Os preconceitos que atrapalham a igualdade


A luta pela igualdade de género não pode desembocar na procura da padronização dos corpos e dos comportamentos humanos pelo referencial masculino para evitar o preconceito e a discriminação.


Na edição desta quarta-feira do Público, Maria João Marques assina um artigo intitulado Querem licença menstrual ou querem igualdade salarial? Ambas não dá. No texto, a autora argumenta que a aprovação de uma licença menstrual, nos termos em que foi debatida no Parlamento, pode conduzir à discriminação das mulheres. É uma premissa que à partida parece razoável, não fossem os considerandos que servem a tese. Segundo Maria João Marques, o motivo da discriminação é o facto de “qualquer uma pode ser abrangida por esta medida, basta apresentar um atestado médico”,e argumenta que isso é incompatível com a igualdade salarial porque “uma mulher que, a cada mês, trabalha menos um a três dias que os colegas homens de facto não pode querer receber ordenado igual”… de facto o feminismo tem costas largas.

O raciocínio de Maria João Marques tem vários problemas, e o maior é justificar os preconceitos de género em nome da igualdade de oportunidades. A luta pela igualdade de género não pode desembocar na procura da padronização dos corpos e dos comportamentos humanos pelo referencial masculino para evitar o preconceito e a discriminação. Até porque, pela mesma lógica, nenhum dos restantes direitos laborais estaria garantido e deixariamos de reivindicar igualdade de tratamento para pessoas com doenças crónicas, com famílias numerosas  ou qualquer outra característica que possa representar uma “desvantagem” perante o mercado de trabalho.

Maria João Marques admite que a liberdade do mercado para discriminar as mulheres deve ser um dado adquirido, ou seja, que perante a desregulamentação do  mundo laboral, pouca coisa poderá ser feita para proteger as vítimas de discriminação e qualquer política de ação positiva acabará inevitavelmente por se virar contra elas. As possíveis alternativas, que passam pela criação de quadros legais sólidos e aplicáveis, clareza nos princípios e muita pedagogia, não são sequer mencionadas – a igualdade de género fica à porta da luta contra a precariedade e os baixos salários (ou vice-versa).

Dito isto, vamos ao núcleo da questão. A proposta de “licença menstrual” debatida no Parlamento previa que as mulheres que comprovassem sofrer de dores graves e incapacitantes passariam a poder obter licença médica pelos dias necessários de acordo com a indicação médica e perante apresentação de um atestado.

Não vou partir do princípio que Maria João Marques acha que as mulheres passarão a usar este direito de forma abusiva, “bastando para isso apresentar um atestado”. Mas também não acredito que desconheça que a dismenorreia –  dores uterinas intensas – afeta pelo menos um terço da população feminina fértil, segundo a Sociedade Espanhola de Ginecologia e Obstetrícia (SEGO), e que pode ser agravada por endometriose, mioma, pólipos, adenomiose, cisto no ovário, estenose cervical, doença inflamatória pélvica ou anormalidades no útero ou na vagina.

Vou apenas citar um livro[1] que sei que ambas lemos: “também a Rachel disseram que estava a imaginar coisas. Há dez anos que ela tomava a pílula como meio de gerir as dores intensas e os períodos abundantes, até que desmaiou num concerto. O hospital mandou-a para casa com analgésicos e um diagnóstico de stress. Quando voltou a desmaiar, o hospital pô-la numa enfermaria em gastrenterologia. (…) e quantos mais testes davam negativo, mais Rachel sentia uma mudança na forma como era tratada: ‘Comecei a sentir que não acreditavam em mim. Que achavam que estava tudo na minha cabeça’. Por fim, um médico abanou a cabeça quando Rachel lhe falou das dores horríveis que tinha e disse: ‘Temos de a mandar para casa, não há nada de mal consigo'''.  Mas havia, e o livro prossegue: em média, no Reino Unido são precisos oito anos para chegar a um diagnóstico de endometriose e, nos Estados Unidos, dez. É uma doença sem cura.

Como é óbvio, a licença menstrual não serve para todas as mulheres faltarem ao trabalho quando estão com período. Aliás, considero algumas das questões levantadas por Maria João Marques a esse respeito, no mínimo, ofensivas. O objetivo também não é promover uma patologização dos fenómenos fisiológicos do corpo feminino.

A licença menstrual acessível por atestado médico não faz mais do que reconhecer a possibilidade de proteção laboral em situações de doença ou incapacidade que a sociedade muitas vezes desvaloriza apenas porque são tabu. Essa desvalorização é histórica e indesmentível. Considerar que os avanços no direito à saúde das mulheres prejudicam a igualdade no trabalho é só mais uma prova de que há preconceitos que atrapalham os direitos das mulheres e, no caso de Maria João Marques, não são apenas de género.

P.S.: No mesmo artigo, Maria João Marques afirma que eu terei proposto uma licença menstrual paga pelas empresas em vez de pela Segurança Social. Apesar de já ter revisto todas as minhas declarações, não encontrei nada que pudesse ser interpretado dessa forma. Ainda assim, porque ninguém está livre de um lapso, esclareço que essa responsabilidade deve ser obviamente da Segurança Social.

