“Marcelo não vê razões para cardeais terem querido ocultar abusos sexuais na Igreja”. Leem-se as afirmações do Presidente da República ontem, no mesmo dia em que não quis comentar as questões entre o presidente da AR e o líder de um partido por entender que não é esse o seu papel, e custa a acreditar que tenham sido proferidas pela mesma pessoa.
A explicação oficial será que não foram porque falou a pessoa e não o Presidente da República, uma questão metafísica que parece servir para uns temas e não para outros. Sabia-se que a investigação inédita pedida pela Igreja Portuguesa aos casos de abusos sexuais ia ser difícil. Se se soubesse o que aconteceu nas últimas décadas, não era preciso investigação.
Nos últimos meses, tem-se assistido ao trabalho de uma comissão que tem sido proativa nos pontos de situação e nas suas preocupações, explicando a cada momento o que está a ser feito dentro do sigilo pedido pelas vítimas. Os responsáveis da Igreja, com mais ou menos resistência interna, têm-se mostrado firmes no propósito de levar este processo até ao fim.
O coordenador Pedro Strecht já afirmou que foi possível identificar indícios de encobrimento e ocultação de casos de abuso sexual em Portugal, o que de resto já se sabia das investigações de outros países, que apontam o contexto e diretrizes da Igreja que só nos últimos anos passou a falar de tolerância zero, mas também vergonha, a própria relutância das vítimas, a tolerância geral para com a violência e abusos (e isso foi/é transversal a toda a sociedade).
E sabendo tudo isto, perante um caso concreto, uma denúncia recebida pelo Patriarcado de Lisboa em 1990 que só agora foi reportada à justiça, noticiou esta semana o Observador, ficamos a saber que Marcelo Rebelo de Sousa, “enquanto pessoa e não como Presidente da República”, não vê razões para que D. José Policarpo e D. Manuel Clemente “pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime”.
Independentemente da estima e consideração pessoais, este é um assunto que não precisa de mais atos de fé, menos ainda do chefe de Estado, mas de clareza, conclusões e consequências.