O país retratado no Censo de 2021 dá necessariamente que pensar. Nos últimos dez anos, Portugal registou um decréscimo populacional de 2,1%, tendo apenas as regiões de Lisboa e do Algarve contrariado esta tendência, com aumentos de 1,7% e 3,7%, respetivamente. No extremo oposto, estão as regiões da Madeira, com uma quebra de 6,2%, o Alentejo, com 6,9%, e os Açores, com 13,5%. Acentuam-se os desequilíbrios na distribuição da população pelo território nacional. Metade da população concentra-se em apenas 31 concelhos, sobretudo nos das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, enquanto o interior do país se esvazia cada vez mais. Acentuam-se os desequilíbrios ao nível do acesso a serviços, equipamentos e oportunidades de emprego, mais facilitado nas grandes cidades. Pressionadas, também é aí que mais se acentuam as dificuldades de acesso a uma habitação por via do mercado, apesar do aumento do valor de aquisição e do valor médio mensal da renda ser uma constante em todas as regiões do país, este último na ordem dos 42%.
Mas, se o acesso à habitação se tornou na última década mais difícil para as chamadas classes médias, o que dirá quem está abaixo desta linha? Para essas pessoas, tornou-se muitas vezes uma missão impossível. A par das assimetrias territoriais, o último relatório da EAPN (European Anti Poverty Network – Rede Europeia Anti-Pobreza). Portugal aponta para um elevado aumento das desigualdades sociais, que se traduz num aumento de 5,8% no coeficiente de Gini. Segundo a mesma fonte, encontram-se atualmente em risco de pobreza ou exclusão social diferentes grupos, dos quais se destacam: as mulheres, os idosos, com 65 anos ou mais, os agregados familiares compostos por um adulto com crianças dependentes, as pessoas fora do mercado de trabalho e com níveis de escolaridade até ao ensino básico, mas também os arrendatários e as populações das zonas pouco povoadas. O cenário não é, portanto, animador.
Para além do problema decorrente da afirmação de um mercado de habitação progressivamente mais voraz, dispara a precariedade habitacional. Segundo dados recentes, recolhidos no quadro do projeto “Habitação como 1.º Direito”, em curso no CiTUA-IST, relativos a março de 2022, vivem em Portugal pelo menos 80.000 agregados em situação de indignidade habitacional. Este conceito de indignidade habitacional, enquadrado num programa específico da Nova Geração de Políticas de Habitação lançada em 2018, o 1.º Direito-Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, compreende diferentes tipos de situação, nomeadamente de precariedade (onde entram as pessoas em situação de sem abrigo e as vítimas de violência doméstica, por exemplo), de insalubridade e insegurança, sobrelotação e inadequação.
Sinalizados nas estratégias locais de habitação desenvolvidas pelos diferentes municípios, estes agregados encontram hoje resposta no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), traçado para fazer frente ao impacto da pandemia, que se compromete a financiar 100% a fundo perdido pelo menos 26.000 soluções habitacionais até 30 de junho de 2026. Nesta corrida contra o tempo, a celeridade e motivação dos municípios na submissão, aprovação e contratualização de candidaturas ditam os lugares da frente, mas nem todos partem do mesmo lugar: enquanto municípios como o de Lisboa contam com uma equipa de técnicos municipais superior à do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, outros veem-se sem qualquer capacidade técnica para abraçar processos de candidatura complexos e burocráticos. Com efeito, o balanço dos contratos aprovados até à data, disponíveis no Portal de Transparência, dão conta de um acesso desigual ao financiamento, concentrado maioritariamente nos territórios de alta densidade, em particular na Área Metropolitana de Lisboa, que arrecada cerca de 60% da fatia até agora consumida. Esta concentração não traduz a proporção de agregados sinalizados, mas sobretudo a capacidade técnica dos municípios e as lacunas de um ainda inexistente Programa Nacional de Habitação. Um indicador desta ausência é que, perante o mesmo programa, os municípios do interior só conseguiram dar resposta a 2,3% dos agregados sinalizados nas suas estratégias locais de habitação, enquanto na Área Metropolitana de Lisboa este valor triplica.
Como pode a comunidade académica contribuir para a diminuição dos desequilíbrios e assimetrias estruturais do país? De várias formas, desde logo através do levantamento e sistematização de informação atualmente dispersa e fragmentada, como se vem fazendo no quadro do projeto “Habitação como 1.º Direito”, mas também da criação de conhecimento de qualidade nas várias áreas de intervenção, que permita cumprir, por exemplo, os requisitos de sustentabilidade ambiental exigidos no PRR ou criar condições de acesso favoráveis aos agregados e municípios com mais dificuldades. Este contributo pode e deve contribuir para uma tomada de decisão política: Como construir pontes entre investigadores e decisores políticos? É precisamente esta a razão de ser do Workshop promovido pela PLANAPP (Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva), que terá lugar em abril deste ano no CiTUA. Que país queremos ver retratado nos Censos de 2031?
Investigadora do Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura do Instituto Superior Técnico (CiTUA-IST)