Maria Antónia Oliveira. “O O’Neill é um homem que não deixa de me cair na sopa”

Maria Antónia Oliveira. “O O’Neill é um homem que não deixa de me cair na sopa”


Foi em 2007 que assinou “Alexandre O’Neill – uma biografia literária”, um livro que marcou, entre nós, o género biográfico. É deste modelar trabalho que parte Um Filme em Forma de Assim, de João Botelho, recém-estreado nas salas de cinema.  


Alexandre O'Neill tem sido para Maria Antónia Oliveira uma espécie de mosca Albertina, sempre a mosquetear-lhe o ouvido, a sobrevoar-lhe o espírito, a ir e a voltar; “levanta, revoluteia, desce”, sem  lhe dar sossego. No tampo da mesa – onde não há lugar para auréolas ou turíbulos –  a biógrafa, ensaísta e professora de Escrita de Biografia na FSCH da Universidade Nova de Lisboa, que agora prepara uma biografia de Cesário Verde,  é toda cotovelos –  e rigor, entrega apaixonada, qualidade literária. A edição das Poesias Completas do autor de “Um Adeus Português” (Assírio & Alvim, 2017) faz prova disso mesmo, também pela “Doença das Palavras”, o posfácio.

Como é que começa a tua relação com o Alexandre O' Neill? É uma relação que foi crescendo, degrau a degrau, ou situou-se logo em altos patamares de envolvimento?

Foi a minha irmã [a poeta Rosa Oliveira] que me apresentou o O'Neill, quando eu era ainda muito pequena. Ofereceu-me o Lewis Carroll e, no meio do livro, vinha um extrato de uma poesia do O'Neill. Aquilo não era para a minha idade, mas a minha irmã passava a vida a dar-me coisas que não eram para a minha idade… Mas foi o meu primeiro contacto e vim a gostar bastante.  

E como é que essa relação evoluiu?

Bem [risos]. Escrevi um livro de ensaio sobre a poesia dele que ganhou, em 90, o Prémio de Revelação da APE. É um livro de uma colecção de ensaios da Caminho, chama-se “A Tristeza contentinha de Alexandre O'Neill” e resultou de um trabalho que fiz num interessante seminário do João Barrento. Depois, estive muito tempo sem voltar a pegar no O' Neill, porque andei a editar o Sá-Carneiro e a fazer outras coisas. Quando decidi escrever a biografia dele, já estava um pouco cansada de escrever ensaio. Nem era tanto o ensaio, mas as recensões que escrevia para o Público, já não sei se para o “Leituras” se para o “Mil Folhas”.

E o que é que te cansava? Tinhas liberdade para exercer a crítica?

Tinha sim, a Tereza Coelho, que era a minha chefe, nunca pôs qualquer obstáculo, nunca fez reparos ao que eu escrevia, e até deitei abaixo alguns livros, um bocadinho armada em jovem tubarona. Mas sentia que era uma coisa cheia de regras. Lia os livros todos de fio a pavio, mas sabia que aquilo ia ser lido e depois ia embrulhar o peixe. Investia muito e não me dava grande prazer escrever aqueles textos. E, por fim, também já me parecia que não estava a ajudar o leitor e, na verdade, não era o que eu queria fazer.

Foi aí que surgiu a ideia da biografia do Alexandre O'Neill?

Ao princípio hesitei, andei ali um ano a pensar se era capaz de a fazer, li várias biografias… Na altura, não tinha acesso a documentos. O espólio não estava, como agora, na Biblioteca Nacional. O O'Neill era muito disperso e não ligava nenhuma aos papéis, era mau a arquivar-se. Depois, viveu em muitas casas. A última, a que não tive acesso, foi na Escola Politécnica. Na altura, fiquei amiga dos descendentes, da família: da Noémia Delgado, da Palmela [Ineichen]. O filho Afonso, de quem agora sou muito amiga, era então muito jovem quando ele morreu, quase não se lembra do pai; tinha nove anos e vivia com a mãe. A  documentação a que tive acesso foi uma ou outra carta que a Noémia me facultou, umas coisas que os amigos me passaram. Portanto, eu decidi que ia basear a biografia em testemunho oral, entrevistas, o que não era comum. E quase toda a gente ficou contente de falar do O'Neill. Correu bem. 

Houve alguém que não tivesse querido falar?

