O caos instalado nos Tribunais


Já está instalado o caos na nossa justiça penal, devido a uma intervenção legislativa desastrada sobre a qual ninguém foi ouvido, e que nem sequer foi possível corrigir em tempo útil, devido à enorme trapalhada que constituiu a votação dos emigrantes.


A 27 de Outubro do ano passado foi rejeitado pelo Parlamento o Orçamento de Estado. Em consequência, a 4 de Novembro o Presidente da República anunciou a dissolução do Parlamento e que as eleições legislativas antecipadas se realizariam em 30 de Janeiro. No entanto, a dissolução do Parlamento apenas viria a ocorrer no dia 5 de Dezembro, tendo sido apenas então formalmente marcadas as eleições. O Parlamento aproveitou por isso esse período para aprovar uma série de iniciativas legislativas precipitadas em contra-relógio, as quais foram pacificamente promulgadas pelo Presidente.

Foi assim que surgiu a Lei 94/2021, de 21 de Dezembro que “aprova medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas”. Desde o início que a Ordem dos Advogados foi muito crítica dessa Estratégia Nacional Anticorrupção, que nos pareceu absolutamente inconsequente, designadamente por nada fazer no âmbito do controle do financiamento dos partidos políticos. Essa posição foi confirmada pela Transparency International que, no seu Índice de Percepção da Corrupção relativo a 2021, criticou o facto de a Estratégia aprovada não abranger os partidos políticos e o Banco de Portugal.

No entanto, a Lei 94/2021 viria ainda a alterar o art. 40º do Código de Processo Penal, estabelecendo que qualquer acto do juiz praticado durante a fase da investigação o impede de intervir na instrução ou no julgamento do processo. Tal implica um enorme aumento dos impedimentos dos magistrados, levando a que o país corra o risco de colapso absoluto da sua justiça penal, o que só descredibilizará ainda mais a nossa justiça. E é extremamente preocupante que esta alteração tenha sido aprovada sem qualquer discussão pública ou sequer consulta às entidades representativas do sector da Justiça, designadamente a Ordem dos Advogados, como é imposto pelo art. 3º j) do seu Estatuto.

Perante esta situação de enorme gravidade, denunciada publicamente pelo Conselho Superior de Magistratura logo no dia 23 de Dezembro, esperar-se-ia que, apesar de a Lei 94/2021 ter sido aprovada por unanimidade, os deputados se apercebessem das consequências desta alteração e a revogassem logo que tomassem posse, o que até foi facilitado pelo facto de as eleições terem conduzido a uma maioria absoluta do partido no Governo. No entanto, veio-se a saber que, no caso dos deputados eleitos pela emigração, haveria um acordo entre os partidos para que fossem validados votos que não possuíam os requisitos legalmente estabelecidos. Uma vez que o referido acordo manifestamente não se poderia sobrepor à lei, foram anulados 80% dos votos dos emigrantes no círculo da Europa. Tendo sido apresentado recurso da decisão para o Tribunal Constitucional, este considerou a 15 de Fevereiro, como não poderia deixar de ser, como “grosseiramente ilegal” esse acordo, e mandou repetir as eleições nesse círculo. Apesar de esse círculo só eleger dois deputados, tal implicou o adiamento da posse de todo o Parlamento e do Governo, que ainda não se verificou. Tal levou a que naturalmente a Lei 94/2021, que deveria entrar em vigor 90 dias após a sua publicação, tenha acabado por entrar mesmo em vigor. 

Em consequência, inúmeros juízes já estão a comunicar nos processos que lhes estavam atribuídos o seu impedimento para realizar a instrução ou o julgamento, o que vai obrigar a uma redistribuição desses processos. Ora, sabendo-se que o número de juízes é reduzido e que basta praticar um acto no processo para ficar impedido, tal leva a que já esteja instalado o caos na nossa justiça penal, devido a uma intervenção legislativa desastrada sobre a qual ninguém foi ouvido, e que nem sequer foi possível corrigir em tempo útil, devido à enorme trapalhada que constituiu a votação dos emigrantes. 

