Os devoradores de bactérias


Espera-se que os fagos possam constituir uma última linha de defesa no tratamento de infecções recalcitrantes. É por isso urgente continuar a investigar que papel poderão os minúsculos devoradores de bactérias descobertos por Twort e d’Herelle assumir no futuro no combate às infecções multi-resistentes.


Os antibióticos permitiram reduzir de forma significativa o impacto das infecções bacterianas na saúde pública. No entanto, o aparecimento de bactérias multi-resistentes ameaça agravar um problema que ainda há poucos anos parecia estar sob controlo. Uma ajuda importante nesta luta poderá ser dada futuramente por uma classe de partículas biológicas minúsculas conhecidas como bacteriófagos. Estes vírus especializados possuem uma capacidade natural de infectar e destruir bactérias. Embora a ideia de explorar terapeuticamente estas propriedades tenha mais de 100 anos, apenas agora se começam a dar passos firmes no sentido de explorar a chamada terapia fágica como uma eventual alternativa aos antibióticos. 

A primeira sugestão de que existiria na natureza uma entidade capaz de matar bactérias partiu do microbiólogo inglês Frederick Twort em 1915. Dois anos depois, o franco-canadiano Félix d’Herele do Instituto Pasteur anunciaria a descoberta de um agente invisível e minúsculo que destruía o bacilo da disenteria [1]. De forma presciente, o cientista antecipou estar na presença de um vírus que parasitava bactérias, chamando-o de bacteriófago, i.e. aquele que devora bactérias.

Mas d’Herelle foi além da mera descoberta, propondo que estes bacteriófagos (ou mais simplesmente, fagos) poderiam tratar infecções humanas. Juntamente com alguns colegas, administrou um cocktail de fagos num rapaz vitimado por uma disenteria severa, observando a sua recuperação plena alguns dias depois [2]. Entusiasmado, d’Herelle continuou as suas pesquisas, criando preparações de fagos para tratar infecções intestinais, respiratórias e da pele. O cientista viria ainda a criar com o médico George Eliava em 1923, um Centro mundial de investigação e terapia por fagos em Tbilisi, na Geórgia, que ainda hoje permanece activo e uma referência na área [2].

Os fagos constituem a entidade biológica mais abundante e diversa do nosso planeta. Estes agentes minúsculos (com cerca de 100 nanómetros) exploram de forma implacável os seus alvos bacterianos de modo a tornear a incapacidade de se multiplicarem autonomamente. O assalto envolve a injecção do material genético e geração subsequente de inúmeras cópias do atacante. Em muitos casos, a bactéria atacada acaba virtualmente por explodir, libertando um novo exército de invasores vorazes.

Povoando todos os nichos ecológicos onde existem bactérias, os fagos são responsáveis por biliões de biliões de ataques a cada segundo. Onde quer que procuremos – rios, mares, solos, florestas, seres vivos – encontraremos certamente fagos.  Só nos oceanos, estima-se que até 40% de todas as bactérias vivas num certo dia sejam destruídas por fagos. Apesar deste poder, estes exterminadores implacáveis de bactérias não infectam outras células, sendo, portanto, totalmente inofensivos para o homem. A elevada especificidade é outra característica marcante, já que cada fago infecta apenas e quase exclusivamente um único tipo de bactéria [1,2].

Durante os anos 1920s e 30s, e na senda de d’Herelle, muitos investigadores exploraram as capacidades terapêuticas dos fagos. Nos anos 40, a empresa Eli Lilly chegou mesmo a produzir e comercializar fagos para tratar infecções bacterianas em humanos [2]. Contudo, os resultados nunca foram suficientemente convincentes. Com grande probabilidade, nem a ciência, nem os métodos de produção se encontravam suficientemente avançados para suportar aquilo que, na verdade, nunca deixou de ser uma terapia experimental. Com o advento da penicilina e dos antibióticos, a terapia fágica viria a cair no esquecimento do mundo ocidental. Só algumas regiões do Leste europeu onde o acesso a antibióticos era limitado – Rússia, Polónia e Geórgia – continuaram a apostar no potencial daquela terapia.

