Era notório um certo desespero nas políticas de recrutamento do Kremlin, cada vez mais dependente de milícias chechenas ou mercenários, recrutando até em prisões. Contudo, com o anúncio de uma mobilização nacional parcial, nesta quarta-feira, pretendendo ir buscar 300 mil reservistas, a escassez de recursos humanos do Kremlin não fica resolvida, apontam analistas. Ao mesmo tempo que escalou o descontentamento entre a população russa, que até agora não tinha sentido tão diretamente os impactos da guerra.
O problema do Kremlin é que o contingente russo na Ucrânia está debilitado por baixas catastróficas – já perderam até 80 mil tropas, estima o Pentágono, batendo largamente as 15 mil baixas soviéticas ao longo de duas décadas de ocupação do Afeganistão. E têm de defender uma gigantesca linha da frente, com mais de mil quilómetros, como frisou Vladimir Putin, no discurso em que anunciou a mobilização nacional parcial.
A medida, que deixa bem claro que Putin não pretende pôr termo à invasão num futuro próximo, «pode chegar para sustentar os atuais níveis de recursos humanos das forças armadas russas em 2023, ao compensar as baixas russas», avaliou o Instituto para o Estudo da Guerra. «Apesar que nem isso é claro ainda».
Foi essa escassez que obrigou o Kremlin a retirar as suas melhores tropas de Izium, a sudeste de Kharkiv, para reforçar Kherson, a mais de 500 quilómetros a sul. Forças ucranianas não hesitaram em aproveitar o ponto fraco, avançando em profundidade e levando invasores a fugir, de forma caótica, deixando para trás arsenais inteiros. O regime de Putin sabe que, se não fizer nada, poderá voltar a ter buracos na linha da frente. E aí o descalabro militar haveria de repetir-se. O problema do Kremlin é que o reforço deverá demorar a chegar.
Teoricamente, a mobilização nacional parcial deverá abranger só reservistas com experiência de combate. E a Rússia, apesar de ter ter reservas com quase 25 milhões de efetivos, não tem com prática refrescar-lhes regularmente a memória. Ou seja, centenas de milhares de recrutas – potencialmente com pouca vontade de combater, sendo que muitos estarão em fraca forma física – terão que ser retreinados.
«A prática, na Rússia, é que as brigadas de linha da frente tratem da maior parte do treino das novas tropas», explicou um correspondente para a Defesa da Forbes. No entanto, talvez o Kremlin conte com uma desaceleração do conflito. O meses de outubro, novembro e dezembro costumam ser muito frios e chuvosos permitindo às novas tropas estar expostas a confrontos menos ferozes enquanto reaprendem a combater. Isto assumindo que o Governo de Kiev não decide insistir nas suas operações ofensivas, apesar das dificuldades causadas pelo duro inverno ucraniano.
Já preparar em território russo as reservas mobilizadas também será difícil. Ainda este verão se avançava que boa parte dos oficiais de unidades de instrução foram mobilizados para a Ucrânia, tentando colmatar as baixas sofridas na primavera, durante a falhada tentativa de cerco a Kiev.
Na prática, estes novos recrutas à força «terão alguma experiência militar, por isso não vai ser preciso treiná-las a disparar uma arma», reforçou Shashank Joshi, correspondente de Defesa do Economist. «Mas eles têm oficiais para os liderar? Têm equipamento com que lutar? Têm rádios portáteis seguros suficientes?», questionou.
Aqui, entra a mobilização da indústria russa, anunciada em paralelo. Contudo, isso não enfrentará a escassez de recursos como semicondutores – essencial para a produção de chips – que tem obrigado as forças armadas russas a recorrer a equipamento e munições ao estilo da II Guerra Mundial. Estando o seu stock de material mais moderno, como mísseis inteligentes, muito em baixo.
Já o custo político da mobilização pode ser enorme. «As guerras são populares até que subitamente não são», escreveu Max Bergmann, investigador Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla inglesa). «Demorou dois anos para o público americano se virar decisivamente contra a guerra do Iraque devido ao crescendo das baixas, repetidas mobilizações e uma sensação de confusão quanto aos motivos da guerra», exemplificou o investigador.