Paula Rego: a mulher que, com os seus bonecos, contou a História de Portugal do avesso

Paula Rego: a mulher que, com os seus bonecos, contou a História de Portugal do avesso


Inspirada pelo fantástico e conjurando cenas do folclore português, da literatura clássica e até dos filmes da Disney, Paula Rego serviu-se dos instrumentos mais miúdos e aparentemente benignos para orquestrar uma vingança através da representação da sórdida muralha que habitamos.


Acontece amiúde, quando morre um desses maiores, um desses mais velhos na antiga tradição da infância, a que se salva do mero infantilismo ao redor, reduzido à canalhice e ao regime de pelintras em que estamos imersos, se formos oscular as reacções que se propagam pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais, apesar de uma consternação aparente, na verdade, pressente-se aquele tumulto de uma espécie de vitória, e animam-se a dar as novas como chibos eufóricos, e, depois, há como que um concurso de sugestões de títulos, lançam-se adjectivos numa espécie de fanfarronice, como quem gizasse os contornos da estranha criatura, e assim, de algum modo, a abatesse. Desta vez, foi uma mulher que nunca quis muito com essas grandes distinções. Paula Rego foi a grande plebeia, alguém que se pôs a capturar num remate de estória para a gandaia esses estafermos que usam tão mal os seus disfarces de infância, isto no tal país menino, que é, afinal, dos bufos. Pois ela nunca largou os lápis de cera com que os miúdos ensaiam os seus primeiros feitiços de captura das formas, só que a ela coube-lhe mexer mais fundo, com as entranhas do imaginário popular, das crenças e superstições, das fábulas que governam a moral, desse murmúrio que se ouve por trás das paredes, numa nação aos cochichos, emparedada, essa Elsinore com os seus “espaços cheios de gente de costas/ altas flores venenosas      portas por abrir/ e escadas e ponteiros e crianças sentadas/ à espera do seu tempo e do seu precipício”.

E o que foi que se ouviu quando chegou a notícia da sua passagem? Irreverente, transgressiva, desbragada… palavras dessas, pregos enferrujados desses de encalacrar a vida, pechisbeques verbais, coisas com que encher a boca nas grandes ocasiões em que todos se põem de acordo nas pequenas maldades, obtendo uma espécie de vingança contra quem nos expôs. São coisas que se dizem mais para espantar a má consciência, elogios que não cominam com a vida nem com a admiração que de facto se tem ou não tem, mas que se entregam à morte. Houve, no entanto, quem destoasse desta alegria disfarçada, um outro que se exilou faz já uma década em Berlim, nome de guerra: Elagabal Aurelius Keiser. Eis a sua reacção: “Se a Paula Rego não tivesse fugido de Portugal, do establishment conceptualista compulsivo das instituições, segundo os rigoristas ditames americanos culturais da guerra fria (que ainda hoje vigoram intactos), e que reduzem o artista a filósofo analítico amador, teria morrido esquecida. Não era nem será artista portuguesa, é inglesa e insere-se na linhagem em que estão pintores como Francis Bacon e Lucian Freud. Não há nada que um português se possa orgulhar no retrato implacável que as suas obras fazem de uma sociedade asfixiante, pidesca, obscura, microfascista, boçal, e que é a representação fiel da crueldade lusa mascarada de brandos costumes, um pesadelo kafkiano com cheiro a naftalina. Mais do que isso Paula Rego não era sequer artista, era sobretudo anartista e contadora de histórias, e é isso que a faz pairar muito acima desse bolor que hoje se denomina arte e cultura. Recordo as suas palavras que, para mim, são a maior lição de resistência e frescura face à podridão reinante: «Fazer arte é uma coisa que detesto, fazer arte mete nojo, eu faço bonecos!»”