A terapia fágica foi redescoberta no Ocidente nos anos 1980 [1,2]. O interesse foi despertado pelo aparecimento crescente e preocupante de estirpes de bactérias multi-resistentes. A estratégia passa por criar misturas de fagos que infectam uma mesma bactéria alvo, ou então que infectam bactérias diferentes. Nos últimos anos têm sido desenhados ensaios clínicos para averiguar cientificamente a segurança e eficácia destes cocktails de devoradores de bactérias no tratamento das infecções mais diversas. Aqui, existem alguns aspectos onde os fagos poderão suplantar os antibióticos. Por exemplo, a sua elevada especificidade significa que, e ao contrário dos antibióticos de espectro largo, não afectam bactérias benéficas do microbioma humano.

Adicionalmente, se uma bactéria desenvolver resistência a um dado fago, é possível com grande probabilidade identificar na natureza outros fagos capazes de desempenhar o mesmo papel. Por outro lado, a elevada especificidade obriga forçosamente a identificar o tipo particular de bactéria associada a uma dada infecção antes de iniciar o tratamento.

Acresce que a definição da dosagem de um cocktail de fagos não é trivial e que a administração de fagos carregados de material genético é, para muitos cépticos, preocupante.

Apesar das perspectivas animadoras, parece seguro antever que os fagos nunca destronarão os antibióticos. Ao invés, espera-se que os fagos possam constituir uma última linha de defesa no tratamento de infecções recalcitrantes. É por isso urgente continuar a investigar que papel poderão os minúsculos devoradores de bactérias descobertos por Twort e d’Herelle assumir no futuro no combate às infecções multi-resistentes.

[1] Wittebole, X., De Roock, S., Opal, S. M., A historical overview of bacteriophage therapy as an alternative to antibiotics for the treatment of bacterial pathogens. Virulence, 5 (2014) 226–235. 
[2] Walter, K.  Will viruses save us from superbugs? Nautilus, 1 Dezembro 2016.

Os devoradores de bactérias


Espera-se que os fagos possam constituir uma última linha de defesa no tratamento de infecções recalcitrantes. É por isso urgente continuar a investigar que papel poderão os minúsculos devoradores de bactérias descobertos por Twort e d’Herelle assumir no futuro no combate às infecções multi-resistentes.


Os antibióticos permitiram reduzir de forma significativa o impacto das infecções bacterianas na saúde pública. No entanto, o aparecimento de bactérias multi-resistentes ameaça agravar um problema que ainda há poucos anos parecia estar sob controlo. Uma ajuda importante nesta luta poderá ser dada futuramente por uma classe de partículas biológicas minúsculas conhecidas como bacteriófagos. Estes vírus especializados possuem uma capacidade natural de infectar e destruir bactérias. Embora a ideia de explorar terapeuticamente estas propriedades tenha mais de 100 anos, apenas agora se começam a dar passos firmes no sentido de explorar a chamada terapia fágica como uma eventual alternativa aos antibióticos. 

A primeira sugestão de que existiria na natureza uma entidade capaz de matar bactérias partiu do microbiólogo inglês Frederick Twort em 1915. Dois anos depois, o franco-canadiano Félix d’Herele do Instituto Pasteur anunciaria a descoberta de um agente invisível e minúsculo que destruía o bacilo da disenteria [1]. De forma presciente, o cientista antecipou estar na presença de um vírus que parasitava bactérias, chamando-o de bacteriófago, i.e. aquele que devora bactérias.

Mas d’Herelle foi além da mera descoberta, propondo que estes bacteriófagos (ou mais simplesmente, fagos) poderiam tratar infecções humanas. Juntamente com alguns colegas, administrou um cocktail de fagos num rapaz vitimado por uma disenteria severa, observando a sua recuperação plena alguns dias depois [2]. Entusiasmado, d’Herelle continuou as suas pesquisas, criando preparações de fagos para tratar infecções intestinais, respiratórias e da pele. O cientista viria ainda a criar com o médico George Eliava em 1923, um Centro mundial de investigação e terapia por fagos em Tbilisi, na Geórgia, que ainda hoje permanece activo e uma referência na área [2].

