Um lugar de reencontro entre os vivos e os mortos

Um lugar de reencontro entre os vivos e os mortos


Quando David Guéniot se viu confrontado com a decisão de escolher uma fotografia da sua companheira para o velório, bloqueou. Que pessoa mostrar? Que fotografia escolher? Só depois de ter feito nascer ‘O Livro de Patrícia’, que reúne o arquivo da fotógrafa, conseguiu chegar a uma resposta.


Cada um vive o amor à sua maneira e há quem o queira transformar em algo que dure para sempre, para poder sempre recordá-lo. Claro que uma das primeiras coisas que nos vêm à memória quando se fala em recordação é a fotografia. E foi a isso que David Guéniot recorreu pouco tempo depois de Patrícia, sua companheira, ter falecido.

Quando Patrícia morreu em Novembro de 2017, deixou inacabado um projeto de livro sobre a sua História pessoal da Fotografia. Meses antes, tinha começado a reunir documentos: exemplos que dava aos seus alunos, manuais obsoletos comprados em segunda mão, as suas primeiras fotografias. No dia da sua morte, o representante da agência funerária pediu a David um retrato da fotógrafa, para o velório. Mas que fotografia escolher? Qual pessoa mostrar? Como resumir, reduzir e concentrar uma pessoa numa só imagem? N’O Livro da Patrícia (Ghost Editions), lançado no dia 4 de novembro, o seu companheiro relata a busca dessa imagem impossível e revisita o projeto inacabado da Patrícia. 

O processo criativo

«Esta história não é muito fácil de contar. São várias histórias que se sobrepõem. A Patrícia morreu e veio cá a casa o funcionário da agência funerária que me pediu um retrato para acompanhar o corpo na altura do velório. Esse pedido, para mim, criou uma espécie de dificuldade em perceber que fotografia escolher. Ou seja, o que é que representa essa fotografia? Será que escolho uma fotografia que tente criar a ilusão que esta pessoa ainda está viva? Quem é esta pessoa? Porque com o tempo mudamos. Será que devo escolher uma fotografia que esteja mais perto do momento da morte? Ou escolher uma imagem dela mais bonita, mais jovem… Ou seja, para mim, a própria imagem cria uma ficção sobre a identidade da pessoa. Não encontrei nada… Andei às voltas e decidi que não haveria fotografia para o velório», revela ao telefone com o Nascer do SOL David Guéniot. Foi essa ideia da fotografia relacionada com a identidade e com a morte que o fez perceber que ao perpetuar memórias (e sendo Patrícia fotógrafa) podia criar uma espécie de livro. 

«Acho que o impulso de escrever os textos teve a ver com uma pergunta que pairava em mim: ‘Como é que é possível ainda sentir a presença da pessoa mesmo tendo ela morrido? Essa ausência não existe, porque só o facto de existir a ausência já é qualquer coisa’», explica. Foi à volta desta ideia que começaram a ser construídos os textos. «Queria tentar resolver esse enigma. Encontrar um lugar para essa presença», conta, acrescentando que não acredita que exista um momento em que temos de arrumar as pessoas no armário do esquecimento. «O livro conta essa história. A forma como os vivos criam lugares para os mortos dentro das suas vidas», frisa. 

E foi dessa forma que o livro começou a ser a casa que podia «receber a presença da Patrícia». «Ou seja, eu poder reencontrar-me com ela. Como se fosse mais um vestido para ela vestir e andar no mundo». 

Os maiores desafios

Interrogado sobre a parte mais dura do processo, David não tem dúvidas de que é a «solidão»: «Quando fazes uma peça de teatro, um espetáculo de dança, tens uma equipa. Na escrita, não é assim. Há um frente a frente contigo próprio. Às vezes é muito difícil, ainda para mais quando são assuntos assim, como a morte de uma companheira», admite. 

A distância foi, por isso, «muito complicada», já que precisava de perceber o que é que isso valeria para os leitores. «Começas num processo terapêutico… Esse lado tem de existir. A própria escrita está ali para exorcizar essa morte, mas ao mesmo tempo alimenta a dor. É a minha dor pessoal, mas tenho de fazer a triagem. O que é que só me interessa a mim e o que é que pode interessar ao outro? Quero convidá-lo a acompanhar, a reencontrar essa ativação dos mortos de uma forma mais feliz». 

Apesar disso, não houve um único momento em que tenha pensado em desistir. «Eu tinha de resolver o enigma entre a presença e a existência. Tinha de ir até ao fim, encontrar uma resposta. Acho que a encontrei neste livro. O próprio livro é a resposta. Era uma necessidade», revela o editor. 

Relativamente à triagem do material encontrado no computador da companheira, David Guéniot explica que a primeira fase foi de «despejar tudo». «Depois, a partir do momento em que tenho a ideia de fazer um livro, começa a criar-se a distância com o material. Estou a tentar encontrar chaves que me permitam construir uma composição»,explica, acrescentando que a parte de construção do livro é uma coisa «muito mais objetiva», já que teve de «encontrar estratégias de conexão com o leitor». Ou seja, nesta altura, o leitor já faz parte do livro. 

No que toca à estrutura dada à obra, David diz que ainda não sabe bem «como é que ela está estruturada»: «Acho que o livro tem entrelaçadas várias linhas de pensamento. Uma relacionada com a história que eu tinha com a Patrícia; a relação que ela tinha enquanto fotógrafa com a fotografia; alguns sentires da própria Patrícia em momentos mais delicados (como na altura em que perdeu a mãe). Há muitas coisas dentro do próprio livro», afirma. Por isso, também acha que este é um livro difícil de classificar. «Não é de fotografia, porque há testes, também não é ficção, não é um ensaio, não é um romance… A imagem é importante, mas sem o texto ela não chega. Sinto-o mais próximo da construção de um filme do que de uma exposição de fotografias», considera. 

Patrícia começou como fotógrafa amadora, depois começou a estudar, tornou-se profissional, depois artista… «Vemos aqui como é que a fotografia atravessa vários tipos de relação com ela. Era isso que ela planeava fazer no seu livro», lembra David. 

Ao Nascer do SOL, o editor confidencia que só depois da conclusão do projeto encontrou a fotografia que deveria ter cedido ao funcionário da funerária. «Acho que a fotografia da capa devia ter sido a escolhida para a altura do velório. Não me lembrei dela», lamenta. «É uma fotografia dela própria, mas o flash apaga a sua imagem, o rosto. É uma espécie de luz fugaz eternizada num instante. Ao mesmo tempo, a própria fotografia organiza o seu desaparecimento. Era essa imagem que procurava metaforicamente», remata.

No próximo dia 25 de Fevereiro, David Guéniot viaja até ao Porto, para a apresentação de O Livro da Patrícia, na Livraria Flâneur.