Deparamo-nos constantemente com decisões públicas e o seu reverso, de pretensa legitimidade, e de tão pouca transparência que o cidadão não consegue entender sendo que, em democracia, estas situações só contribuem para reduzir a confiança que todo o cidadão deveria ter no governo do seu país, e que infelizmente não tem. A abstenção eleitoral é disso um claro sinal, que insistimos em ignorar.
Mais grave ainda, não se trata de uma ocorrência característica de um sector específico, é de alguma forma transversal a todos os domínios, e denota ausência de objetivos de longo prazo e ausência de rumo.
A qualidade da decisão pública é uma causa remota do bom funcionamento dos sistemas que suportam a nossa sociedade, no momento de implementação de infraestruturas, na definição dos serviços públicos, ou em qualquer outro elemento constituinte das políticas públicas.
Exemplifico com os casos mais recentes, o velho “novo aeroporto de Lisboa”, cuja pretensa localização já correu parte do país, e que já foi decidido e revertido pelo menos duas vezes nos anos mais recentes, e o comboio de alta velocidade (vulgo TGV) também já decidido em várias configurações, cancelado e de novo decidido. Com facilidade encontramos outros exemplos na saúde, na educação, até nas finanças, etc.
Não há qualquer dúvida que um governo legitimamente eleito é suposto tomar decisões, mas também não há dúvida que tem a obrigação de o fazer com muita qualidade.
Qualidade de decisão implica responder com isenção, rigor e transparência a três perguntas: porquê, como e quando, nesta mesma sequência. O que observamos é que as decisões são tomadas quando é conveniente para a gestão do ciclo eleitoral, mesmo quando se trata de infraestruturas com um ciclo de vida de 50 anos ou mais, e a informação respetiva é manipulada como se os resultados e impactes dessa decisão se possam verificar amanhã, ignorando por isso a necessidade de isenção em decisões que afetam o país em tão longo prazo. Também sem justificação rigorosa e transparente, quanto ao como vai ser feito, e pior ainda sem qualquer visão de futuro quanto ao porquê de tal decisão.
Dos muitos estudos realizados não ouvimos ainda qual a estratégia de longo prazo que justifica o tipo de aeroporto que queremos vir a ter num país da nossa dimensão e com o nosso potencial, qual a capacidade que queremos projetar, o que vamos fazer para assegurar que as infraestruturas de turismo e os serviços vão corresponder a essa capacidade, que resultados esperamos dessa decisão, e quais os impactes a longo prazo. Todos sabemos que o investimento a ser feito fica indisponível para outras necessidades (que designamos por custo de oportunidade), mas esse elemento não nos aparece devidamente referido. Que alternativas estudar, porquê as cinco opções que foram escolhidas, quando em bom rigor nem sequer são comparáveis (Santarém – regional para carga, Lisboa – o atual, Montijo – apenas um aditivo a Lisboa que nunca poderá crescer, e Alcochete – em que não sabemos bem o que queremos)? O resultado não pode ser sério nem rigoroso, se não forem corrigidas estas premissas e consideradas verdadeiras alternativas. Ou então, não se gastem recursos a fazer estudos de “faz de conta”, presumindo que o cidadão é desprovido de inteligência e de informação.
Esta decisão da maior importância tem um carácter estratégico, no desenvolvimento do país. Não é uma decisão político-administrativa, e muito menos deve ser político-partidária. Como se explica a inclusão de uma opção (Santarém) que exige expropriação de privados (com que direito?), para um aeroporto de carácter regional focado em carga aérea, quando está disponível um aeroporto em Beja, que pode ter essa mesma função? Se neste processo alguma estratégia existe, porque não é apresentada e discutida publicamente com transparência?
Outra decisão é a de introduzir comboio de alta velocidade em parte relevante da faixa litoral do país. Sem dúvida, é lugar-comum conotar esta opção com sinais de modernidade e desenvolvimento. Mas, de novo, sem resposta para as tais três perguntas fundamentais, numa decisão com implicações estruturantes na acessibilidade dos vários territórios e e no desenvolvimento do país. Porquê, como e quando, ficaram mais uma vez órfãs de resposta. Apenas importa que é agora, sem explicações, sem transparência, sem demonstração de rigor e isenção e, pior ainda, custe o que custar.
Desde longa data que o desenvolvimento do país tem sido penalizado por ausência de estratégia, por incapacidade de reconhecer a necessidade de consensos políticos em torno de decisões de longo prazo e extenso impacte, que não devem ser usadas como armas de arremesso nas lutas de poder, as quais sendo legitimas em democracia, exigem a maturidade política necessária para reconhecer a importância de certas decisões, e exigir elevada qualidade nas mesmas. Para quem duvidar basta comparar os nossos processos de decisão com os de outros países incontestavelmente mais desenvolvidos.
Neste momento a questão de fundo já não é onde fica o aeroporto ou o comboio, o mais grave de tudo isto é que o descaramento e falta de pudor dominam com toda a propriedade a má qualidade de decisão, como se o mau desempenho fosse um direito legitimamente concedido, sem explicações ou justificações. Alguns dirão conformados, é o que temos. Pois digo-vos que não é.
Temos neste país pessoas competentes, sérias e isentas, com reconhecimento nacional e internacional. Então a quem convém manter a má qualidade de decisão?
Professora e investigadora em transportes, Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico