Rússia e Fátima. “A última arma que nós cristãos temos é a oração”

Rússia e Fátima. “A última arma que nós cristãos temos é a oração”


O Papa Francisco vai consagrar esta sexta-feira a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, numa oração pela paz ligada às profecias do segredo de Fátima. Uma história com controvérsias: há 38 anos, neste mesmo dia, João Paulo II decidiu não incluir uma referência explícita à União Soviética, o que os mais heterodoxos…


Está marcado para as 17 horas de hoje no Vaticano, 16 horas em Portugal, o ato de consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Nossa Senhora, uma profecia que conta agora com mais de 100 anos na Igreja Católica e resulta dos relatos deixados pela irmã Lúcia do segredo contado aos pastorinhos na aparição de 13 de julho de 1917. O momento é solene para a Igreja: Francisco fará a oração de súplica especial por proteção à humanidade e aos dois países em especial na basílica de São Pedro e envia ao santuário de Fátima o cardeal polaco Konrad Krajewski para uma cerimónia em que apelou à participação de bispos de todo o mundo.

Com os olhos postos em Fátima, as palavras que serão ditas por Francisco, divulgadas nos últimos dias, já fizeram correr tinta e estão a ser encaradas como um dos atos mais ousados do Papa na condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia, até pelo apoio que está a ser dado pelo patriarca da igreja ortodoxa de Moscovo à ofensiva de Vladimir Putin – e deixa claros os receios de Francisco de que um conflito que já repudiou como desumano venha a escalar:_“Libertai-nos da guerra, preservai o mundo da ameaça nuclear”, escreveu Francisco, que aos 85 anos revela ao mesmo tempo, nas palavras de vaticanistas como John L. Allen, um dos seus lados mais tradicionalistas ao reconhecer em toda a extensão as visões dos três pastorinhos portugueses, fonte de fé mas também de dúvida entre crentes e clérigos, além da conhecida devoção especial a Nossa Senhora de Fátima, que o acompanha desde Buenos Aires.

E agora, parecendo ser mais movido no esforço de travar a guerra do que pelo cumprimento de uma antiga profecia, tendo dito que decidiu avançar com a consagração após muitos apelos de fiéis, o certo é que nos bastidores se discutem as controvérsias de consagrações passadas, em que nenhum Papa, suplicando pela proteção da humanidade à Virgem de Fátima, cumpriu exatamente o pedido relatado por Lúcia de uma consagração pública e solene da Rússia, a mais velha dos três pastorinhos e a única que sobreviveu à infância.

 

A aparição do segredo de Fátima

O segredo de Fátima, que Lúcia redigiria já em adulta em três partes – a última mantida em segredo pelo Vaticano até ao ano 2000 – foi-lhes revelado na aparição de 13 de julho de 1917, a terceira vez em que os primos da Cova de Iria viram aparecer a senhora vestida de branco.

Ali, terão ouvido nas palavras de Lúcia o pedido de penitência pelo fim da guerra numa altura em que se travava a I Guerra Mundial; a profecia de que, se não o fizessem, viria outra pior no papado de Pio XII – que acabou por coincidir com a II Guerra Mundial – e que Nossa Senhora voltaria mais tarde para pedir a consagração “da Rússia ao Meu Imaculado Coração e a Comunhão reparadora nos Primeiros Sábados”, com uma alusão a uma “conversão” da Rússia. Nas décadas seguintes seria associada à expansão do comunismo, ainda que as aparições tivessem acontecido meses antes da revolução russa que teria lugar a 7 de novembro de 1917.

Foi em 1927 que Lúcia relatou ter tido uma visão já no convento das Doroteias de Tui, em Espanha, autorizando-a então a revelar a primeira e a segunda parte do segredo, onde surgia a visão do inferno e a promessa da Virgem de que regressaria para pedir a consagração da Rússia, visão esta que Lúcia relatou ter tido dois anos mais tarde, em 1939.