Os fagos constituem a entidade biológica mais abundante e diversa do nosso planeta. Estes agentes minúsculos (com cerca de 100 nanómetros) exploram de forma implacável os seus alvos bacterianos de modo a tornear a incapacidade de se multiplicarem autonomamente. O assalto envolve a injecção do material genético e geração subsequente de inúmeras cópias do atacante. Em muitos casos, a bactéria atacada acaba virtualmente por explodir, libertando um novo exército de invasores vorazes.

Povoando todos os nichos ecológicos onde existem bactérias, os fagos são responsáveis por biliões de biliões de ataques a cada segundo. Onde quer que procuremos – rios, mares, solos, florestas, seres vivos – encontraremos certamente fagos.  Só nos oceanos, estima-se que até 40% de todas as bactérias vivas num certo dia sejam destruídas por fagos. Apesar deste poder, estes exterminadores implacáveis de bactérias não infectam outras células, sendo, portanto, totalmente inofensivos para o homem. A elevada especificidade é outra característica marcante, já que cada fago infecta apenas e quase exclusivamente um único tipo de bactéria [1,2].

Durante os anos 1920s e 30s, e na senda de d’Herelle, muitos investigadores exploraram as capacidades terapêuticas dos fagos. Nos anos 40, a empresa Eli Lilly chegou mesmo a produzir e comercializar fagos para tratar infecções bacterianas em humanos [2]. Contudo, os resultados nunca foram suficientemente convincentes. Com grande probabilidade, nem a ciência, nem os métodos de produção se encontravam suficientemente avançados para suportar aquilo que, na verdade, nunca deixou de ser uma terapia experimental. Com o advento da penicilina e dos antibióticos, a terapia fágica viria a cair no esquecimento do mundo ocidental. Só algumas regiões do Leste europeu onde o acesso a antibióticos era limitado – Rússia, Polónia e Geórgia – continuaram a apostar no potencial daquela terapia.

A terapia fágica foi redescoberta no Ocidente nos anos 1980 [1,2]. O interesse foi despertado pelo aparecimento crescente e preocupante de estirpes de bactérias multi-resistentes. A estratégia passa por criar misturas de fagos que infectam uma mesma bactéria alvo, ou então que infectam bactérias diferentes. Nos últimos anos têm sido desenhados ensaios clínicos para averiguar cientificamente a segurança e eficácia destes cocktails de devoradores de bactérias no tratamento das infecções mais diversas. Aqui, existem alguns aspectos onde os fagos poderão suplantar os antibióticos. Por exemplo, a sua elevada especificidade significa que, e ao contrário dos antibióticos de espectro largo, não afectam bactérias benéficas do microbioma humano.

Adicionalmente, se uma bactéria desenvolver resistência a um dado fago, é possível com grande probabilidade identificar na natureza outros fagos capazes de desempenhar o mesmo papel. Por outro lado, a elevada especificidade obriga forçosamente a identificar o tipo particular de bactéria associada a uma dada infecção antes de iniciar o tratamento.

Acresce que a definição da dosagem de um cocktail de fagos não é trivial e que a administração de fagos carregados de material genético é, para muitos cépticos, preocupante.

Apesar das perspectivas animadoras, parece seguro antever que os fagos nunca destronarão os antibióticos. Ao invés, espera-se que os fagos possam constituir uma última linha de defesa no tratamento de infecções recalcitrantes. É por isso urgente continuar a investigar que papel poderão os minúsculos devoradores de bactérias descobertos por Twort e d’Herelle assumir no futuro no combate às infecções multi-resistentes.

[1] Wittebole, X., De Roock, S., Opal, S. M., A historical overview of bacteriophage therapy as an alternative to antibiotics for the treatment of bacterial pathogens. Virulence, 5 (2014) 226–235. 
[2] Walter, K.  Will viruses save us from superbugs? Nautilus, 1 Dezembro 2016.