A expressão “o que preocupa os portugueses” é agora a muleta discursiva da primeiro-ministro para não dar explicações aos cidadãos, responder aos jornalistas ou proclamar os assuntos como não temas, com a anuência do exercício jornalístico e da política a banhos. É certo que o que importa ao país real diverge amiúde da espuma que povoa os mares noticiosos do burgo, mas não há nenhuma razão válida para que, em 2022, um titular de cargo político se julgue na posição de não responder a um tema que tem relevância moral, política e social.
Alguém era diretor de um canal de televisão convidou um político no ativo para lhe dar expressão mediática, posicionando-o como putativo sucessor de uma liderança, alguém como ministro em função do estrelato alcançado contratou o ex-diretor da estação onde comentou para avaliar as políticas públicas. A barganha parece evidente, não é muito diferente do registo vigente durante anos da Câmara Municipal de Lisboa, que contribuiu para a sua perda eleitoral, revelando um evidente sentido de incapacidade para aprender com os erros do passado e a prepotência de há muito. Não ser este um tema que povoa o quotidiano dos portugueses, alguns enfunados pela candura das férias, outros amargurados pelas insuficiências de recursos e pelas incertezas, não desgradua em nada a importância dos esclarecimentos, além das evidências, e a sua relevância política. E de nada valerá, invocar a autonomia dos gabinetes ou o miraculoso “não sei, não me lembro”. Infelizmente, a divergência de alguns protagonistas com a ética, o sentido de equilíbrio e o interesse geral são demasiado previsíveis, ao invés da realidade e da vida das pessoas, mesmo em territórios em queco verão surge como lufada de ar fresco.
De Almograve, Odemira, no país real, além do enfoque das estufas e dos números político-mediáticos, há gente que luta para sobreviver, para dar razão a terras que fazem parte de Portugal, que têm direitos e deveres ao longo dos 365 dias do ano, contas para pagar e caminhos para continuar a percorrer.
É assim que no talho, a imprevisibilidade dos ritmos e hábitos de consumo implica ajustamentos na organização dos fluxos de procura, antes ao fim-de-semana, agora durante toda a semana e menos nos tempos de outrora.
É assim que o vendedor de peixe, apesar da loucura dos preços dos combustíveis, insiste em fazer uma dispendiosa venda porta-a-porta em relação a alguns clientes para garantir que, no inverno, consegue manter algum ritmo de fornecimento de peixe, assegurando a subsistência.
A sobrevivência política como a da vida compõe-se de muitas realidades em que a alguns tudo é permitido, numa consagração fétida do “vale tudo”, enquanto boa parte do país, longe dos centros do poder, se esforça para manter esforços de alguma previsibilidade, de ajustamento e resposta ao dia-a-dia ausente das cogitações dos corredores dos poderes. Esse mar que separa, que oscila entre as intransigências de algumas expressões das políticas públicas e dos seus serviços em relação ao cidadão, a quem faz e a quem procura contribuir para as dinâmicas das comunidades e dos territórios, por contraste com uma prepotência política resultante de um manifesto abuso cívico da posição dominante, é gerador de descrença democrática, de degradação do exercício político e de temores em relação ao futuro. Tudo campos férteis de colheita para os extremistas e os inimigos da democracia.
A verdade é que, mesmo no quadro das ânsias de retoma de todas as dinâmicas interrompidas pela pandemia, como se não houvesse amanhã, a sociedade portuguesa apresenta-se ainda mais dual, entre os que podem e os que não podem. Só assim se justifica que algumas partes do território com oferta turística premium estejam a abarrotar e os palcos das expressões turísticas mais comedidas estejam a meio gás, com menos gente, o que implica menos aforro para o resto do ano por parte de quem recebe. Sem grande atenção política e mediática, confesso que a modelação do esforço dos serviços básicos para a qualidade de vida entre o quotidiano normal e os picos de procura do verão sempre me mereceram a maior consideração por um enorme esforço de gestão das autarquias locais, dos serviços públicos e concessionados e das populações. Uma vez mais, a imprevisibilidade dos fluxos implica o estar preparado para os diversos cenários, como acontece cada vez mais nas nossas vidas, apesar da persistência de uma elite de previsíveis. Os previsíveis nomeiam quem querem, fazem quase o que querem e dão-se ao luxo de não ter de dar explicações a ninguém sobre as opções políticas, as ações e a inações como se o poder não emanasse do povo. O que era defeito, constituiu-se feitio, é o resultado de um padrão de comportamento. Pode até não preocupar os portugueses focados na sobrevivência, mas deveria fazer tocar as campainhas de alarme de quem preserva a democracia como ela devia ser, com escrutínio e sem prepotências alheadas do interesse comum. No atual quadro, é pedir demais. Sobra mais Almograve, por uns tempos, e o seu sentido de persistência, resiliência e quotidiano além dos holofotes que implodem o presente e nada fazem pelo futuro.
NOTAS FINAIS
CHALANA E O ENCANTAMENTO. Quantas tardes vinha de Abrantes ao Estádio da Luz para os encantamentos de Chalana, esse poço de magia, desconcerto e beleza no jogo jogado do Glorioso e da seleção nacional. Foi pela sua magia que muitos sonhos surgiram, sem a atenção dos nossos tempos, que servem sempre para alguns querer reescrever passados. Chalana foi singular, perdurará na alma daquelas tardes e noites depois de muitos quilómetros feitos na estrada. Para ele bastavam centímetros, poucos metros, para ativar o encantamento. É essa memória que perdurará, única, só alcance dos melhores.
MARCELO RODOVIÁRIO. Bem podem as poucas campanhas de segurança rodoviária e as forças de segurança manifestarem preocupações com o aumento de número de mortes na estrada decorrentes da sinistralidade, que o Presidente da República, apesar do cinto posto, dá o exemplo à nação de que se pode conduzir a alta velocidade e dar uma entrevista a uma televisão.
ALBARDAR À VONTADE DO DONO. Já não é a primeira vez que se altera legislação em função da dificuldade política concreta. A carreira docente perdeu atratividade, o governo quer facilitar as regras da angariação, modelando das habilitações necessárias para dar aulas, o que ampliará o universo de recrutamento. É um péssimo sinal social.