GUAYAQUIL – Meio-dia, momento da sombra mais curta. Um calor bruto caiu sobre a cidade, pedaços de alcatrão derretido colam-se-me às solas dos pés, as folhas dos espinheiros secos e as acácias raquíticas não tremem um milímetro porque não há uma brisa que sopre do mar, lá dos lados do Malecón. Resolvi tomar o caminho mais longo para o Estádio Monumental Isidro Romero Carbo em vez de seguir em frente o quilómetro que me faltava para lá chegar e atravessei a Puente de La 17 para contornar o bairro extenso de casas térreas que bordeja o rio Guayas e ir recuperar a Avenida Barcelona do lado sul, voltando a atravessar outra ponte mais distante, a Portete de Tarqui, já que o exército e a polícia decidiram encerrar a pedonal que fica entre as duas. Milhares de adeptos, quase todos do Flamengo, juntavam-se às portas dos “comedores” para tomarem cervejas e negociarem a dois ou três dólares (o dólar equatoriano é igual ao americano, exceto nas moedas de menor valor que são escuras e fazem alusão aoBanco doEquador) o transporte de 12, ou 13 ou 15 em velhas carrinhas Datsun de caixa aberta que levam o tubo de escape a rojar pelo chão. O suor escorre-me pelas costas abaixo enquanto vou cortando esquinas e contra esquinas para desaguar no rio da Avenida Barcelona que passa em frente ao estádio que pertence ao Baarcelona de Guayquil, um bloco de betão vermelho e amarelo que viveu uma semana de lutas internas porque os proprietários dos camarotes, ignorando que tinham sido tomados pela CONMEBOL, resposável pela organização da partida, trataram de alugá-los a preços absurdos até perceberem que iriam ser obrigados a borregar os negócios. E, assim, quase todos os muitos camarotes do Monumental ficaram tristemente vazios.
Na véspera à noite, no Hotel Sheraton, jantei com Luiz Felipe Scolari e com a sua equipa. Ele tinha a clara noção (como não?) de que as hipóteses de vencer a sua terceira Libertadores (por três clubes diferentes) seria escassa e que a diferença de qualidade entre Flamengo e Athletico pendia para os cariocas. Mas, enfim, tratava-se de um jogo só. E em 90 minutos é mais fácil esconder as fragilidades e libertar as virtudes. Não chegou. Um árbitro argentino gorducho, que se deslocava a passo de caracol, caiu no absoluto exagero de mostrar um segundo amarelo injustificado a Pedro Henrique – a entrada foi dura mas, na repetição dá a ideia que nem falta foi – e no terceiro minuto de desconto da primeira parte, Gabigol fez o 1-0. Vi, ao longe, como Felipão fumegava pelas orelhas de raiva contra o árbitro, mas não havia nada a fazer. A segunda parte foi, naturalmente, dominada pela equipa de Dorival Junior, bem mais experiente e com melhor banco, embora o Athletico se tenha batido até ao fim de todas as suas forças. Faltou-lhe um homem, faltou-lhe um pouco mais de classe individual, a classe que não faltou quando, toda a equipa técnica e todos os jogadores, se juntaram num aplauso coletivo ao novo campeão da América Latina.
Um brilho nos olhos Conheço Luiz Felipe Scolari muito bem e há muitos anos. Somo amigos/irmãos e estive a seu lado em todo o tempo fantástico que vivemos na seleção nacional, ele como técnico e eu como assessor de imprensa, e Portugal atingiu a primeira final da sua história (infelizmente perdida para a Grécia) e as meias-finais do Campeonato do Mundo. O ambiente no primeiro piso do Hotel Sheraton, onde o grupo acabara de jantar, era nessa noite tristonho cheio de uma natural desilusão. Eu e Scolari sentámo-nos à conversa, mais uma despedida com a certeza de que o reencontro está para breve. Perguntei-lhe se, depois de toda a aventura que fora trazer o Athletico Paranaense até esta final da Taça dos Libertadores, não lhe fazia ter vontade de dar um passo atrás na hora que já avisara de ser a do adeus? Fitou-me como se estivesse precisamente a pensar nisso. O olhar do velho guerreiro tem ainda o brilho do gosto da batalha. Soou-me ao longe a melancólica canção de Chico Buarque: “Não chore ainda não, que eu tenho um violão/E nós vamos cantar (…)/Que a noite é criança, que o samba é menino/Que a dor é tão velha que pode morrer (…)/Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa/Mas a vida é boa para quem cantar(…)/Não chore ainda não, que eu tenho a impressão/Que o samba vem aí/É um samba tão imenso que eu às vezes penso/Que o próprio tempo vai parar pra ouvir”.
Luiz Felipe Scolari vai ouvir o tempo, estou certo disso. Não agora, já, quando o sangue lhe ferve nas veias e tem uma profunda mágoa para engolir a meio com um nó na garganta. Neste momento, o Athletico Paranaense está na luta pela qualificação por um lugar na próxima Libertadores e joga já amanhã, em Curitiba, frente ao Goiás. OBrasileirão está à beira do final, faltam quatro jornadas e Felipão ainda tem de se bater contra equipas que sonham com o mesmo ojectivo, como é o caso do Internacional de Porto Alegre (no domingo, dia 6), encerrando a maratona com uma deslocação a Goiânia, para enfrentar o Atlético, e recebendo o Botafogo, de Luís Castro, no dia 13, Botafogo esse que realizou uma tremenda recuperação vindo lá do fundo da tabela para também estar à beirinha de conquistar um lugar na próxima edição da Libertadores.
Luiz Felipe Scolari já me tinha dito, mais de que uma vez, que esperava fechar a carreira de treinador com esta vitória que seria um encerramento verdadeiramente de ouro. Um argentino chamado Lostau (que nada tem que ver com o enorme companheiro de Di Stéfano no River Plate), revolucionou-lhe o sangue. No Monumental Isidro Romero Carbo saiu vencido mas de forma alguma convencido. Ainda há nele uma incontrolável sede de vitórias.