Recrutas impreparados

Recrutas impreparados


Há cada vez mais relatos de recrutas enviados para a guerra com uns dias de treino. E o Kremlin tenta arranjar maneira das suas forças na frente descansarem, aponta Mendes Dias. 


O Kremlin prometera que os cerca de 300 mil reservistas que pretende enviar para a Ucrânia receberiam treino de reciclagem – ou seja, para refrescar a memória da sua experiência militar – adequado. Mas já se multiplicam os relatos de recrutas enviados para a linha da frente com uns meros dias de treino. Alguns até estão a ser enviados para o campo de batalha sem sequer terem tido experiência militar, outros com uma saúde débil ou famílias numerosas. Algo que Vladimir Putin assegurara que não sucederia, lê-se no mais recente relatório do Instituto para o Estudo da Guerra.

Há dúvidas que, por mais ‘carne para canhão’ seja enviada para a Ucrânia pelo Kremlin, isso possa servir para tapar as fragilidades na extensa linha da frente russa. Fragilidades essas que permitiram os extraordinários avanços ucranianos a sudeste de Kharkiv, há umas semanas. 

«Não há nenhum benefício em fazer isso, nem para quem mobiliza nem para quem é mobilizado», nota Carlos Mendes Dias, coronel na reforma, ao o Nascer do SOL. Acautelando que, estando a ocorrer o envio de tropas despreparadas para a Ucrânia, não significa que isso seja diretiva do Kremlin.

«A Rússia é 185 vezes maior que Portugal, com 11 fusos horário e problemas nos cadernos de mobilização», elucida. São «os mais altos funcionários das entidades constituintes da Federação Russa, ou seja, das diferentes repúblicas, que são responsáveis por garantir a mobilização, quer em termos de números como de prazo». 

Seja como for, os relatos que vão chegando dão alguma indicação do estado das forças russas. Num vídeo divulgado nas redes sociais, esta semana, e verificado pela RFE/RL, um recruta contava que a sua unidade inteira seria enviada para a frente de imediato. «Foi-nos dito oficialmente que não haverá treino nenhumantes de sermos enviados para a zona de guerra», relatava. «Não houve nenhum treino de tiro, nenhum treino teórico, nada», continuava. «Decidam por vocês mesmos o que fazer no futuro».

O vídeo foi gravado em Kalininets, perto de Moscovo, na base da 2ª Divisão de Guardas Fuzileiros Motorizados. Supostamente, seria uma das melhores divisões motorizadas russas, com a história de ter sido das mais decoradas durante a II Guerra Mundial. Mas tem estado em combate desde o início da invasão, tendo sido devastada por perdas durante a tentativa de cercar Kiev e outra vez no início do mês, sendo apanhada contra-ofensiva em Kharkiv.

Esta divisão de elite «provavelmente está incapaz de combater mais», escrevera a Forbes, há duas semanas. «Poderia ser reconstituída, com o quê e com quem?». Talvez com os recrutas mencionados no vídeo. Que, ainda por cima, foram informados que serão enviados para Kherson, no sul, onde se têm travado alguns  dos combates mais duros, com os ucranianos a atingir sistematicamente com mísseis a retaguarda russa, tentando isolá-la, enquanto guerrilheiros se desdobram em atos de sabotagem. 

Ainda assim, o envio de recrutas, desde que tendo o mínimo de treino pode ter impacto. «Existem forças que estão a combater na frente três ou quatro meses seguidos», aponta Mendes Dias.  «E este pessoal  com menos experiência, em tese vai para as zonas onde é preciso aguentar linhas, para permitir a rotação da tropa da frente para trás, para descansar e reagrupar. E eventualmente para pensar numa ofensiva futura».

Aliás, um dos benefícios para o Kremlin dos referendos para a anexação das regiões ocupadas – Lugansk, Donetsk, Zaporínjia e Kherson – foi exatamente permitir o envio de conscritos para esse território, que agora vê como sendo russo. Se o conseguirá manter até ao inverno, quando é esperado que os combates abrandem, já é outra questão.