A terceira parte do segredo seria redigida por Lúcia em 1944, relatando o assassinato de um Papa: “Chegando ao cimo do monte, prostrado, de joelhos, aos pés da cruz, foi morto por um grupo de soldados que lhe disparavam vários tiros e setas e assim mesmo foram morrendo uns após os outros, os bispos, os sacerdotes, religiosos, religiosas e várias pessoas seculares”.

O testemunho só seria revelado por João Paulo II no ano 2000, sendo que foi durante anos associado ao atentado contra o Papa polaco a 13 de maio de 1981 em Fátima. À margem da posição oficial do Vaticano, que assim o reconheceu, continuou a alimentar teorias de que subsiste o receio de que esta profecia esteja ainda por concretizar, uma vez que João Paulo II sobreviveu à tentativa de assassinato na praça de São Pedro, com a especulação a voltar a crescer nas últimas semanas de guerra, até perante apelos para que Francisco se deslocasse a Kiev. Mas o certo é que a discussão sobre se a consagração pedida por Nossa Senhora foi ou não cumprida pela Igreja, em desobediência ao pedido feito por Nossa Senhora a três crianças, nunca cessou de vez, tendo sido mesmo pedido a Lúcia que o confirmasse.

As consagrações A primeira oração de consagração ao Imaculado Coração de Maria foi feita em Portugal em 1931 pelo bispo de Leiria. Em 1942, o Papa Pio XII fez pela primeira vez a consagração do mundo no 25.º aniversário das aparições, vindo a consagrar em 1952 os povos da Rússia ao Imaculado Coração de Maria mas numa carta apostólica e não num ato público, como Lúcia interpretou que devia acontecer.

Paulo VI e João Paulo II viriam a repetir o ato publicamente, mas só em 1984 Lúcia terá confirmado que o ato de consagração presidido pelo Papa no Vaticano – faz esta sexta-feira precisamente 38 anos – teria cumprido o pedido de Nossa Senhora. Mas a controvérsia manteve-se, até porque João Paulo II, na oração de proteção a toda a humanidade, não referiu explicitamente a Rússia, algo que na altura foi registado também em Portugal, tendo o texto tido uma interpretação subliminar. “O Papa acrescentou ao texto do seu discurso uma frase que alguns observadores interpretaram como devendo marcar a importação que ele atribui à “igreja do silêncio em geral, e à União Soviética em particular:_“ilumina de uma maneira especial os homens e os povos que esperas que nós te consagremos e confiemos”, lê-se na edição do Diário de Lisboa daquele 26 de março de 1984, um dia depois do acontecimento, que reuniu 200 mil pessoas no Vaticano.

 

“A última arma que nós cristãos temos é a oração”

Agora, continuando os marianólogos mais acérrimos a publicar palpites e mais convictos de que no passado de que o texto de Francisco cumpre os requisitos para ser válido, com um mês de destruição e morte na Ucrânia, mais do que cumprir ou não qualquer profecia, o ato é visto na Igreja portuguesa como um gesto firme de Francisco de súplica pela paz.

D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, sublinha ao i que sendo conhecida a história do segredo de Fátima, todo esse debate é secundário perante a tragédia que se vive na Ucrânia, sublinhando que o ato de consagração é mais uma das iniciativas do Papa para tentar travar o conflito, com uma mensagem que fica muito clara nas suas palavras: “Não é a mãe de Deus que está a falhar, somos nós, quando não somos capazes de proporcionar a paz”, sublinha D. Américo Aguiar. “A última arma que nos sobra a nós cristãos é a oração”, diz.

