Vivemos mais três dias de WebSummit e, tirando as anotações visíveis em jornais ou telejornais, passou bem mais ao lado dos portugueses do que qualquer outra edição. Ficou o registo de boas intervenções como de Carlos Moedas, de Marcelo Rebelo de Sousa e todo um conjunto grande de bons oradores internacionais que vieram a Lisboa.
Muito bem, é bom receber bons eventos!
O que ficou mais no ouvido de qualquer português atento foi a palavra “Unicórnios”.
Mais especificamente, as start-up Unicórnio.
Basicamente, ouvimos pela boca do Presidente lisboeta Carlos Moedas que quer uma Fábrica destas empresas, como ainda ouvimos e lemos que Portugal quer ser a casa deste tipo de empresas segundo o Primeiro-ministro António Costa.
Estas start-up unicórnio são empresas que, sem estarem cotadas em bolsa, atingem a valorização de mil milhões de euros.
Foquemos apenas isso que é o que serve para a nossa conversa nacional: 1.000.000.000€. É isto em números.
1.000.000.000€ num país onde 25% dos trabalhadores portugueses ganha o rendimento mínimo de 705€ por mês.
O limiar de pobreza são 554€ por mês. Para vermos a diferenças desse valor gigantesco que abalou os debates da WebSummit, os meros 554€ tocam a 2 milhões de portugueses (podem ser 4 milhões se incluirmos aqueles que sem apoios e rendimentos extraordinários do Estado ficam com esse valor mensalmente).
Verifiquei, também aqui escrevi no jornal i que a PORDATA validou as declarações de IRS de há dois anos das famílias portuguesas e diz que em 5,5 milhões de famílias estudadas, mais de 2 milhões tinham apenas 833€ de rendimento mensal.
Este é um retrato bem real dos portugueses que, olhando e comparando com os ditos unicórnios, é: 0.000.000.833€ versus 1.000.000.000€.
É quase uma distopia falarmos de Fábricas de Unicórnios – que eu, ou qualquer português, adorava que se torne real e mais que uma vontade política apenas – quando temos famílias que vivem com valores tão baixos por mês. Quando vemos que atum, azeite e conservas têm alarmes nos supermercados. Quando as famílias não conseguem ter alimentos e vendem móveis para ter comida em casa.
Enfim, basta abrir o Google, ir ver as notícias mais recentes e chegaremos a um conjunto de relatos sobre como a falta de rendimentos associada a inflação, que agrava tudo, está a afetar negativamente a qualidade de vida dos portugueses.
Posto isto, todos recordemos o apoio extraordinário de 125€ aos portugueses com rendimentos até 2.700€ brutos por mês. Este apoio totaliza 2.400.000.000€, ou dois unicórnios e meio.
Num país em que a margem de pobreza e baixos rendimentos é claramente dominante, não seria útil – ironicamente falando – que os primeiros 10 Unicórnios revertessem em valor de valorização (os tais mil milhões de euros) para o bolso dos portugueses? Claro que, utopicamente, sim. Seria talvez a medida “política” mais viável para a qualidade de vida das famílias portuguesas das últimas décadas!
Em suma, passamos o tempo a falar de valores astronómicos, como aquilo que representa uma start-up Unicórnio, que vale mil milhões de euros, num país onde vemos 4 milhões de portugueses com pouco mais de 500€ na conta por mês para pagar rendas, contas e alimentação.
Fábricas de Unicórnios em que cada empresa vale mil milhões de euros quando distribuímos pouco mais do dobro disso – 2.400 milhões de euros no total – para mais de metade da população portuguesa em apoios extraordinários (os 125€ no mês passado).
Mil milhões de euros quando os supermercados metem alarmes em latas de atum que custam, em marca branca, 1€ por unidade.
É uma distopia entre aquilo que falamos e ambicionamos contra aquilo que se vê e têm a maioria das famílias portuguesas.
Que venham as fábricas de empresas milionárias, fariam seguramente bem à nossa economia e trariam benefícios de várias formas. Mas, sobretudo, que vão embora as políticas que representam milhões e milhões de portugueses com rendimentos no limiar da pobreza, ao ponto de se ver alarmes em latas de atum. Essa sim devia ser a conversa política portuguesa.