O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um programa da União Europeia (UE) de resposta às dificuldades causadas pela pandemia. Sendo de aplicação nacional, cada país teve de apresentar um plano com os projetos que considerava essenciais para a sua recuperação. Desgraçadamente, não há sinais de que o PRR-Portugal contemple, especificamente, a ciência apesar de o investimento em ciência ser estratégico e a melhor forma de capacitar um país e alavancar o desenvolvimento tecnológico. A Investigação Científica (IC) de qualidade, em particular a desenvolvida em Instituições do Ensino Superior (IES), é o garante da adequada formação, ano após ano, de quadros superiores em todas as áreas e nos três ciclos de estudos. São formados por docentes que contribuem para o conhecimento nas suas áreas de ensino e não por meros transmissores de conhecimento feito. É, pois, alicerçado na IC que se desenvolve o sistema de ensino superior (ES) e o capital humano para o desenvolvimento do país. Por isso, a discussão do financiamento da ciência tem que considerar todas as dores de um ensino superior há longos anos subfinanciado, apesar da sua enorme importância social. A qualidade e impacto da IC realizada contribui decisivamente para a classificação das IES, permitindo a algumas nacionais situarem-se em posições honrosas nos rankings internacionais mais credíveis, principalmente quanto competem em condições desiguais. Incompreensivelmente, esse desempenho continua a não contar para a distribuição de verbas do Orçamento do Estado pelas IES ainda que o ES e a ciência tenham a mesma tutela!
O desenvolvimento científico e tecnológico de um país requer políticas adequadas e coerentes e financiamentos muito significativos e continuados. A sua interrupção ou redução acaba por conduzir à destruição irreversível de equipas científicas bem treinadas, à paragem ou desaceleração de programas de investigação, à diminuição da competitividade internacional de grupos de investigação e áreas relevantes e promissoras. Contudo, a discussão do financiamento da ciência não pode ser reduzida à percentagem do PIB disponibilizada para investigação. Depende, criticamente, das opções estratégicas tomadas para o uso dessas verbas, do seu planeamento e previsibilidade, e do processo de avaliação das propostas submetidas pela comunidade científica para eventual financiamento competitivo. O declínio da taxa de sucesso implica um desperdício de tempo e energia, principalmente quando, em concursos para contratação de investigadores ou financiamento de projetos, caem para valores próximos ou inferiores a 10%, como tem acontecido em anos recentes. Nestas circunstâncias, a avaliação tem falhas e a tendência é embarcar cada vez mais em projetos menos arriscados e de curto prazo. Os investigadores são empurrados para trocar a sua atividade por empregos mais seguros e melhor pagos, ou seja, para debandarem quer para fora do país quer, dentro do país, para fora do sistema científico. E são os mais dinâmicos com currículos mais robustos os que mais facilmente encabeçam a sangria do sistema científico, incapaz de os valorizar devidamente. O último concurso público do Programa Nacional de Reequipamento Científico decorreu há 20 anos quando, nas áreas experimentais, a competitividade internacional depende de equipamentos de vanguarda, não dos que já não têm nem manutenção nem arranjo possível por não haver peças! A dependência das IES da captação e gestão de elevadas receitas próprias tem levado a um aumento da burocracia que consome, perigosamente, tempo e energia que deveriam ser dedicados a investigação produtiva, pensamento criativo e ensino e formação avançada de qualidade.
Tendo por objetivo promover a inovação e dinamizar a economia, tem havido vários programas mobilizadores e incentivos às empresas envolvidas em I&D, na interface com a academia. É natural que esses programas tenham favorecido empresas e laboratórios colaborativos. Contudo, no caso do parceiro mais fragilizado, a ciência/ES, os fundos disponibilizados foram de subsistência e sem reflexos positivos para a ciência de excelência em vários domínios. Os diversos programas de financiamento da UE, de privados, da única fundação nacional para a ciência, têm vindo a definir tópicos prioritários de investigação, no essencial focados nas mesmas áreas e cada vez mais centrados em tópicos de aplicação. Por isso, as taxas de sucesso na captação de fundos para IC em todas as áreas do conhecimento e investigação fundamental têm sido negligenciáveis. Mas, não é isso que faz sentido? Desequilibrado como está, não! Entre muitos outros exemplos paradigmáticos, gosto de dar o seguinte que diz muito a uma investigadora em leveduras. Yoshinori Ohsumi recebeu, há 6 anos, o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina pelo trabalho, de uma vida, sobre um processo biológico fundamental: a autofagia. Usou a levedura de padeiro para decifrar um processo que ocorre de forma semelhante em humanos. Quando iniciou esses estudos de ciência básica, não se fazia a menor ideia de que a autofagia viria a ser associada a infeções, cancro, neurodegeneração, envelhecimento e doenças do coração. Pois, é assim: a investigação fundamental pode desenvolver-se de formas não previsíveis e acabar por conduzir a alterações radicais com elevados benefícios para as empresas, a saúde, a sociedade em geral. E há que entender isto, a IC de qualidade, em todas as áreas do conhecimento, é o garante da qualidade do ES. Para quando um PRR dedicado à ciência?
Professora e investigadora do Instituto Superior Técnico e do iBB – Instituto
de Bioengenharia e Biociências