Toco-San. O fenómeno dos “cães-humanos”

Toco-San. O fenómeno dos “cães-humanos”


Há quem a considere uma doença mental, outros associam-no a um fetiche sexual. A verdade é que ainda não existem dados científicos que o expliquem. São cada vez mais aqueles que, principalmente no Reino Unido, se consideram “cães-humanos”. O mais recente caso leva-nos, contudo, até ao Japão.


Por mais estranho que possa parecer, não é novidade que algumas pessoas gastam milhares de euros para se transformar ou se parecer com outras. Algumas, desejam aproximar-se do físico dos seus atores preferidos, outros vão ainda mais longe, querendo parecer-se com personagens de filmes, ou bonecos, como é o caso da Barbie Humana. Mas mais bizarro ainda têm sido os casos dos “homens-cães” que têm surgido ao longo dos últimos anos. Doença mental? Fetiche Sexual? Se há quem compre fatos de milhares de euros para se parecer com o seu cão preferido, outros urinam em postes, dormem em casotas e obedecem às ordens de um dono.

A verdade é que, segundo a psiquiatra Elsa Rocha Fernandes, existem algumas referências dentro desta comunidade (agora crescente), de indivíduos que se identificam como não-humanos (designados em inglês “animal-people ou “otherkin”) – sem que este termo seja um termo técnico/médico –, de que “este é um espaço seguro em que se podem exprimir; em que a não conformidade com os padrões típicos da experiência humana, de que se afastam, é aceite, sem ridicularização” e em que “não existe uma associação direta da experiência não humana à vivência de um fetiche sexual”. Não obstante, sublinha a especialista, vale lembrar que existem patologias psiquiátricas “que cursam com delírios, crenças irreais e inabaláveis que não cedem à argumentação lógica”, de que alguém é, por exemplo, “um animal”. 

Globalmente, o estudo da experiência dos que se identificam como não-humanos, pela comunidade científica, é ainda muito reduzido: “Demasiado reduzido para que existam dados concretos que nos permitam tirar conclusões mais aprofundadas sobre o fenómeno, por agora”, lamentou a médica. Porém, isso não significa que os casos não aumentem e se tornem cada vez mais comuns. 

Toco-San Foi em abril do ano passado que o japonês Toko-San se deu a conhecer, depois de criar um canal no Youtube – que já conta com 12,7 mil subscritores – onde vai colocando vídeos da sua rotina como um Collie (cães de pastoreio incluindo muitas raças puras como a Rough Collie famosa pela personagem Lassie). No canal, que se chama I want to be an animal, em português Eu quero ser um animal, o Collie pode ser visto a dizer adeus, a rebolar no chão, a abraçar peluches ou a fazer saltitar bolas de pingue-pongue numa raquete.

O primeiro vídeo, que é o da sua apresentação — já a vestir a pele do cão — tem mais de um milhão de visualizações. Nele, deitado sobre as quatro “patas”, vai virando com as mãos caninas algumas folhas onde diz quem é. Toko-san termina o vídeo a dizer adeus com as patas.

Desde criança que se sente um cão. Porém, só em 2022, conseguiu concretizar o seu desejo depois da reconhecida Zeppet ter atendido ao seu pedido incomum: criar um fato realista de cão, feito à medida. De acordo com a Mynavi, a empresa japonesa já forneceu diversos modelos para filmes, publicidades, parques de diversões e criou figurinos que foram vistos na televisão e figurinos de mascotes famosos. O homem gastou aproximadamente dois milhões de ienes – o que equivale 14 mil euros – para se parecer exatamente com a sua raça canina favorita.

Para conseguir o irrealismo do fato, a equipa responsável pela sua criação passou muito tempo a estudar o esqueleto canino. Além disso, recolheram “fotografias tiradas de vários ângulos para que a bela pelagem dos Collies” fosse reproduzida de forma fiel, “garantindo que iria fluir de uma forma natural”, explicou um funcionário da empresa à mesma publicação. A Zeppet demorou 40 dias para terminar a vestimenta, já que Toko continuava a adicionar melhorias para torná-la perfeita.

“Fiz um Collie porque parece real quando o coloco”, disse Toko à Mynavi .“Os meus preferidos são os animais quadrúpedes, principalmente os fofos. Entre eles, achei que um animal grande ficaria bem. Considerando que seria um modelo realista, resolvi fazer um cão”, explicou, acrescentando que encontrou tudo o que procurava na sua raça preferida.

Mas de acordo com o The Mirror, por mais que o japonês se sinta feliz com a sua conquista, vive com um dilema: tem medo de contar isto aos amigos, com receio de que o achem uma “pessoa estranha”: “Raramente conto aos meus amigos, porque tenho medo de que eles pensem que sou estranho”, admitiu. Mas há quem conheça o estilo de vida de Toco, nomeadamente outros amigos e membros da família, que “ficaram muito surpreendidos ao saber” que se transformou num animal.

