Portugal e a maldição do paralelo 38

Portugal e a maldição do paralelo 38


Vinte anos depois, Portugal voltou a ser derrotado pela Coreia do Sul (1-2) num jogo dramático para a equipa de Paulo Bento, que conseguiu a qualificação para os oitavos já nos descontos. Fica o consolo do primeiro lugar no grupo – e na terça-feira há mais.


AL-RAYAAN – Há que dizer que estes terceiros jogos que metem uma equipa já apurada ficam aborrecidamente depenados daquela gota de excitação que envolve as verdadeiras decisões. Ou quase… Não teve Portugal culpa disso, bem pelo contrário, fez o seu trabalho a tempo e fê-lo bem feito, deixou para os sul-coreanos a obrigação de ganharem ontem, no Estádio da Educação, em Al-Rayaan, cidade vizinha e pegada a Doha – e mesmo assim ficavam dependentes do que iria acontecer no outro confronto, entre Gana e Uruguai. No primeiro minuto dos descontos, Hwang Hee-chan deu a vitória à Coreia do Sul e firmou a passagem. Duas festas explodiram: a da vitória e, quase dez minutos depois, a do resultado final no Al Janoub.

Foi sem surpresa que Fernando Santos decidiu poupar uma série de jogadores, seja porque corriam o risco de verem um terceiro cartão amarelo que os afastaria dos oitavos-de-final, seja porque quis poupar alguns fisicamente. Isto é, tivemos um Portugal de segunda: não porque a qualidade individual de cada um esteja a ser desprezada, mas porque como conjunto não poderiam, como é lógico, estar ao nível do onze habitualmente titular. Seis alterações-seis!, como se escreveria num cartaz de anúncio de touradas. Entraram Diogo Dalot (não vejo como não é titular, mas é só uma opinião), António Silva, João Mário, Vitinha, Matheus Nunes e Ricardo Horta, o que significa que todos os setores, menos a baliza, foram enxertados. Atrás, Pepe manteve-se e Cancelo passou para a esquerda; daí para a frente ficaram apenas, dos titulares contra o Uruguai, Ruben Neves (um sinal forte de confiança) e Cristiano Ronaldo, que tem de jogar por via da sua saga particular atrás dos 9 golos de Eusébio em Mundiais.

Em conversa com o meu companheiro Regis Dupond, do l’Équipe, que há muitos anos acompanha a equipa portuguesa, concordámos facilmente que estávamos perante um acontecimento que, a menos que revelasse algo de absolutamente surpreendente, não tardaria a cair nas profundezas do poço do olvido. Afinal acabámos por nos ver metidos numa partida divertida, interessante, e com muitas liberdades consentidas de parte a parte. E, já agora, com um final extraordinário do ponto de vista dos asiáticos. Portugal aproveitou bem a forma como os coreanos apareceram inicialmente adiantados e ainda nem tivéramos tempo para esfregar os olhos e já Ricardo Horta aparecera como uma flecha na área de Kim Seung-Gyu para fazer o 1-0 (5m). Por seu lado, a Coreia foi insistindo no seu estilo de futebol-aos-repelões em que, pelo meio de uma série de passes que parece inicialmente inofensivo solta o voo de Sam-jok, o pássaro negro coreano das três pernas que vive nos raios do sol, lançando confusões preocupantes na defesa contrária. Não foi assim, no entanto, que chegaram ao empate, mas em mais um erro bastante evitável da defesa portuguesa, num canto, com a bola a bater nas costas de Ronaldo e a ficar ali à mercê de Kim Young-Gwon (27 m). Avisado da vantagem do Uruguai sobre o Gana (2-0), Paulo Bento sabia que era preciso correr riscos e marcar golos. Era agora ou nunca.

 

Conforto contra sobrevivência

Nestas coisas de seleção nacional – Equipa-de-Todos-Nós chamou-lhe o grande Ricardo Ornellas no tempo em que só perdia – como, aliás, no futebol em geral, deixo-me levar mais facilmente pelas emoções da amizade do que pela preferência de cores. Naturalmente, todos os portugueses querem, seja em que desporto for, que os seus representantes obtenham os melhores resultados nas competições em que participam. Jornalista que se preze tem a obrigação de ser isento mas também não se lhe pode exigir que meta gelo no coração. Ou melhor, se isso se aplica indubitavelmente à notícia, merece exceção na crónica. Nem o jornalismo seria entusiasmante se não tivesse emoção. Neste Mundial reencontrei vários amigos, entre os quais dois muito antigos e que muito estimo, como são o caso de Carlos Queiroz e de Paulo Bento – conheci-o mal chegou ao Benfica, há quase trinta anos, vindo de Guimarães com uma arreliadora lesão. E desejei, em nome dessa amizade, que fossem o mais longe possível. Ora, ontem, para Portugal a vitória (ou o empate) era apenas uma questão de conforto (fugir da hipótese de jogar já com o Brasil) enquanto para a Coreia do Sul era uma questão de sobrevivência. Apesar da derrota, a equipa de Fernando Santos manteve a liderança do Grupo H, pelo que a forma como se deixou derrotar acabou por passar para segundo plano.

Durante a maior parte do segundo tempo Portugal controlou aquilo que estava a passar-se sobre o relvado. Tudo parecia estar em paz sobre o Paralelo 38, ou se não precisamente sobre a zona desmilitarizada que divide as duas Coreias, pelo menos mais a Sul onde se encontra esta Coreia que nas duas únicas vezes que enfrentou a seleção nacional (a outra tinha sido no Mundial de 2002 e vencera por 1-0) saiu vitoriosa como se esse tal Paralelo 38 tivesse guardado em si uma maldição qualquer que não conseguimos quebrar. Estive lá nessa noite de Incheon há mais de vinte anos e o espetáculo tornou-se num drama para os portugueses que, a despeito de tantas esperanças, saíram vexados desse Campeonato do Mundo. Ontem, em Al-Rayaan, a derrota só pode doer por, mais uma vez, termos demonstrado um molho de debilidades que colocam os que acreditam no sucesso de Portugal neste Mundial numa franja muito pequena de inabaláveis otimistas. O segundo golo é bem exemplo dos momentos em que o conjunto – e cada jogador por si – caem numa distração coletiva exasperante. Na próxima terça-feira, dia 6 de dezembro, lá para o norte, em Lusail, erros como os de hoje servirão para nos mandar para casa. Bem mais cedo do que Fernando Santos estará com certeza à espera. Ele e muitos milhões que falam esta língua que para Pessoa era uma Pátria.