformismo e a indiferença perante as circunstâncias. Esta configuração por baixo do exercício cívico e da política, conduziu à persistência de um quadro de existência em que os cidadãos são tratados como mentecaptos num país de chico-espertos, posicionados em diversas latitudes e longitudes dos nossos dia-a-dia, dos temas mais estratégicos aos mais corriqueiros. Sem capacidade generalizada de filtro e triagem, a par de fraca consistência de memória e de afirmação dos direitos, deveres, liberdades e garantias, foram geradas e são mantidas opções sem sentido de alegada proteção dos cidadãos que contrastam com libertinagens que deveriam gerar repúdio comunitário.

Um dos casos mais paradigmáticos são os dias de reflexão nas vésperas de atos eleitorais, quando se introduziram mecanismos de voto antecipado, mas também as limitações formais previstas na lei que a Comissão Nacional de Eleições, tão decrépita como zelosa do anacrónico, impõe da retirada de cartazes locais enquanto a ação política e os anúncios de medidas regionais e nacionais prosseguem, pelos governos em funções e pelas oposições. Só mesmo a má consciência em relação ao caciquismo persistente em muitas expressões das dinâmicas eleitorais impede que, de uma vez por todas, se erradique o dia da reflexão e outras imposições desfasadas do nosso tempo, com um redobrado esforço nacional de reforço da consciência cívica e da capacidade de triagem, cada vez mais confrontada com desafios de literacia real, das redes sociais, da desinformação e da inteligência artificial. É preciso fazer muito mais de estrutural, na formação cívica dos cidadãos e na sua capacitação para a realização das suas próprias triagens, em vez de se imporem proteções excessivas, conformismos que bastem com poucochinho e soluções tipo queijo suíço que tratam as pessoas como mentecaptas com desmultiplicação de buracos para os chico-espertos. Até porque, onde houver uma regra, numa sociedade com cada vez menos compromisso social e crescente egocentrismo, haverá sempre uma forma de a contornar, descaradamente ou nas zonas cinzentas.

É este o drama do triunfo da circunstância, não se responde ao que é estrutural e transversal na sociedade portuguesa, tudo se reconduz à manutenção, afirmação ou desgaste dos poderes e interesses de turno, particulares ou mais abrangentes, no governo e na oposição.

Ou alguém acha que a verborreia de suporte do Chega ao atual funcionamento da justiça sobreviverá se esse impulso de investigação judicial errático e inconsistente superar as baias e se projetar nos interesses subjacentes a esse projeto partidário, ainda sem poder real de exercício de funções executivas, mas com interesses próprios e implantação eleitoral e mediática? Ou que as dinâmicas das instituições democráticas oscilem em função de quem está no exercício do poder e não do esforço de construção de respostas sensatas, sustentáveis e justas. Ou que a falta de sentido institucional vigente faça com que respostas que são partidárias, ainda que sobre propostas para os jovens (IRS e Habitação), no quadro do jogo político democrático, sejam dadas pela voz de um líder de uma juventude, numa espiral de infantilização do Partido Socialista, onde tudo se confunde, depois de décadas com grande partido da Esquerda democrática, com capacidade para albergar o pluralismo, a diversidade do centro-esquerda e a abrangência da sociedade portuguesa.

O país está a entrar em espirais demasiado perigosas pelo que sinalizam para os cidadãos e para o funcionamento da sociedade, pela proliferação dos “faz de contas” em vez de ataque às necessidades a partir de mínimos de diálogo e compromisso.

Há governo, não há maioria parlamentar, mas faz-se de conta de que existe.

Não há recursos financeiros para tudo, mas faz-se de conta que existem, uma vez mais sem critérios inteligíveis.

Este quadro de sinais, indiferentes a mínimos de respeito pelas regras, projetado nos cidadãos, implica que nível de cumprimento das normas e das obrigações? As que são devidas por fazer parte de uma sociedade? As que lhe apetecem em função do ego ou das particularidades?