Os grandes adjectivos vão bem quando o que se quer é limpar o sebo, esquecer a diferença e soterrá-la. Assim, o que a vozearia e o tom de marcha enfática faz é passar tentando limpar com as solas os desenhos feitos no chão, esse espelho doloroso, a de uma obra que, a despeito do reconhecimento e prestígio que obteve no deplorável mundo das artes, não deixou de ser fiel ao seu desígnio inicial, aquela forma de expiação de uma urdidura de males menores, de achaques, um regime que se ergue sobre o atavismo e a vigilância achincalhante. E ela tomou essa intriga e fez dela uma soberba paródia, num feroz gesto satírico, na linha do que fazem os miúdos, acusando a impostura do país onde nasceu e que por dentro é uma infâmia dolorenta, mas depois se recompõe, se enche de solenidades para inglês ver.

 A este jornal, Keiser, Mestre em Escultura, PhD em Estética, e investigador académico nas áreas de teoria da arte contemporânea, explica como a obra de Paula Rego “é uma espécie de vingança contra a cultura em que nasceu, é uma forma de resistência não só contra a cultura portuguesa, mas também a negação do que são as práticas artísticas vigentes”. E continua: “Se reparares, ela não se enquadra em nada de actual, não é contemporânea. Ela recorre à mais antiga teoria da arte, definida pelo Alberti, que é contar histórias, ela é um pouco aquilo que no século XIX era considerado a grande arte, a pintura histórica. Só que esta história não é a oficial, é a história contada por ela, é a história de Portugal do avesso.” E recorde-se a este respeito a icónica pintura “O Anjo”, que segundo a curadora Helena de Freitas se revestia de uma enorme importância no contexto da produção artística de Paula Rego, sintetizando todo o seu programa artístico. A própria pintora terá confessado tratar-se do trabalho que gostaria de levar para a sua última viagem. Não sendo explicitamente um autorretrato, esta obra é, nas palavras da curadora Helena de Freitas, “uma imagem forte e irradiante que se identifica com o sentido interventivo do trabalho da artista: entre a espada e a esponja, a protecção e a vingança, o castigo e o perdão”.

Face a isto, vemos essa tentação, essa quase ganância com que trepam uns pelos outros para ser testemunhas de uma espécie de queda, e põem-se a despedir a senhora com coisas muito edificantes, as quais nunca fizeram o seu estilo nem combinaram com a sua atitude sumamente despretensiosa. Uma das memórias que melhor ilustra aquele instinto traquina com que se marimbava para os protocolos e os rigores que são impostos por quem gosta de se dar ares, por esse género de palonços que são atraídos pelo teatro das altas dignidades foi recontada por Joana Gomes Cardoso, a actual presidente do Conselho de Administração da EGEAC: “Há uns anos, houve uma cerimónia de entrega da medalha da cidade a Paula Rego, no Museu Bordalo Pinheiro. À saída, o seu directos, João Alpuim Botelho, pediu-lhe que assinasse o livro do Museu. Paula Rego, já algo frágil e cansada, começou a desenhar algo com um traço impecável, de uma vez só. O João perguntou-lhe: «É um macaco?» E ela devolveu – com o sorriso mais maroto do mundo: «Não, é um sapo a brincar com a pila.» Não sei o que foi melhor, o seu contentamento ou a cara de surpresa dos altos dignitários presentes.”

E aí está um bom resumo dessa diferença, dessa recusa em congelar no pedestal. Persistiu no seu compromisso com o inesperado, e, também por isso, os modos sensíveis e as possibilidades que a selvajaria, a estranheza e o encanto oferecem aos que não foram ainda “educados a ter maneiras”, estavam ao seu dispor e eram as suas armas. De resto, no catálogo de uma das suas exposições, intitulada “A Caçadora Furtiva”, onde se reconhecia nessa figura, vincando como perseguia a sua presa para depois se recolher e se fundir com ela, Paula Rego explicou o seu processo: “O ponto central é encontrar as histórias certas. Se encontrarmos uma história que de algum modo se cruza com algo que já está na nossa cabeça, não é necessário que tenha uma ligação extremamente forte com a experiência pessoal. Mas temperamentalmente tem de servir-nos. E assim é possível entrar nela e dar-lhe um contexto pessoal, subjectivá-la.”