[1] Mulheres Invisíveis, de Caroline Criado Perez

Os preconceitos que atrapalham a igualdade


A luta pela igualdade de género não pode desembocar na procura da padronização dos corpos e dos comportamentos humanos pelo referencial masculino para evitar o preconceito e a discriminação.


Na edição desta quarta-feira do Público, Maria João Marques assina um artigo intitulado Querem licença menstrual ou querem igualdade salarial? Ambas não dá. No texto, a autora argumenta que a aprovação de uma licença menstrual, nos termos em que foi debatida no Parlamento, pode conduzir à discriminação das mulheres. É uma premissa que à partida parece razoável, não fossem os considerandos que servem a tese. Segundo Maria João Marques, o motivo da discriminação é o facto de “qualquer uma pode ser abrangida por esta medida, basta apresentar um atestado médico”,e argumenta que isso é incompatível com a igualdade salarial porque “uma mulher que, a cada mês, trabalha menos um a três dias que os colegas homens de facto não pode querer receber ordenado igual”… de facto o feminismo tem costas largas.

O raciocínio de Maria João Marques tem vários problemas, e o maior é justificar os preconceitos de género em nome da igualdade de oportunidades. A luta pela igualdade de género não pode desembocar na procura da padronização dos corpos e dos comportamentos humanos pelo referencial masculino para evitar o preconceito e a discriminação. Até porque, pela mesma lógica, nenhum dos restantes direitos laborais estaria garantido e deixariamos de reivindicar igualdade de tratamento para pessoas com doenças crónicas, com famílias numerosas  ou qualquer outra característica que possa representar uma “desvantagem” perante o mercado de trabalho.

Maria João Marques admite que a liberdade do mercado para discriminar as mulheres deve ser um dado adquirido, ou seja, que perante a desregulamentação do  mundo laboral, pouca coisa poderá ser feita para proteger as vítimas de discriminação e qualquer política de ação positiva acabará inevitavelmente por se virar contra elas. As possíveis alternativas, que passam pela criação de quadros legais sólidos e aplicáveis, clareza nos princípios e muita pedagogia, não são sequer mencionadas – a igualdade de género fica à porta da luta contra a precariedade e os baixos salários (ou vice-versa).

Dito isto, vamos ao núcleo da questão. A proposta de “licença menstrual” debatida no Parlamento previa que as mulheres que comprovassem sofrer de dores graves e incapacitantes passariam a poder obter licença médica pelos dias necessários de acordo com a indicação médica e perante apresentação de um atestado.

Não vou partir do princípio que Maria João Marques acha que as mulheres passarão a usar este direito de forma abusiva, “bastando para isso apresentar um atestado”. Mas também não acredito que desconheça que a dismenorreia –  dores uterinas intensas – afeta pelo menos um terço da população feminina fértil, segundo a Sociedade Espanhola de Ginecologia e Obstetrícia (SEGO), e que pode ser agravada por endometriose, mioma, pólipos, adenomiose, cisto no ovário, estenose cervical, doença inflamatória pélvica ou anormalidades no útero ou na vagina.

Vou apenas citar um livro[1] que sei que ambas lemos: “também a Rachel disseram que estava a imaginar coisas. Há dez anos que ela tomava a pílula como meio de gerir as dores intensas e os períodos abundantes, até que desmaiou num concerto. O hospital mandou-a para casa com analgésicos e um diagnóstico de stress. Quando voltou a desmaiar, o hospital pô-la numa enfermaria em gastrenterologia. (…) e quantos mais testes davam negativo, mais Rachel sentia uma mudança na forma como era tratada: ‘Comecei a sentir que não acreditavam em mim. Que achavam que estava tudo na minha cabeça’. Por fim, um médico abanou a cabeça quando Rachel lhe falou das dores horríveis que tinha e disse: ‘Temos de a mandar para casa, não há nada de mal consigo'''.  Mas havia, e o livro prossegue: em média, no Reino Unido são precisos oito anos para chegar a um diagnóstico de endometriose e, nos Estados Unidos, dez. É uma doença sem cura.

Como é óbvio, a licença menstrual não serve para todas as mulheres faltarem ao trabalho quando estão com período. Aliás, considero algumas das questões levantadas por Maria João Marques a esse respeito, no mínimo, ofensivas. O objetivo também não é promover uma patologização dos fenómenos fisiológicos do corpo feminino.

A licença menstrual acessível por atestado médico não faz mais do que reconhecer a possibilidade de proteção laboral em situações de doença ou incapacidade que a sociedade muitas vezes desvaloriza apenas porque são tabu. Essa desvalorização é histórica e indesmentível. Considerar que os avanços no direito à saúde das mulheres prejudicam a igualdade no trabalho é só mais uma prova de que há preconceitos que atrapalham os direitos das mulheres e, no caso de Maria João Marques, não são apenas de género.

P.S.: No mesmo artigo, Maria João Marques afirma que eu terei proposto uma licença menstrual paga pelas empresas em vez de pela Segurança Social. Apesar de já ter revisto todas as minhas declarações, não encontrei nada que pudesse ser interpretado dessa forma. Ainda assim, porque ninguém está livre de um lapso, esclareço que essa responsabilidade deve ser obviamente da Segurança Social.

[1] Mulheres Invisíveis, de Caroline Criado Perez