Tudo é cada vez mais tribal, entrincheirado, exercitado em função de interesses particulares, sem capacidade de gerar diálogo, compromisso e soluções que possam sobreviver às circunstâncias das mudanças do poder político em funções. Prosseguiremos assim num faz e desfaz, ao ritmo das circunstâncias, em que os cidadãos são tratados como mentecaptos perante a proliferação de chico-espertos e a degradação da cidadania, do compromisso social e do interesse geral.

Não se alterem estes quadros individuais e comunitários que isto tem tudo para correr mal.

NOTAS FINAIS

O MOMENTO ERRADO DO FECHO DO ACORDO. O Governo chegou a acordo com parte substancial dos sindicatos dos professores sobre a recuperação do tempo perdido. Tendo o compromisso eleitoral de o fazer, deveria ter fechado o acordo em simultâneo com as forças de segurança e os profissionais de saúde para não gerar mais comparações e novas reivindicações de outros setores. Erro, como o dos de sempre em ficarem de fora de qualquer compromisso.

INTOLERÁVEIS INCIVILIDADES. Os Bombeiros foram apedrejados quando se deslocavam para combater incêndio em Mourão. Os detidos foram identificados e soltos para posterior audição em tribunal. É insustentável manter este deslaço que sinaliza disparate e dá abrigo à implantação da extrema-direita e dos populismos. Não perceber isto é não perceber nada do que aconteceu e acontece.

MADEIRA À MESMA MANEIRA. Mais do mesmo, com maior pulverização eleitoral, apesar da ausência parlamentar de CDU e BE. O enquisto do PSD é um fenómeno tipo “rouba, mas faz”, que lá como noutras latitudes, precisa de um reajuste ou reformulação das respostas alternativas.

Mentecaptos num país de chico-espertos


Tudo é cada vez mais tribal, entrincheirado, exercitado em função de interesses particulares, sem capacidade de gerar diálogo, compromisso e soluções que possam sobreviver às circunstâncias das mudanças do poder político em funções.


O cidadão devia estar no centro da organização e das respostas dos serviços públicos, da ação dos partidos políticos e do modelo de sociedade. A cidadania, 50 anos depois de Abril, deveria ser o resultado de um processo de oportunidades democratizadas de realização pessoal, crescimento e capacitação para pensar e agir em função das convicções construídas ao longo da vida, ao invés da configuração para o debitar das aprendizagens, o conformismo e a indiferença perante as circunstâncias. Esta configuração por baixo do exercício cívico e da política, conduziu à persistência de um quadro de existência em que os cidadãos são tratados como mentecaptos num país de chico-espertos, posicionados em diversas latitudes e longitudes dos nossos dia-a-dia, dos temas mais estratégicos aos mais corriqueiros. Sem capacidade generalizada de filtro e triagem, a par de fraca consistência de memória e de afirmação dos direitos, deveres, liberdades e garantias, foram geradas e são mantidas opções sem sentido de alegada proteção dos cidadãos que contrastam com libertinagens que deveriam gerar repúdio comunitário.

Um dos casos mais paradigmáticos são os dias de reflexão nas vésperas de atos eleitorais, quando se introduziram mecanismos de voto antecipado, mas também as limitações formais previstas na lei que a Comissão Nacional de Eleições, tão decrépita como zelosa do anacrónico, impõe da retirada de cartazes locais enquanto a ação política e os anúncios de medidas regionais e nacionais prosseguem, pelos governos em funções e pelas oposições. Só mesmo a má consciência em relação ao caciquismo persistente em muitas expressões das dinâmicas eleitorais impede que, de uma vez por todas, se erradique o dia da reflexão e outras imposições desfasadas do nosso tempo, com um redobrado esforço nacional de reforço da consciência cívica e da capacidade de triagem, cada vez mais confrontada com desafios de literacia real, das redes sociais, da desinformação e da inteligência artificial. É preciso fazer muito mais de estrutural, na formação cívica dos cidadãos e na sua capacitação para a realização das suas próprias triagens, em vez de se imporem proteções excessivas, conformismos que bastem com poucochinho e soluções tipo queijo suíço que tratam as pessoas como mentecaptas com desmultiplicação de buracos para os chico-espertos. Até porque, onde houver uma regra, numa sociedade com cada vez menos compromisso social e crescente egocentrismo, haverá sempre uma forma de a contornar, descaradamente ou nas zonas cinzentas.