Sim, umas cinco pessoas. Ossos do ofício. A que mais me fez engulho foi o Mário Cesariny. No início – e falei várias vezes com ele – disse-me que sim, que aparecesse em casa dele. Estive toda a noite a estudar as tricas todas do  surrealismo e, quando estava a sair de casa, recebo um telefonema dele (ainda não havia telemóveis) a cancelar. Ele informou-se sobre mim e dizia que eu tinha escrito um livro a dizer mal do Alexandre. Não era verdade: o meu livro era uma paródia aos oximoros dele. E de tal maneira pegou que uma vez, na Assembleia da República, uma deputada disse: “Como diz Alexandre O' Neill, isto é o país da tristeza contentinha”. E aí eu pensei: Eh pá!, este título funcionou.  Já está a deslizar para ele. Em vez de ser eu, está o O' Neill a gamar-me a mim [risos].

E o Cesariny, como é que desfechou o caso?

Na altura, disse-lhe que não tinha dito mal, mas também não estava ali para dizer bem, que não ia fazer nenhuma hagiografia, que podia dizer o que quisesse. Mas ele não quis, e eu também não percebi porquê. Mas um biógrafo tem de aceitar isto. Há pessoas que não querem falar, há outras que falam mas …  A última mulher oficial dele, a Laurinda Bom, respondeu-me por escrito e falava dele de forma impessoal. Os que quiseram falar, em vez de os parafrasear, resolvi citá-los o mais possível, também para guardar o grão de voz, os risos, as hesitações, porque eram personagens.

Portugal é um país com pouca tradição biográfica. Gostamos de conhecer a intimidade alheia mas achamos que tudo fica dito com um verbete de enciclopédia ou um necrológio de jornal. A que se deve isto?

Agora começa finalmente a haver alguma coisa: surgiu a biografia do Manuel Teixeira Gomes,  do Thomaz de Mello Breyner, há a colecção de biografias da Contraponto. E finalmente o Richard Zenith é candidato ao Pulitzer 2022 com a biografia do Pessoa, que já li em inglês e achei muito bem feita. Começa a haver algumas biografias interessantes, mas isto é muito recente, tem três ou quatro anos. Quando observas o mapa, vês que a biografia é do norte europeu. Nos países mediterrânicos há muito menos, embora a Espanha comece a estar em força. Uma amiga biógrafa da Catalunha, dizia-me que isto tinha a ver com o fascismo e regimes  de escondimento, de janelas fechadas, mas também com o catolicismo. As pessoas habituaram-se a não contar a privacidade. A biografia é o apogeu da escrita sobre o indivíduo e em Inglaterra o indivíduo é uma figura muito importante, há esse culto. O Coleridge, em boutade, dizia que a História não é senão a junção de todas as biografias. Por cá, e até há pouco tempo, a história era o colectivo, as grandes massas. 

O tom panegírico e aborrecido de muitos trabalhos biográficos ajudam a desapetecer o género? A tua biografia, e Um filme em Forma de Assim, não são dominados pela ideia de virtude, recusam-se a agitar o turíbulo, a prestar serviço de canonização.  O próprio filme inclui a cena da casa de penhores e outras que não abonarão a favor da imagem do poeta…

O O'Neill, desde que começou a trabalhar na publicidade, não ganhava mal. Era uma área que, comparativamente a outros trabalhos, não era mal paga. Estava lá o Alves Redol, o Cardoso Pires, o Ary dos Santos. Só que o O' Neill era chapa ganha, chapa gasta. A Noémia dizia que ia muitas vezes à casa de penhores, que quando a viam entrar diziam: “lá vem ela buscar a máquina [de escrever]”. Se isto não abona em favor de uma pessoa? Não sei. Acho que o que mais pode ferir as mentes actuais é o facto de ele ser um courer de femmes; gostava muito de raparigas, perdia a cabeça, era ciumento, bruto, cruel. Ao fim de cinco anos, por ali, cansava-se das mulheres. Mas qualquer homem daquela geração era assim. Já as mulheres, não podiam pôr o pé em ramo verde. Curiosamente, ele tem um texto que está perdido e que é bastante feminista, como eu nunca vi. Bate nos surrealistas que dizem que a mulher é portadora de chaves… O O'Neill diz que a mulher não porta coisa nenhuma, não é musa. Só que, como ele diz, na prática a teoria é outra.

Não calas a desordem financeira que terá sempre perseguido o poeta e também não escondes a sua muito maculada ficha de funcionário, as inaptidões: o inglês, a condução…

É verdade que o O'Neill não sabia inglês (e teve uma namorada inglesa). Toda aquela geração era muito mais francesa de segunda língua. A conduzir era péssimo. Uma vez, até arrancou a manete das mudanças e ficou com ela na mão.

Horários fixos também não eram ponto forte.

Pois não. Ele não era muito de bares, mas fazia muitas directas a passear e a conversar com os amigos, gostava de percorrer Lisboa. No outro dia, tinha de ir trabalhar e não era fácil. Na Sandoz [onde trabalhou como escriturário], chegou a dormir na banheira, no período da manhã; à tarde já trabalhava bem [risos].

