Na sequência do nosso artigo anterior – Porquê a Ética na Inteligência Artificial? – introdutório às questões éticas suscitadas pela Inteligência Artificial (IA), abordaremos agora a questão do desemprego que estas tecnologias podem provocar na sociedade, economia e também na Administração Pública. Este impacto tem merecido a atenção de diversos autores e organizações internacionais, que consideram de forma unânime o entendimento de que a velocidade destas mudanças ocorrerá a um ritmo muito mais rápido, nesta quarta revolução industrial, com início na transição para o século XXI, comparando com as três primeiras revoluções industriais, com efeitos no mercado de trabalho que merecem reflexão.
A Primeira Revolução Industrial teve início no século XVIII, na Inglaterra, com a mecanização da fiação e da tecelagem na indústria têxtil, que, no espaço de aproximadamente 100 anos, operou, por um lado, transformações profundas nas indústrias existentes, e por outro lado, criou a máquina a vapor, caminhos de ferro, etc.
Com a segunda revolução industrial, nos finais do século XIX, início do século XX, surgiram a rádio, o telefone, os eletrodomésticos, a iluminação elétrica, o motor de combustão interna que deu origem ao automóvel, mas também os avanços na química e produção de novos fertilizantes, gerando um progresso que tornou possível o aumento da população.
A terceira revolução industrial, na segunda metade do século XX, teve origem na computação digital e na teoria da informação, conforme refere o fundador e presidente do Fórum Económico Mundial Klaus Shwab “a capacidade de armazenar, processar e transmitir informações em formato digital reverteu quase todos os setores e mudou drasticamente a vida profissional e social de milhares de milhões de pessoas (In “Moldando a Quarta Revolução Industrial”, Lenoir, 2019).
Efetivamente, a mecanização da agricultura eliminou uma parte considerável de postos de trabalho conduzindo ao êxodo dos trabalhadores agrícolas para as cidades procurando trabalho nas fábricas. De acordo com Shwab, nos EUA, no início do século XIX, “os trabalhadores agrícolas consistiam em 90% da força de trabalho, mas hoje esse número desceu para 2%” (In “Moldando a Quarta Revolução Industrial”, Lenoir, 2019). Este exemplo ilustra com acuidade a evolução do trabalho decorrente da evolução das tecnológicas. Convidamos ainda o leitor a pensar nos efeitos da tecnologia e da globalização, citando Martin Ford (In Robôs – A ameaça de um futuro sem emprego, Bertrand Editora, 2016): “arrancaram trabalhadores do setor industrial e empurram-nos para novos empregos no setor dos serviços. O desemprego de curto prazo foi frequentemente um problema durante essas transições, mas nunca se tornou sistémico ou permanente. Criaram-se novos empregos e os trabalhadores desempregados encontraram novas oportunidades.”
A IA é parte integrante da quarta revolução industrial, que procuramos caraterizar na nossa dissertação de mestrado (In “Novos Desafios da Administração Pública: Inteligência Artificial e Ética nos Sistemas Inteligentes com Autonomia”, tese de mestrado que concluímos no Instituto Superior de Ciências Socias e Políticas, com coorientação do Instituto Superior Técnico.), com destaque para a internet móvel omnipresente, pelo menos no mundo ocidental, a IA e a aprendizagem automática, com difusão e implementação das tecnologias emergentes e inovações muito mais rápidas comparativamente às anteriores revoluções industriais. As tecnologias emergentes que fazem parte desta revolução baseiam-se no conhecimento e nas capacidades digitais da terceira revolução industrial. As mudanças em curso podem ser caraterizadas como sistémicas e profundas, com realce para a disrupção e a inovação. O âmbito desta revolução é mais amplo, abrangendo o sequenciamento genético, a nanotecnologia, as energias renováveis e a computação quântica.
Contudo, não existe unanimidade quanto aos efeitos da quarta revolução Industrial na economia e na sociedade. Neste âmbito estão identificadas várias correntes: (i) distópicos entendem que homem e máquina enfrentarão uma luta darwiniana e que as máquinas irão vencer; (ii) utópicos defendem que as máquinas inteligentes desempenharão inúmeras tarefas que conduzirão a um progresso nunca visto; (iii) otimistas da tecnologia consideram que ocorre uma explosão de produtividade, embora ainda não espelhada nos dados oficiais: (iv) para os céticos as tecnologias emergentes são inaptas para gerar nível elevados na produtividade; (v) quanto aos realistas otimistas, a digitalização e a máquinas inteligentes podem contribuir para melhorar o nível da produtividade com semelhança com as anteriores revoluções industriais.