Anselmo Borges destaca também o conteúdo da oração que será proferida esta sexta-feira pelo Papa e o receio real que manifesta: “No texto da consagração, quando o Papa Francisco (e não apenas ele) teme o pior – a Terceira Guerra Mundial com a arma nuclear – ele, em união com todo o Povo de Deus, em todo o mundo, apela a Maria, a Mãe de Jesus — é a Mãe! —, utilizando expressões marianas que provêm de várias tradições cristãs e de vários continentes ao longo dos tempos”, diz ao i o padre e teólogo, considerando que o ato desta sexta-feira configura “um modo dramático de apelar à paz e, consequentemente, à exigência da conversão de todos, a partir do interior, do coração, em ordem a uma nova política global, a política do cuidado, cuidando também da Casa Comum”.

E que efeito poderá ter? Ao i, José Milhazes, jornalista, historiador e tradutor – autor do livro A Mensagem de Fátima na Rússia e profundo conhecedor da sociedade russa – acredita que poderá ser uma ajuda espiritual para os católicos ucranianos e para os católicos russos também, mas estes são muito pouco numerosos, nota. Segundo o último inquérito conhecido na Rússia sobre confissões religiosas, 79,4% da população confessa-se cristã, a larga maioria ortodoxos e apenas 0,9% católicos e 0,2 protestantes.

E nesse sentido as expectativas não são muitas: “Gostaria muito que contribuísse para o fim do conflito mas sendo católico não sei até que ponto é que pode ajudar”, confessa José Milhazes, admitindo que poderá mesmo contribuir para um extremar da posição do patriarca Kirill de Moscovo, dirigente da Igreja Ortodoxa Russa, um dos apoiantes de Putin e que já se mostrou a favor da ofensiva, responsabilizando o Ocidente pelo conflito. “O patriarca Kirill tem tido uma atitude vergonhosa e tem sido alvo de críticas muito fortes, incluindo de contestação interna. Há numerosos sacerdotes ortodoxos, principalmente na Ucrânia, que estão contra as suas posições. O metropolita de Kharkiv, que é uma figura muito importante na Igreja Ortodoxa Ucraniana que pertence ao Patriarcado de Moscovo, condenou a posição do Patriarca face à guerra e muitas igrejas ortodoxas ucranianas deixaram de citar o nome do Patriarca, o que significa um descontentamento com uma posição que veio mostrar que a Igreja Ortodoxa Russa, mesmo que isso não seja surpresa, está do lado de forças nacionalistas ultra-conservadoras e agressoras”, sublinha José Milhazes.

Reconhecendo o simbolismo da iniciativa do Papa Francisco, sobretudo consagrando os dois países em simultâneo pela paz quando a profecia no passado foi associada a uma perseguição do comunismo, acredita que do outro lado da nova cortina de ferro poderá ser vendida como mais uma manobra do Ocidente: “Acredito profundamente que o Papa Francisco tenha a mais bonita e mais sagrada das intenções, que é a paz, mas a Igreja Ortodoxa Russa irá certamente ignorar, mesmo que não o comente, e quanto aos ortodoxos russos muito deles estão sob a propaganda russa e vão receber isto como mais uma manobra do Ocidente para conquistar a Rússia”.

 

O urso russo pode sentir-se espicaçado

Há dias, John L. Allen, vaticanista e editor do site de informação e análise de assuntos religiosos Crux Now, apontava para isso mesmo: “Com a consagração de Fátima, o Papa espicaça o urso russo”, titulou o autor de vários livros sobre o papado, o último sobre Francisco. “É provavelmente o movimento mais ousado que o Papa Francisco já fez em relação à guerra, mas para perceber isso é preciso um pouco de fluência na língua católica”, notava o vaticanista, lembrando que as mensagens de Fátima, que se tornou um local de peregrinação de massas em plena guerra Fria, foram vistas no último século como “profecias do mal soviético”. “O Papa Francisco reavivar agora talvez a devoção anti-russa mais incisiva da era da Guerra Fria é um movimento bastante ousado – especialmente porque, embora a grande media possa não entender, os ortodoxos russos certamente entendem”, continuava John L. Allen, lembrando que o Patriarca Kirill acusou de imediato a iniciativa do Vaticano convocando a sua própria jornada mariana.