Um dos seus amigos chegados era o Ruben A. É verdade que o O'Neill teve um papel fundamental  n' “A Torre da Barbela”?

Disseram-me que sim e o Alexandre Pinheiro Torres confirmou. Uma pessoa que acompanhava o Alexandre O'Neill a casa do Ruben A. e era testemunha de longas reuniões a cortar, a editar “A Torre da Barbela”. Parece que o O´Neill fez um grande desbaste no romance, uma coisa bastante substancial, e o Ruben A. lhe pagou realmente bem.

Em que pé estão as tuas relações com o O'Neill?

Na altura da biografia, sonhava com ele e tudo. Estava mesmo um pouco farta de viver com um morto. Foi uma relação muito intensa, porque, ainda por cima, vivia no bairro onde ele viveu durante muito tempo, o Príncipe Real, onde havia uma espécie de fantasmagorias. A certa altura, tive de desistir das entrevistas, fartei-me dele, sobretudo por causa das mulheres, que eram algumas. Viveu 61 anos e só oficiais teve: a Nora Mitrani, a Noémia, a Palmela, a Teresa Patrício Gouveia, a Laurinda Bom e havia mais… A certa altura, resolvi o assunto das mulheres com uma fórmula que o João Botelho levou para o filme. A Cristas Alfaiate, na cena da sequência do sonho, diz: “Mercedes, Lauras, Teresas, Susanas, você não tinha género, tinha número”. Foi um modo de eu tornar a mulher abstrata. Mas quando terminei a biografia, estive longos anos sem pegar no O'Neill.

Mas ele ia sempre voltando…

Já antes da biografia, fiz a edição de “Uma Coisa em Forma de Assim”, que, aliás e ainda em vida do O'Neill, estava crivada de gralhas, faltavam mesmo bocados de frases. Depois, a convite da Assírio & Alvim, resolvi editar as prosas de “Já Cá não Está quem Falou”, que resultaram do que encontrei nas minhas pesquisas no âmbito da biografia. Mais tarde, com o Fernando Cabral Martins, fiz os “Poemas dos Anos 70”. Em 2017, fiz a “Poesia Completa & Dispersos”. Portanto, o O´Neill é um homem que não deixa de me cair na sopa. Fiz também uma dramaturgia com a Ana Nave e o João Reis e agora o filme do João Botelho. E vou ter de fazer a reedição da biografia aumentada. Não é fácil ter dois homens no sótão ao mesmo tempo, porque é um trabalho muito absorvente. Agora queria mesmo era o Cesário, que estou a fazer às minhas custas. E, por isso, tenho de o deixar para trás para fazer outros trabalhos. Quando volto ao Cesário: “Santo Deus!, onde andas tu, Cesário?”. É preciso uma imersão completa, mas sei que o O'Neill não me vai largar.

Quando é que surgiu o convite de João Botelho?

Foi logo a seguir ao filme “Peregrinação”. O João disse-me que queria pegar no meu livro. A ideia, no início, era mais uma adaptação, mas rapidamente evoluiu. Quando fomos meter mão ao papel, decidimos que não queríamos biopics. A biografia lida com material humano. É complicado as pessoas verem-se retratadas e também não é útil do ponto de vista estético ou cinematográfico. É uma coisa muito realista, muito chã, previsível, e não captaríamos bem o que queríamos, creio.  De modo que decidimos rapidamente que iríamos fugir para a frente. Há partes do livro que estão lá, o João escolheu certos episódios: o da casa de penhores, o brasão, o facto de um dos o'neills ser fotógrafo. As coisas estão disseminadas e a um nível profundo: na construção das personagens, na maneira como o O'Neill ri, no modo como se veste, como se relaciona, como ele anda pela rua. Tem a ver com uma percepção da pessoa O'Neill que vem do meu livro.

Boa parte do texto do filme inclui a própria poesia do O' Neill. O filme, no seu ritmo, no genial encadeado, faz pensar uma espécie de lego poético para adulto. Foi difícil de montar?

Sim, há poemas integrais, outros entrecortados. Havia uma escolha de poemas. Eu disse logo que queria incluir o poema “No céu de uma tristeza cor de farda”, que é um soneto de que eu gosto imenso. A questão era: onde é que ele vai entrar? Para o encadeamento contam não apenas as palavras, o conteúdo, mas também o som, as relações intuídas entre personagens de vários poemas, as ambiências. Os critérios foram variando. Não havia uma preocupação de fio narrativo. 

E como é que é trabalhar a quatro mãos?