É este o estado presente da Justiça e das instituições democráticas em Portugal. 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção 
das regras do acordo ortográfico de 1990

O caos instalado nos Tribunais


Já está instalado o caos na nossa justiça penal, devido a uma intervenção legislativa desastrada sobre a qual ninguém foi ouvido, e que nem sequer foi possível corrigir em tempo útil, devido à enorme trapalhada que constituiu a votação dos emigrantes.


A 27 de Outubro do ano passado foi rejeitado pelo Parlamento o Orçamento de Estado. Em consequência, a 4 de Novembro o Presidente da República anunciou a dissolução do Parlamento e que as eleições legislativas antecipadas se realizariam em 30 de Janeiro. No entanto, a dissolução do Parlamento apenas viria a ocorrer no dia 5 de Dezembro, tendo sido apenas então formalmente marcadas as eleições. O Parlamento aproveitou por isso esse período para aprovar uma série de iniciativas legislativas precipitadas em contra-relógio, as quais foram pacificamente promulgadas pelo Presidente.

Foi assim que surgiu a Lei 94/2021, de 21 de Dezembro que “aprova medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas”. Desde o início que a Ordem dos Advogados foi muito crítica dessa Estratégia Nacional Anticorrupção, que nos pareceu absolutamente inconsequente, designadamente por nada fazer no âmbito do controle do financiamento dos partidos políticos. Essa posição foi confirmada pela Transparency International que, no seu Índice de Percepção da Corrupção relativo a 2021, criticou o facto de a Estratégia aprovada não abranger os partidos políticos e o Banco de Portugal.

No entanto, a Lei 94/2021 viria ainda a alterar o art. 40º do Código de Processo Penal, estabelecendo que qualquer acto do juiz praticado durante a fase da investigação o impede de intervir na instrução ou no julgamento do processo. Tal implica um enorme aumento dos impedimentos dos magistrados, levando a que o país corra o risco de colapso absoluto da sua justiça penal, o que só descredibilizará ainda mais a nossa justiça. E é extremamente preocupante que esta alteração tenha sido aprovada sem qualquer discussão pública ou sequer consulta às entidades representativas do sector da Justiça, designadamente a Ordem dos Advogados, como é imposto pelo art. 3º j) do seu Estatuto.

Perante esta situação de enorme gravidade, denunciada publicamente pelo Conselho Superior de Magistratura logo no dia 23 de Dezembro, esperar-se-ia que, apesar de a Lei 94/2021 ter sido aprovada por unanimidade, os deputados se apercebessem das consequências desta alteração e a revogassem logo que tomassem posse, o que até foi facilitado pelo facto de as eleições terem conduzido a uma maioria absoluta do partido no Governo. No entanto, veio-se a saber que, no caso dos deputados eleitos pela emigração, haveria um acordo entre os partidos para que fossem validados votos que não possuíam os requisitos legalmente estabelecidos. Uma vez que o referido acordo manifestamente não se poderia sobrepor à lei, foram anulados 80% dos votos dos emigrantes no círculo da Europa. Tendo sido apresentado recurso da decisão para o Tribunal Constitucional, este considerou a 15 de Fevereiro, como não poderia deixar de ser, como “grosseiramente ilegal” esse acordo, e mandou repetir as eleições nesse círculo. Apesar de esse círculo só eleger dois deputados, tal implicou o adiamento da posse de todo o Parlamento e do Governo, que ainda não se verificou. Tal levou a que naturalmente a Lei 94/2021, que deveria entrar em vigor 90 dias após a sua publicação, tenha acabado por entrar mesmo em vigor. 

Em consequência, inúmeros juízes já estão a comunicar nos processos que lhes estavam atribuídos o seu impedimento para realizar a instrução ou o julgamento, o que vai obrigar a uma redistribuição desses processos. Ora, sabendo-se que o número de juízes é reduzido e que basta praticar um acto no processo para ficar impedido, tal leva a que já esteja instalado o caos na nossa justiça penal, devido a uma intervenção legislativa desastrada sobre a qual ninguém foi ouvido, e que nem sequer foi possível corrigir em tempo útil, devido à enorme trapalhada que constituiu a votação dos emigrantes. 

É este o estado presente da Justiça e das instituições democráticas em Portugal. 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção 
das regras do acordo ortográfico de 1990