Houve um tempo em que Verão era considerado a silly season, tantos eram os desmandos verbais e de ação que tomavam conta das instituições e dos protagonistas, mas o mundo mudou. Agora, a silly season assumiu vocação anual, pavoneia-se pelos 365 dias do ano, com aparente comiseração cívica e displicência de quem assume funções públicas pela conjugação da vontade política com o mandato popular.
O problema é que a generalização do disparate ou da estupidez, em português, está a ir ao tutano do sentido dos princípios, valores e regras que norteiam o funcionamento da sociedade portuguesa. Com complacência geral, há conceitos que estão em mutação, moldados à medida dos poderes vigentes, sem a sanção adequada e com perigosas derivas que caracterizaram outros regimes, noutras latitudes e longitudes. Vejamos o caso da responsabilidade política.
A responsabilidade política, pela ação ou omissão, sempre transportou consigo um juízo ético sobre o exercício e as consequências do exercício, mas agora não. Munidos de uma certa impunidade, os titulares de cargos políticos, desde logo, o líder do executivo, têm ensaiado a tese de que responsabilidade política é resolver os problemas, é trabalhar nas respostas, que acabam por ser quase sempre menos que soluções. O remendo é a resposta da responsabilização política perante um problema, um acontecimento ou uma situação.
Portanto, não importa se houve possibilidade de antecipação, se houve planeamento para evitar ou potenciar uma ideia, nem mesmo se as opções foram as adequadas para o que é estrutural, circunstancial ou emergente. Não há nenhum juízo sobre o exercício até à situação concreta ou à consequência. O que importa quase sempre é o futuro. O tempo que está para vir ou o que vai ser feito em reação à atualidade é a cenoura dos quotidianos políticos, sem ideia para o país, sem rasgo e sem coragem para as reformas e decisões que se impõem.
Governar é muito mais do que ter uma lista de tarefas para responder no dia-a-dia aos problemas que vão surgindo, porque não se fez, porque as dinâmicas nacionais são assim ou porque a conjuntura internacional afeta as realidades nacionais em função dos níveis de resiliência e exposição. Infelizmente, emerge uma certa perceção de incómodo com a maioria absoluta, primeiro na presidência da República, e cada vez mais no governo. Um governo que não sabe o que fazer com a maioria absoluta acaba a correr atrás do prejuízo, desfocado do que importa.
Houve um tempo em que a desculpa era o passado de Passos Coelho e Paulo Portas, depois a desculpa poderia ser as tentações do Bloco e do PCP, agora, ainda que havendo as sequelas da pandemia e da guerra, há cada vez menos desculpas para que se cumpra o potencial maior de uma maioria absoluta, com alguns recursos: fazer. Por agora, evidencia-se uma dificuldade em saber o que fazer com a maioria absoluta, mas esta debilidade de liderança facilmente se transforma no problema estrutural de “o que fazer”, mesmo com guiões de PRR e afins.
É o que acontece quando a responsabilidade política se dilui ou é absolvida pela tese da validação eleitoral. Se os eleitores aprovam o exercício pelo voto, não é preciso haver responsabilização política durante o exercício. A ética, a responsabilização consequente e o escrutínio passam a ser dispensáveis durante os exercícios políticos.
O drama maior é o da sinalização destas atitudes para os cidadãos e para a sociedade. O problema é o exemplo dado. E começa a assistir-se à generalização de situações, nos diversos setores da sociedade portuguesa.
Quando temos a Federação Portuguesa de Futebol a montar um esquema de fuga ao fisco para contratar o selecionador nacional e se considera que, pela liquidação do valor devido ao Estado como qualquer contribuinte, a atitude de promoção de uma ilegalidade por uma instituição de utilidade pública está resolvida, é uma expressão da desresponsabilização que se instala na sociedade portuguesa. Desde que resolvas o incumprimento detetado, tudo é possível. Se ninguém der por ela, temos pena. Convenhamos que esta deriva, em generalização, não pode ser a referência da República.
É claro que se pode sempre dizer que a ética da República é a que consta da lei e até se pode alterar as normas legais para ser mais favorável como já aconteceu várias vezes aos longo dos últimos anos, mas, num tempo de incertezas e dúvidas, caminharemos todos para a selvajaria social, com o triunfo da geometria variável. Tudo é possível, em função do protagonista, com a complacência das instituições e dos cidadãos. Basta corrigir o que é detetado ou anunciar que se vai corrigir a situação, com as propostas futuras resultantes de um qualquer plano, comissão ou grupo de trabalho.
Por muito que custe a alguns, responsabilidade e responsabilização política não são isso. Se não planeou ou antecipou, devia tê-lo feito. Se aconteceu e decorre da inação, desajustamento das opções ou da não resolução de problemas de sempre, alguma coisa consequente deveria ter sido feita. Tudo o resto é conversa para entreter a pouca exigência cívica e mediática vigente em Portugal que, conjugada com a volatilização da ética, senso e sentido de serviço, conduzem à instalação da silly season nos diversos dias do ano.
Sem reforço do sentido de responsabilização, com extrapolação consequente dos resultados, e maior exigência cívica, as derivas persistirão no sentido de fragilizar os pilares e as regras da sociedade portuguesa. Cada vez mais desigual e arbitrária. É o triunfo do vale tudo, pelo menos, para alguns, desde que mitiguem ou corrijam os incumprimentos quando detetados. Os outros, já eram.
Notas finais
Nova variante dos portugueses piegas. Já lá vão 10 anos. O país sob intervenção da troika indignou-se com as palavras de Pedro Passos Coelho, “Devemos persistir, ser exigentes, não sermos piegas…”. Agora surgiu uma nova variante. Graça Freitas pede aos “portugueses esforço para não ficarem doentes” porque “agosto não é um bom mês para ter acidentes ou doenças”. Portanto, num país com fragilidades no planeamento, os portugueses piegas, têm de agendar as doenças. Marcelo Rebelo de Sousa corrobora com um “cada qual fará um esforço para não estar doente, por si mesmo e para não pressionar o cuidado de saúde dos outros”. É silly e não é da season. O “não ir lá, ao SNS” nestes dois anos de pandemia, está provavelmente a evidenciar-se nos índices de mortalidade que se registam, mas a preocupação não é reforçar a resposta, é apelar ao alívio da pressão, como se estar doente fosse um gosto, um desporto ou ocupação dos tempos livres. Miséria.
Burnout institucional. Há uma série de instituições e serviços públicos sem condições para responder às necessidades em que a solução não é pedir para não ampliar a pressão. O foco é mobilizar recursos e meios para planear, agir e antecipar, mas o Estado prefere desmantelar o que só não funcionava melhor por falta de recursos, como acontece com o SEF. E com isso abre novas frentes de disputas de áreas e territórios nas forças de segurança e órgãos de polícia criminal. Desfoca e amplia as quintinhas. Enfim, disparates.