Nunca trabalhávamos juntos, em termos de escrita de guião. Tínhamos reuniões e escrevíamos separadamente. Mas eu e o João esteticamente damo-nos bastante bem e não precisamos de muitas palavras para nos entendermos. E a verdade é que lhe dei uma espécie de licença para matar: o meu livro está aqui para ser mexido. O João enviava-me, por ex., o diálogo da cena da casa de penhores e eu fazia algumas observações. Sou uma obcecada pelo detalhe. O detalhe, às vezes, leva-me ao abismo. O João, que era simultaneamente respeitoso e aventureiro, respondia muito bem a isso.  A ideia de pôr no filme uma personagem que não era eu mas uma ideia de mim, foi dele. Em certo momento disse-me: “Vou-te pôr no filme.”

Esta colaboração foi também um processo de cedências?

Sim, claro, muitas; não era um filme meu, era um guião que estava a ser escrito a dois. O João é que é o cineasta. Diante de um guião, tem uma visão imediata do que aquilo é em filme. É claro que ele tem muito interesse na palavra, mas o João Botelho é imagem. Eu não, mas tinha muita confiança nele como cineasta porque tinha visto muitos filmes dele. Houve alguma hesitação da minha parte naquela cena da rave, que nem sempre foi a cena final e demorou uns trinta takes, porque tinha um plano de sequência muito longo, mas o João também queria deixar as pessoas desinquietas.

No teu livro, defines muito bem a relação do O'Neill com o país e, em particular, com a cidade de Lisboa: “uma relação dúplice de sobranceria e envolvimento atormentado”.

O O'Neill amava Lisboa, mas achava que Lisboa era uma amante um bocado putéfia. Quase que há uma relação de contiguidade entre ele e a cidade. O filme também é um bocado sobre Lisboa e o olhar irónico que ele lhe lança. A ironia do O' Neill não é uma ironia em primeiro grau como a ironia do Eça de Queirós: isto é uma choldra, eu estou cá em cima, e até estou em Paris e NewCastle e o resto é província. O O´Neill inclui-se naquilo que ironiza. Quando está a falar do senhor engenheiro engraxa na Baixa ou do cheiro a peixe frito do Benformoso, ele faz parte daquilo, há uma relação especular, há um envolvimento que lhe pode trazer exaltação, mas quando desce  ao detalhe, como naqueles poemas do “Guichê”, em que há a tal dor à portuguesa, o caso muda de figura. É por ele saber que é irónico dessa forma, não distanciada, mas cheia de envolvimento, que  recusava o epíteto de poeta satírico, que é o que está fora, o reizinho que está lá em cima a observar.  Ele não. Ele olhava o carnaval triste que isto é e, ele próprio, se está a ver lá em baixo nesse carnaval com aquela gente toda.

Entretanto, a tua biografia, também conhecida pela acção da guilhotina, vai ser reeditada por altura do centenário do O'Neill…

Vai ser reeditada em 2024, pela Assírio & Alvim, a convite do Vasco David, que achou que a biografia faria sentido na mesma editora que acolhe o poeta. O livro, na Dom Quixote, à parte a minha editora, Sara Wunderly Gomes, e o Rui Breda, que foram excelentes, teve uma vida complicada. O contrato é de 2005 e o livro foi publicado apenas em 2007. Esteve dois anos na prateleira porque ninguém acreditava que aquele livro fosse vendável. Entretanto, e com o livro pronto, enfiei-me no doutoramento no Camilo, porque tinha de esquecer o O' Neill. Depois lá foi editado, mas senti que nunca houve grande investimento naquele livro. Em 2017, quando editei as “Poesia Completas”, liguei para a editora dizendo que talvez fosse boa altura para relançar a biografia, até porque iria haver um filme. Resposta: não estamos interessados, esse livro já é muito antigo.

Rescindiste o contrato, entretanto?

Sim, rescindi o contrato, já há dois anos. Altura de fechar contas. Este ano, estranhamente, recebo o relatório de contas. Como é que era possível?! Estranhei, perguntei – nada. Estive meses sem respostas, após muitos e-mails. Só depois me disseram que tiveram que destruir os últimos livros que havia porque estavam em muito mau estado. Outra vez a guilhotina. Manifestamente os livros não foram tirados do mercado, como é de lei, mas vou ficar por aqui e não quero mais nada com os dom quixotes. Preciso de ter paz de espírito, quero escrever o Cesário, que tem de ser uma coisa muito fora, muito heterodoxa, e tenho de me concentrar no século XIX. 

É conhecida a tua posição sobre o trabalho intelectual não remunerado: não há remuneração, não há trabalho. Recebes, por isso, menos convites?

Sei que há pessoas que aceitam tudo porque têm medo de não voltar a ser convidadas. Para não ser paga, prefiro estar deitada na minha cama a contar as moscas que conseguem ir ao tecto. Não o faço. E não abro precedentes. Vivo da escrita.