Os “cães-humanos” sem pelo Por mais que seja difícil de acreditar, esta não é uma “forma de estar na vida” assim tão incomum. Se há uns que o fazem às escondidas e de uma forma idêntica à de Toco-San, há outros que apesar de não mandarem fazer um fato de milhares, vestem essa pele em casa e na rua, havendo mesmo grupos de cães humanos que adoram dar passeios e brincarem. Por exemplo, o caso dos britânicos Spot, Hexyc e Tibo, que foram entrevistados em 2016 pelo Channel 4 para o documentário Secret Life of the Human Pups, em português, A Vida Secreta dos Cães Humanos. Os três homens vestem-se e vivem como cães durante várias horas do dia. Brincam com bolas, comem em tigelas e gostam de receber carinhos na barriga. Além disso, no documentário, os adeptos do puppy play (sinónimo de “brincar como um cão”), urinam em postes, latem, obedecem para ganhar guloseimas e até agitam os rabos mecânicos emparelhados à roupa de látex. 

De acordo com a produção, só no Reino Unido mais de 10 mil pessoas vestem-se e comportam-se como animais. As mulheres preferem vestir-se de gatas. Há ainda quem seja o dono ou treinador, que trata e educa o “cão-humano” e o leva a passear. No filme os entrevistados explicam que se trata de “uma forma de escapar às pressões diárias” e não, como à partida se poderia imaginar, um “fetiche sexual”.

Um dos personagens é Tom, mais conhecido pelo seu nome canino, Spot, o dálmata. O seu dono é Colin. O inglês gastou mais de 5 mil euros nos últimos dez anos na prática do puppy play, tanto em fatos, como acessórios e coleiras e até numa casota, onde dorme todas as noites. 

Tom estava noivo, mas após revelar a prática à noiva, Rachel, esta terminou a relação – os dois mantêm-se amigos. “A Rachel pensava que estava a assumir-me gay. Uma parte de mim arrepende-se de ser um ‘cão-humano’, porque perdi muito do que tinha. Ao mesmo tempo, é mágico. Persegues brinquedos e o teu eu desaparece. Crias um espaço próprio na tua cabeça”, conta Tom, que ganhou o concurso da prática Mr. Puppy, em novembro de 2016. 

As pessoas “não-humanas” O recurso à criação de uma “personagem”, no caso animal, tem sido descrito, e documentado, como sendo um comportamento de role play em que adultos adotam características de cães, e é um fenómeno com aumento do número de participantes nos últimos anos, possivelmente em resultado do aumento de visibilidade e atenção dada pelos media. “O número de eventos organizados em websites tem sido também crescente. Maioritariamente, este fenómeno está grandemente relacionado com a prática da BDSM (bondage, disciplina, submissão e sadomasoquismo)”, explicou a também coordenadora da área médica no Centro Catarina Lucas. 

Segundo Elsa Rocha Fernandes, é exatamente desta interação – dominante e submissa – que se define a relação entre o humano “cão”, aquele que experiência e vive na interação as características dos cães, e o(s) humanos que representa o “dono”, aquele que domina o cão. Existe, por isso, uma “componente recreativa”, de “entretenimento”, um “contexto erótico associado a esta prática”: “Contrariamente a uma visão de patologia, de doença, a literatura tem debatido os benefícios que são obtidos por esta prática, e relatados pelos participantes: o relaxamento, e redução do stress associado à vida laboral etc., com a libertação das responsabilidades e a libertação dos comportamentos expectáveis/“apropriados” e associados aos humanos”, continuou a especialista. 

Outro valor terapêutico descrito por participantes – como é o caso dos personagens do documentário do Reino Unido –, prende-se com “a experiência vivida, de forma intensa, no presente”: “Aqui e agora, a vida simples e imediata que acompanha o dia a dia de um animal, com seja o cão”, acrescentou, contando que alguns estudos descrevem ainda que as características associadas ao comportamento canino tornam estes animais “uma escolha possivelmente presencial para representação de um papel”, já que estes são vistos como divertidos, leais e genuínos, tornando-os “amados e desejados na cultura ocidental”. 

Quanto à identificação de um humano com um animal, a descrição de indivíduos que vivem experiências de “pessoa-animal” remonta à antiguidade, “desde relatos em manuscritos medievais até à Europa renascentista”. Segundo a psiquiatra, a presença de protagonistas cinematográficos, e literários, é também sobejamente conhecida. 

Afastada desta vertente fantasiosa, no entanto, e mais recentemente têm sido descritos casos que vão além do role play, de pessoas que se identificam como não-humanas, tipicamente como sendo total ou parcialmente um animal ou ser mítico: “Aqui, o fenómeno parece estender-se para além de um comportamento sexual específico, sendo descrita como uma experiência interna, embora não existam, à data, dados científicos que apontem a possibilidade de um salto entre a definição de transgénero e ‘trans-espécie”, ressaltou a médica.