Condecorações dividem mais do que unem

Condecorações dividem mais do que unem


Marcelo vai condecorar Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho, Spínola e Costa Gomes. Feridas abertas que o PR tenta fechar, mas que, para muitos, está antes a contribuir para aumentar.


No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, Marcelo Rebelo de Sousa vai condecorar, entre centenas de outras figuras ligadas à Revolução dos Cravos, Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho, António de Spínola e Francisco da Costa Gomes. Uma decisão que muita polémica tem gerado, já que se trata de figuras muito pouco consensuais, tanto pelo papel que desempenharam na Revolução dos Cravos, como no PREC, no 11 de Março ou no 25 de Novembro, ou até mais cedo e mais tarde. Fazem, aliás, parte de uma lista com cerca de 200 nomes que Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril, quer ver condecorados desde o tempo da presidência de Ramalho Eanes, e que nenhum Presidente acedera a condecorar… até agora. Mas, afinal, está o Presidente Marcelo a tentar dar um passo a caminho da conciliação e unidade nacional em torno da História de Portugal ou, ao contrário, a abrir novas feridas e divisões na sociedade portuguesa?

 

Alberto Gonçalves: "A caricatura"

A Assembleia da República recebeu, na passada quinta-feira, Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, através de vídeochamada, numa sessão a que faltaram os seis deputados do PCP. Foi este o tiro de partida do escritor e sociólogo Alberto Gonçalves para criticar as condecorações de Marcelo Rebelo de Sousa a figuras como Rosa Coutinho e Vasco Gonçalves. «Acho curioso que depois da sessão no Parlamento com o Presidente da Ucrânia, em que o regime português enalteceu os valores da democracia, o Presidente da República vá homenagear algumas das pessoas que mais se esforçaram para que não houvesse democracia em Portugal.  Parece-me também que o Prof. Marcelo, que até aqui tinha desvalorizado em absoluto o papel de Presidente da República, no pior sentido do termo, acaba por comprometer e por ligar o papel – se isso se concretizar – do Presidente da República a uma coisa mais sinistra», diz ao Nascer do SOL, recordando que «essa lista de nomes andou de Presidente em Presidente e até agora ninguém aceitou». «O Professor Marcelo caricaturou a figura do Presidente da República através daquela obsessão dele com a popularidade, com as selfies, os banhos de mar. Uma coisa é isso, mas isto já entra noutra dimensão e já tem outra gravidade. Não tem consequências práticas, mas em termos de consequências simbólicas é algo que marca um país e um regime que gosta de se afirmar democrático», remata.

António Campos: "É Manipulação da história"

Fundador e histórico dirigente do PS, braço direito e amigo de Mário Soares, também António Campos se manifesta frontalmente contra a decisão do Presidente Marcelo. «O 25 de Abril é para comemorar a Liberdade, que esteve em perigo. Neste contexto, historicamente, é enganar a História condecorar aqueles que, depois do 25 de Abril, tentaram outra vez tirar-nos a liberdade. É muito simples. Portanto, no fim de contas, é não ter respeito pela História, que  está escrita e não pode ser alterada. Manipular a História é manipular a democracia», criticou o socialista, questionando que «se medalhe aqueles que nos quiseram tirar a liberdade».

António Campos recorda os tempos do PREC e do 25 de Novembro, falando da mobilização popular na Fonte Luminosa, em Lisboa, convocada por Mário Soares. O histórico socialista diz que, na altura, «esteve mesmo em perigo uma guerra civil». «Se o Otelo não tivesse abandonado o COPCON, havia uma guerra civil, estivemos à beira dela. Portanto, no fim de contas, aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa vai condecorar é aquilo que esteve à beira de nos transformar», diz António Campos. «O 25 de Abril até correu bem, sem grandes problemas. Onde houve problemas foi durante o PREC, até ao 25 de Novembro. Aí é que estivemos todos com a nossa segurança em perigo. Eu vivi isso com muita intensidade. Foi mobilizada a população para a Fonte Luminosa, muitos tiveram de fugir para o Porto, de maneira que o meu problema é em relação à liberdade, de preservar um valor fundamental. Não se pode estar a condecorar quem a pôs em perigo após o 25 de Abril», conclui António Campos.

Henrique Chaves: "Desilusão" e "vergonha"

Henrique Chaves, amigo de infância de Marcelo, foi um dos fundadores do PPD e é o seu militante número três (também reclamado por Conceição Monteiro), foi o mais jovem vereador de direita da Câmara de Lisboa (na comissão administrativa nomeada após a revolução), foi deputado à Assembleia da República e ministro do Governo de Santana Lopes. Mas é, sobretudo, advogado. E, ainda muito jovem, foi advogado «de uma ação que o engenheiro Jorge Jardim apresentou há muitos anos contra Costa Gomes e contra o Estado, e que ganhou na primeira instância», como conta ao Nascer do SOL. Nesse processo, conseguiu uma acareação histórica entre Spínola, Costa Gomes, Diogo Neto e Rosa Coutinho, levando o tribunal a concluir que Costa Gomes assinara sozinho um mandado de captura contra Jorge Jardim, sem ter competências para tal. Também por isso, considera Henrique Chaves, a condecoração tanto de Costa Gomes como de Rosa Coutinho são «autenticamente uma vergonha e uma desilusão absoluta com a pessoa do Presidente da República, que está a branquear coisas inacreditáveis que ocorreram no passado». «São coisas que demonstram que tanto o Rosa Coutinho como Costa Gomes eram pessoas altamente suspeitas na sua fidelidade ao patriotismo», diz o jurista, recordando desde logo aquele processo em que esteve envolvido. «Esta ação do Presidente da República não tem justificação, a não ser uma mutação do Presidente da República, que deixou de ser um patriota. São desilusões brutais», conclui.