É este o drama do triunfo da circunstância, não se responde ao que é estrutural e transversal na sociedade portuguesa, tudo se reconduz à manutenção, afirmação ou desgaste dos poderes e interesses de turno, particulares ou mais abrangentes, no governo e na oposição.

Ou alguém acha que a verborreia de suporte do Chega ao atual funcionamento da justiça sobreviverá se esse impulso de investigação judicial errático e inconsistente superar as baias e se projetar nos interesses subjacentes a esse projeto partidário, ainda sem poder real de exercício de funções executivas, mas com interesses próprios e implantação eleitoral e mediática? Ou que as dinâmicas das instituições democráticas oscilem em função de quem está no exercício do poder e não do esforço de construção de respostas sensatas, sustentáveis e justas. Ou que a falta de sentido institucional vigente faça com que respostas que são partidárias, ainda que sobre propostas para os jovens (IRS e Habitação), no quadro do jogo político democrático, sejam dadas pela voz de um líder de uma juventude, numa espiral de infantilização do Partido Socialista, onde tudo se confunde, depois de décadas com grande partido da Esquerda democrática, com capacidade para albergar o pluralismo, a diversidade do centro-esquerda e a abrangência da sociedade portuguesa.

O país está a entrar em espirais demasiado perigosas pelo que sinalizam para os cidadãos e para o funcionamento da sociedade, pela proliferação dos “faz de contas” em vez de ataque às necessidades a partir de mínimos de diálogo e compromisso.

Há governo, não há maioria parlamentar, mas faz-se de conta de que existe.

Não há recursos financeiros para tudo, mas faz-se de conta que existem, uma vez mais sem critérios inteligíveis.

Este quadro de sinais, indiferentes a mínimos de respeito pelas regras, projetado nos cidadãos, implica que nível de cumprimento das normas e das obrigações? As que são devidas por fazer parte de uma sociedade? As que lhe apetecem em função do ego ou das particularidades?

Tudo é cada vez mais tribal, entrincheirado, exercitado em função de interesses particulares, sem capacidade de gerar diálogo, compromisso e soluções que possam sobreviver às circunstâncias das mudanças do poder político em funções. Prosseguiremos assim num faz e desfaz, ao ritmo das circunstâncias, em que os cidadãos são tratados como mentecaptos perante a proliferação de chico-espertos e a degradação da cidadania, do compromisso social e do interesse geral.

Não se alterem estes quadros individuais e comunitários que isto tem tudo para correr mal.

NOTAS FINAIS

O MOMENTO ERRADO DO FECHO DO ACORDO. O Governo chegou a acordo com parte substancial dos sindicatos dos professores sobre a recuperação do tempo perdido. Tendo o compromisso eleitoral de o fazer, deveria ter fechado o acordo em simultâneo com as forças de segurança e os profissionais de saúde para não gerar mais comparações e novas reivindicações de outros setores. Erro, como o dos de sempre em ficarem de fora de qualquer compromisso.

INTOLERÁVEIS INCIVILIDADES. Os Bombeiros foram apedrejados quando se deslocavam para combater incêndio em Mourão. Os detidos foram identificados e soltos para posterior audição em tribunal. É insustentável manter este deslaço que sinaliza disparate e dá abrigo à implantação da extrema-direita e dos populismos. Não perceber isto é não perceber nada do que aconteceu e acontece.

MADEIRA À MESMA MANEIRA. Mais do mesmo, com maior pulverização eleitoral, apesar da ausência parlamentar de CDU e BE. O enquisto do PSD é um fenómeno tipo “rouba, mas faz”, que lá como noutras latitudes, precisa de um reajuste ou reformulação das respostas alternativas.