É opinião unânime na comunidade científica o aumento do desemprego, por efeito da implementação dos sistemas de IA, incluindo quer os sistemas de software, quer os próprios robôs, ainda com algum atraso pelos custos inerentes à sua produção, mas também pela facilidade e custos reduzidos da difusão da IA através do software. Como resultado da automação serão sentidas mudanças preocupantes na essência do trabalho em todas as áreas e em todas as profissões, muitos procedimentos que apenas se efetivavam com a intervenção do homem, com a IA o fator humano pode ser dispensado, entre outros, será o caso da própria análise de conformidade legal de contratos, ou identificação de casos semelhantes, ou seja, os precedentes que no direito podem contribuir na fundamentação de uma defesa, na elaboração de um contraditório ou mesmo de uma sentença. Como profissões de maior risco, por estarem mais exposta à automação, são referidos por Schwab (In “A Quarta Revolução Industrial”, Lenoir, 2019): operadores de telemarketing, responsáveis por contabilidade e impostos, avaliadores de seguros e danos automobilísticos, árbitros, juízes e outras profissões desportivas, secretários judiciais, consultores imobiliários, estafetas e mensageiros, juristas. No polo oposto são identificados os assistentes sociais, coreógrafos, médicos e cirurgiões, analistas de sistemas informáticos, psicólogos, gestores de recursos humanos, antropólogos e arqueólogos, engenheiros e arquitetos navais, gerentes de vendas e diretos.
Ao nível do mercado de trabalho sintetizaríamos, considerando duas grandes correntes: os otimistas e os pessimistas. Os primeiros entendem que, tal como aconteceu nas revoluções industriais anteriores, o mercado de trabalho absorverá os trabalhadores desempregados com capacidade para se adaptarem aos novos empregos. Ainda assim, parece-nos que deve ser considerado o previsível hiato entre a substituição do homem pelas máquinas e a criação dos novos postos de trabalho que estes trabalhadores desempregados eventualmente estejam aptos a ocupar, questões que merecem reflexão no âmbito da administração pública, mais especificamente no desenho e implementação das politicas públicas da segurança social e trabalho, mas também no setor da saúde se pensarmos no apoio psicológico e mesmo psiquiátrico que pode ser necessário preparar com vista ao apoio na sequência deste processo evolutivo.
Já a corrente pessimista defende que o surgimento de novos empregos pode não ser suficiente para evitar a formação de uma nova classe «inútil», conforme terminologia empregue por Harari (In “21 Lições para o Século XXI”, Elsinor, 2018), refere também que a transição pode não ser idêntica ao destino dos cocheiros de charrete do século XIX que posteriormente, encontraram ocupação profissional conduzindo táxis. Provavelmente, o número de desempregados será elevado, e com carência de mão-de-obra qualificada, dificilmente os motoristas que perderam o seu emprego conseguirão adaptar-se a atividades como websigners, ou analista de dados.
No âmbito da realização das entrevistas no trabalho de campo da nossa investigação académica foi realçada a questão do desemprego, provocado pela IA e pela automação, como uma das maiores preocupações do emergir destas tecnologias. Mereceu também contestação a ideia de apelidar estes trabalhadores desempregados como inúteis, considerando que a dificuldade de regresso ao mercado de trabalho não deve ser imputada aos próprios, mas à falta de trabalho que poderá ser um problema estrutural no futuro.
Na procura de novos modelos sociais e económicos pode ser perspetivada a proteção das pessoas e não dos postos de trabalho, procurando assegurar as suas necessidades básicas e preservar o seu estatuto social e o seu amor-próprio. O rendimento básico incondicional (RBI) remonta ao século XVI, pensado inicialmente por Thomas More, no livro intitulado Utopia, como apoio aos mais necessitados, mas também com uma componente dissuasora da criminalidade, face à fraca eficácia de outras medidas no âmbito do direito penal. De acordo com Roberto Merril (In “Rendimento Básico Incondicional – Uma Defesa da Liberdade”, Edições 70, 2019) e outros, o RBI assenta nos pressupostos de que todos os cidadãos têm direito a um rendimento, pago em numerário, que permita condições de vida decentes, independente da situação financeira, patrimonial ou salarial de cada um. A legitimidade destas medidas foi defendida, entre outros por Friedrich Hayek (“The assurance of certain minimum income”, in the Hayek, F , Law, Legislation and Liberty, vol. 3, The political order for a free people, Chicago University Press), como garantia da segurança perante contratempos, decorrentes dos efeitos da evolução para uma sociedade mais instável e aberta, em que os sistemas de auxílio social se mostrariam insuficientes para a continuarem a sua missão. A vida dos indivíduos que não se conseguem manter no mercado de trabalho constitui um risco que os governos precisariam de encarar, buscando soluções de proteção adequada em função da prosperidade que lhe permite disponibilizar esse apoio a todos.
Preocupante também se apresenta a questão da dignidade que o trabalho confere ao ser humano e qual o sentido da vida que estes trabalhadores desempregados irão encontrar, são questões para as quais o contributo da ética pode ser relevante, de modo a propor caminhos que possam contribuir para uma vida em sociedade mais justa, mas igualitária e mais equitativa.