Primavera Sound. Nem um dilúvio bíblico tirou a coroa da cabeça de Kendrick Lamar

Primavera Sound. Nem um dilúvio bíblico tirou a coroa da cabeça de Kendrick Lamar


Entre o rap e hip-hop de Kendrick, o flamenco e reggaeton de Rosalía, aconteceu, entre os dias 7 e 10 de junho, mais uma edição do Primavera Sound que, apesar de marcada por  grandes chuvadas, proporcionou belos momentos na cidade do Porto.


Antes do início do concerto mais esperado do primeiro dia do festival Primavera Sound – falamos, claro, do rapper de Compton, Kendrick Lamar – uns jovens discutiam quem era o melhor artista de hip-hop contemporâneo.

Alguns nomes referidos incluíam J. Cole, indiscutivelmente em segundo lugar, segundo os jovens, mas também 21 Savage ou Joey Badass.

Mas havia algo que permanecia um facto escrito em pedra para estes melómanos: Kendrick Lamar é o melhor rapper da atualidade e bastaram os primeiros versos de N95 – “Hello, new world, all the boys and girls / I got some true stories to tell” – para o mar de fãs, vestidos com capas de chuva completamente encharcadas, o comprovar.

Ao longo das quase 1h30 de concerto, o rapper, que no ano passado editou o aclamado Mr. Morale & The Big Steppers, apesar de queixas de que o espetáculo podia ter sido um pouco mais esforçado – em vez de ser apenas o rapper a cantar sobre um instrumental, podia ter existido uma banda ou um coro que ajudasse a maximizar as suas músicas – mostrou porque é que continua a ser um dos principais (se não o maior) artistas dentro da música popular.

Com músicas que apelavam a momentos mais contemplativos, Worldwide Steppers, momentos dançáveis, Die Hard, músicas que chegavam a roçar a balada mais romântica, LOVE., a eclética discografia repleta de grandes narrativas, m.A.A.d city, serviu para garantir uma resposta efusiva da audiência que (bem tentava) acompanhar os versos do rapper, onde, em muitas ocasiões, nem sequer era possível ouvir o músico, devido ao vociferar dos seus fãs.

Antes do final do concerto, Kendrick agradeceu a persistência e perseverança de todos aqueles que aguentaram a chuva para o ver, brindando a audiência com uma participação especial de Baby Keem, rapper que tinha atuado horas antes e que é seu primo, oferecendo os seus talentos em faixas como family ties.

 

Bailar flamenco e bater o pé na lama

Já tínhamos ido ver o fenómeno da música espanhola, Rosalía, ao Altice Arena, por isso, as expectativas estavam um bocado mistas.

Era complicado superar um concerto tão especial, a solo e numa sala fechada, mas também estávamos curiosos para ver o que a cantora tinha para oferecer de diferente no segundo dia do Primavera Sound, que continuou a ser marcado por chuvas torrenciais que deixaram o recinto num cenário semelhante a um pântano.

Apesar de terem sido concertos muito semelhantes (não fossem da mesma tour), e de terem faltado algumas canções marcantes da sua discografia (como DELIRIO DE GRANDEZA ou músicas do seu primeiro disco, Los ángeles), a cantora voltou a apresentar-se em Portugal em grande forma e, desde o momento que iniciou o concerto, com a inevitável Saoko, conquistou a audiência.

Na linguagem audiovisual, os planos contrapicados, com a câmara posicionada de baixo e a apontar para cima, visam ressaltar a grandeza da pessoa que está a ser filmada, e foi assim que Rosalía surgiu no grande ecrã durante grande parte do seu concerto.

Não era preciso esta (pouco) subtil metáfora cinematográfica para percebermos que estamos perante um dos maiores fenómenos da música pop mundial e a cantora espanhola veio apenas assentar a sua posição.

Quem também veio a Portugal dizer presente e mostrar por que é um dos maiores fenómenos da música eletrónica atual foi o produtor britânico Fred Again…, um dos cabeças de cartaz deste segundo dia do Primavera Sound, em estreia em Portugal.

Quebrando as barreiras de como um DJ pode também ser um entusiasmante headliner de um festival, Fred Again… conseguiu colocar todas as pessoas da colina do Palco Vodafone a dançar e a bater o pé num ambiente de grande fraternidade.

 

Encontros geracionais

Foi ao terceiro dia do Primavera Sound que a chuva finalmente acalmou e deixou os festivaleiros aproveitarem – sem grandes preocupações adicionais – os concertos, num dia que ofereceu uma vasta panóplia de estilos musicais.

O certame proporcionou a oportunidade de ouvir desde diferentes gerações de artistas de música eletrónica, como os Pet Shop Boys ou os Darkside, o estridente som do rock, representado pelos My Morning Jacket ou os Wednesday, o punk feminista das Le Tigre, o hip-hop, de Pusha T, ou até o reggaeton, da Tokischa.

Comecemos pelos cabeças de cartaz deste dia, os Pet Shop Boys, que deram um concerto recheado dos seus ‘greatest hits’ num autêntico encontro geracional, com fãs de várias idades a desfrutarem de êxitos intemporais como You Were Always on My Mind.

A experiência dos artistas falou mais alto na competência do concerto, oferecendo uma excelente experiência visual com as suas projeções, mas também com a qualidade do som do conjunto formado pelos britânicos Neil Tennant e Chris Lowe.

No sábado, dia em que o Manchester City se sagrou rei da Europa com a conquista da Champions League, também o Reino Unido dominou o Primavera Sound, com atuações concorridíssimas (e com alguns problemas técnicos) de grandes representantes das terras de sua majestade, nomeadamente Blur e New Order.

A banda de Damon Albarn foi responsável por uma das mais impressionantes enchentes do Palco Porto (que, pelo segundo dia consecutivo, continuava com um cheiro insuportável) e brindaram os seus leais fãs com um concerto repleto de hinos, desde as festivaleiras Parklife e Boys & Girls até faixas mais contemplativas como a Sing.

Sem sair muito dos moldes típicos dos seus concertos e sem carregar muito no “acelerador”, a banda londrina cumpriu o seu trabalho e satisfez o apetite das diversas gerações presentes no concerto. O britpop continua vivo.

Minutos antes da atuação dos Blur, a banda de Manchester, New Order, ofereceu um dos melhores concertos do dia, apesar de ter enfrentado diversos obstáculos, com problemas técnicos, durante a performance da faixa True Faith, que obrigaram a interromper o concerto em duas ocasiões.

Mesmo não tendo conseguido concluir esta música, a banda, agora liderada por Bernard Sumner, regressou e, perante os fãs que não arredaram pé, tocaram a épica Blue Monday, uma das mais importantes faixas no cânone da música eletrónica, Temptation – que teve um belo momento com grande parte dos “resistentes” da audiência a cantarem o refrão – e Love Will Tear Us Apart, um tributo aos Joy Division, banda cujo final abriu as portas à criação dos New Order.

O facto de o grupo de Manchester por vezes transparecer uma aura gélida e impessoal serviu para mostrar que os New Order são apenas humanos e a forma como lidaram com o problema deu aos artistas e à sua música uma nova dimensão humana e calorosa.

Foi um momento especial e é bonito ver como pessoas que, provavelmente, já podiam levar um neto para o festival continuam a saltar de alegria e entusiasmo quando ouvem os acordes iniciais da Love Will Tear Us Apart como se fosse pela primeira vez.