A governamentalização da investigação criminal


Permitir a um órgão dependente do Governo tomar conhecimento de investigações criminais e ingerir-se no âmbito da competência do Ministério Público corresponde a uma clara governamentalização da investigação criminal.


No passado dia 11 de Agosto o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei nº 28/XV, que procede à reestruturação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional. Esse Ponto Único de Contacto foi criado pelo Decreto-Lei 49/2017, de 24 de Maio, tendo sido inserido na dependência do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, que se encontra subordinado ao Governo.

Agora o Governo propõe ao Parlamento que sejam integrados nesse Ponto Único de Contacto a Unidade Nacional da EUROPOL e o Gabinete Nacional da INTERPOL que neste momento se encontram enquadrados no âmbito da Polícia Judiciária. O resultado desta proposta de lei é assim a de que toda a cooperação policial internacional, em áreas como o tráfico de estupefacientes, o tráfico de armas ou o branqueamento de capitais, sairá da esfera da Polícia Judiciária para ficar integrada num órgão dependente do Governo. A lei chega ao ponto de estabelecer na nova redacção atribuída ao art. 23º-A, nº2, j) da Lei de Segurança Interna que passa a competir a esse órgão “auxiliar as autoridades judiciárias, nos termos da lei processual penal, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal”. Teremos assim uma clara inserção de um órgão administrativo nas competências das autoridades judiciárias, que deixam assim de possuir autonomia na condução da investigação criminal.

Esta proposta é claramente inconstitucional por violar o princípio da separação de poderes e a autonomia do Ministério Público no exercício da acção penal, constante do art. 219º da Constituição. Sob pena de grave lesão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a investigação criminal deve ser realizada pela Polícia Judiciária sob a direcção do Ministério Público, não pelo Sistema de Segurança Interna sob controlo do Governo, ainda que a pretexto de “auxiliar as autoridades judiciárias”. Permitir a um órgão dependente do Governo tomar conhecimento de investigações criminais e ingerir-se no âmbito da competência do Ministério Público corresponde a uma clara governamentalização da investigação criminal, o que constitui um sério risco para o Estado de Direito.

O primeiro-ministro costuma referir que à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Com esta proposta de lei, estamos a confundir claramente o campo da política e da actividade governativa com o campo da justiça e da investigação criminal. A segurança interna não pode servir de pretexto para pôr em causa os direitos e liberdades fundamentais, como inevitavelmente ocorre se se coloca a investigação criminal sob o controlo do Governo. Espera-se, por isso, que o Tribunal Constitucional possa ser chamado a fiscalizar a constitucionalidade deste diploma. Já bastam os sucessivos diplomas inconstitucionais aprovados durante o período da pandemia para assistirmos agora a mais esta machadada no nosso Estado de Direito.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

A governamentalização da investigação criminal


Permitir a um órgão dependente do Governo tomar conhecimento de investigações criminais e ingerir-se no âmbito da competência do Ministério Público corresponde a uma clara governamentalização da investigação criminal.


No passado dia 11 de Agosto o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei nº 28/XV, que procede à reestruturação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional. Esse Ponto Único de Contacto foi criado pelo Decreto-Lei 49/2017, de 24 de Maio, tendo sido inserido na dependência do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, que se encontra subordinado ao Governo.

Agora o Governo propõe ao Parlamento que sejam integrados nesse Ponto Único de Contacto a Unidade Nacional da EUROPOL e o Gabinete Nacional da INTERPOL que neste momento se encontram enquadrados no âmbito da Polícia Judiciária. O resultado desta proposta de lei é assim a de que toda a cooperação policial internacional, em áreas como o tráfico de estupefacientes, o tráfico de armas ou o branqueamento de capitais, sairá da esfera da Polícia Judiciária para ficar integrada num órgão dependente do Governo. A lei chega ao ponto de estabelecer na nova redacção atribuída ao art. 23º-A, nº2, j) da Lei de Segurança Interna que passa a competir a esse órgão “auxiliar as autoridades judiciárias, nos termos da lei processual penal, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal”. Teremos assim uma clara inserção de um órgão administrativo nas competências das autoridades judiciárias, que deixam assim de possuir autonomia na condução da investigação criminal.

Esta proposta é claramente inconstitucional por violar o princípio da separação de poderes e a autonomia do Ministério Público no exercício da acção penal, constante do art. 219º da Constituição. Sob pena de grave lesão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a investigação criminal deve ser realizada pela Polícia Judiciária sob a direcção do Ministério Público, não pelo Sistema de Segurança Interna sob controlo do Governo, ainda que a pretexto de “auxiliar as autoridades judiciárias”. Permitir a um órgão dependente do Governo tomar conhecimento de investigações criminais e ingerir-se no âmbito da competência do Ministério Público corresponde a uma clara governamentalização da investigação criminal, o que constitui um sério risco para o Estado de Direito.

O primeiro-ministro costuma referir que à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Com esta proposta de lei, estamos a confundir claramente o campo da política e da actividade governativa com o campo da justiça e da investigação criminal. A segurança interna não pode servir de pretexto para pôr em causa os direitos e liberdades fundamentais, como inevitavelmente ocorre se se coloca a investigação criminal sob o controlo do Governo. Espera-se, por isso, que o Tribunal Constitucional possa ser chamado a fiscalizar a constitucionalidade deste diploma. Já bastam os sucessivos diplomas inconstitucionais aprovados durante o período da pandemia para assistirmos agora a mais esta machadada no nosso Estado de Direito.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990