A propósito de uma obra que tantas vezes bebeu na literatura, desde aquela que fixa a tradição oral, aos romances que foram expandindo o imaginário popular, entre o tumulto íntimo e a riqueza do folclore, somos levados a falar de uma vivência marcada pela casualidade metafórica das imagens. Estas parecem sempre cruzar o plano imediato do mundo, das recordações exactas e das experiências comuns, para esse ambiente onde se situam as eras imaginárias.

Encarado interiormente, logo se percebe o modo como a pintura de Paula Rego vai além de uma reconfiguração fabulosa do mundo, mas esconjura demónios, é a língua desenvolvida por uma mulher que passou boa parte da sua vida numa espécie de mutismo, incapaz de expressar-se por palavras, enfrentar as ordens, tantas vezes injustas, odiosas, que foi ensinada a acatar. O Portugal salazarista que, contra aquilo que se julgou, está longe de ter morrido, é uma das vítimas da sua vingança. E há uma veemente denúncia da condição das mulheres na sociedade portuguesa, da forma como foram tratadas como seres de segunda, e o são ainda. O feminino surge tantas vezes numa violenta metamorfose, a das existências pisadas que subitamente alcançam aquele ponto em que se viram ao poder, mostram um rosto desafiante, atroz, ameaçador. Indo além do escárnio, confrontando a beleza com o grotesco. Nas suas pinturas existe uma transfixação da realidade, uma arte que a certa altura nos deixa a suspeita de ter atravessado para o território da magia, desafiando o nosso bom senso em relação à capacidade de uma pintura para corrigir a história, mexer no passado, exorcizar, manipular…

O vigor dos contornos de Paula Rego, aquele traço que parece brotar da fronteira sempre incerta, sempre acesa, entre a infância e os mitos, é característico da tendência da criança para digerir o mundo entre sensações de espanto, assombro, terror… O olhar é capturado pelo choque entre algo que nos parece familiar, que emerge como uma lembrança remota, e algo de doloroso ou retorcido, com a imagem a libertar-se da condição idílica dos contos de fada à medida que absorve a realidade. 

Outro artista português, o pintor e escritor José Miguel Gervásio, concorda no geral com a leitura que Keiser faz do gesto de denúncia da “videirunha à portuguesa”, mas discorda na aproximação da sua obra à de artistas ingleses como Bacon ou Freud. No seu entender, há antes uma linha, ainda que ténue, que “a liga ao Surrealismo português, ao de António Maria Lisboa, àquele que o Cesariny melhor terá representado”. Contudo, Gervásio lembra que o capítulo 8 do livro "Mordernists & Mavericks – Bacon, Freud, Hockney & the London painters", de Martin Gayford, começa com uma citação de Paula Rego. “Diz ela que a Inglaterra lhe deu a liberdade de ser ela mesma. É juntar dois mais dois e caímos no que me parece constituir a validade do que disse Keiser. Sublinho, é verdade aquilo tudo. E, infelizmente, este ambiente asfixiante permanece neste país.”

Passe o que passar, neste país onde os homens são só até ao joelho, Cesariny dizia há mais tempo, e a propósito de Vieira da Silva, a outra artista que antes de Paula Rego conseguira também escapar-se, evadir-se às suas malhas, e crescer, ganhar dimensão lá fora, isto: “tudo a todos parece estar já feito e eis que, de súbito, nasce outra criatura: vai, de novo, estar tudo por fazer.” E, em certo sentido, talvez a alegria seja esta, a de, por agora, a morte ter posto fim àquela forma de nos capturar, e, por isso, já podem voltar ao discurso de que não há nada, de que tudo está já feito, e então volta a dominar o “bolor que hoje se denomina arte e cultura”, essa que, afinal de contas, e no entender de Cesariny: “estanca a Imaginação e imbeciliza o que afinal se propunha feritilizar: a real e profunda realização do humano”.