Raquel Varela: "A normalização da extrema-direita"

O tema das condecorações de Marcelo Rebelo de Sousa é polémico, mas nem sempre pelas mesmas razões. Se Zita Seabra foca as suas reações em separar Spínola de Rosa Coutinho e Vasco Gonçalves, a historiadora Raquel Varela faz o mesmo exercício mas com contornos diametralmente opostos. É que, para a investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o marechal Spínola «é um homem marcado por políticas de apoio ao terrorismo de extrema-direita».

Ao Nascer do SOL, Raquel Varela diferenciou as figuras condecoradas, defendendo não «subscrever» a agraciação de Rosa Coutinho nem de Vasco Gonçalves, mas realçando, ainda assim,  tratarem-se de coisas muito diferentes da condecoração de Spínola. 

«Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho não tomaram nenhuma medida dessa ordem [terrorismo de extrema-direita que aponta a Spínola]. Do que estamos aqui a falar é de organização de golpes de Estado e apoio a milícias de extrema-direita. São coisas distintas do ponto de vista do que representam, embora seja muito fácil para as pessoas dizer que é tudo a mesma coisa», acusa Raquel Varela, acrescentando ser preciso «saber distinguir». 

«Havia muitas forças políticas durante a Revolução que fizeram muitas coisas contraditórias, erradas ou certas consoante o nosso ponto de vista. O que vimos com Spínola é, de facto, o apoio a grupos terroristas de extrema-direita. Isso não é o jogo da luta política, é o jogo da violência, e eu não concordo», continua. 

Distinguir, aliás, é ‘palavra-chave’ para Raquel Varela, que pede uma diferenciação entre «a posição do Estado português que o professor Marcelo representa» e «a posição dos portugueses, que têm pensamentos diferentes sobre o 25 de Abril». 

Reiterando ser contra a condecoração de Spínola, Varela acusa o Estado português de «incorporar a extrema-direita, ao ponto de, neste momento, até a legalizar». «Há um partido legal de extrema-direita em Portugal, que é o Chega. Eu vejo a condecoração do General Spínola num quadro em que a extrema-direita foi normalizada pelo Estado português», acusa, apontando o dedo ainda a Marcelo Rebelo de Sousa por «querer fingir que a população portuguesa não está dividida». «Não haver como fingir que estas diferenças não existem».

Sobre o ‘fechar’ de feridas que poderão significar estas condecorações, Raquel Varela é taxativa: «Eu acho que aqui não se fecham feridas, porque ao fechar esta ferida abre-se outra, que é a de legitimar o terrorismo de extrema-direita, que é isso que Spínola representa. Spínola fez dois golpes contra a Democracia, e apoiou o MDLP e o terrorismo de extrema-direita. Portanto, quando se fecha uma ferida, que é a oposição a isso, abre-se outra ferida, que é a legitimação disto».

A socióloga acusa ainda o Presidente de pretender «apagar» uma memória, «que é a memória de que houve terrorismo de extrema-direita em Portugal». Neste âmbito, defende que «o melhor que Portugal teve em toda a sua História foi a participação popular e democrática durante o PREC». «Não é por Marcelo condecorar Spínola que Spínola deixa de representar o que representa. Agora, acho que isto só é possível porque o Chega tem 12 deputados», conclui.

Zita Seabra: "Foge cão que te fazem barão"

Palavras duras da esquerda à direita que fazem eco em várias personalidades com intervenção política ativa nesses tempos marcantes da História, como a então militante comunista Zita Seabra, que acusa o Presidente da República de «desvalorizar» a Ordem da Liberdade. «Dar a Ordem da Liberdade a Rosa Coutinho, que foi o grande responsável por uma guerra civil em Angola, que teve cerca de um milhão de mortos, é dar cabo e desvalorizar por completo a Ordem da Liberdade», começa por afirmar ao Nascer do SOL. Até porque «a Ordem da Liberdade a partir daí não tem sentido nenhum». «O facto de Marcelo ter aceite a lista entregue por Vasco Lourenço, que não foi aceite por todos os presidentes anteriores não faz sentido nenhum», continua, ironizando: «Acho que o Prof. Marcelo, enquanto Presidente da República, está a desvalorizar completamente as Ordens portuguesas. Há cantores que já receberam três medalhas e ainda estão vivos, isto não faz sentido nenhum. Isto parece aquele velho dito: ‘Foge cão que te fazem barão. Mas para onde, se me fazem Visconde?’. É absolutamente atual».

Aliás, ainda em tom irónico, a antiga comunista e atual simpatizante da Iniciativa Liberal augura que vão ter de ser inventadas «outras Ordens com o próximo Presidente», porque «isto não faz sentido nenhum». Zita Seabra faz, no entanto, uma ressalva relativa a estas condecorações e à polémica em torno das mesmas: «Eu não misturo Spínola com Rosa Coutinho e com Vasco Gonçalves. Spínola teve uma importância grande no próprio 25 de Abril. Foi uma pessoa muito importante, sem ele não sei se teria acontecido, pelo menos da mesma maneira», argumenta, lembrando o livro Portugal e o Futuro. 

«Não se está a pacificar coisa nenhuma, até porque ninguém anda atrás de ninguém», acusa ainda Zita Seabra. «Agora, a República Portuguesa condecorar com a Ordem da Liberdade quem está a condecorar… até abre mais feridas. Conheço pessoas que receberam a Ordem da Liberdade e estão profundamente indignadas». 

«O que Marcelo vai condecorar são os militares que no 25 de Abril mudaram de campo. Viraram as espingardas a 180º», acrescenta ainda a antiga comunista.