Por Duarte Miguel Prazeres, Professor e Investigador do Instituto Superior Técnico
Os dadores de sangue sabem que quanto mais vezes praticarem aquele acto altruísta, mais impacto podem causar. Mas será possível que uma só pessoa possa ter salvo 2,4 milhões de bebés com as suas doações? Este é na verdade o caso do australiano James Harrison, que por isso recebeu justamente o epíteto de “o homem do braço de ouro”.
Ao longo de mais de 60 anos os anticorpos raríssimos de Harrison permitiram tratar a doença de Rhesus, uma condição grave em que o sangue da mãe é incompatível com o sangue do filho. O caso ilustra bem o facto de que, em certas situações, o corpo de um único indivíduo pode tornar-se inesperadamente numa singular fábrica de medicamentos.
Aos 14 anos James Harrison recebeu várias transfusões no decurso da remoção cirúrgica de um pulmão. Reconhecendo que a sua vida fora salva pelo sangue de desconhecidos, prometeu retribuir ativamente, iniciando em 1954 uma vida de doações semanais regulares [1].
Cerca de uma década depois, investigadores que esquadrinhavam meticulosamente os bancos de sangue australianos descobriram que o sangue de Harrison continha um anticorpo raríssimo de nome Anti-Rh(D), que poderia ser a chave para um problema terrível, até aí sem solução. De facto, em meados do século XX os médicos de todo o mundo confrontavam-se com uma condição conhecida como doença de Rhesus, responsável por milhares de casos de mortalidade e morbilidade fetal e neonatal [2].
A doença de Rhesus, também conhecida como doença hemolítica do recém-nascido, ocorre devido a uma incompatibilidade do fator Rh. Conhecido também como antigénio D, o fator Rh é uma molécula que cobre a superfície dos glóbulos vermelhos em cerca de 85% das pessoas (sangue Rh -positivo), mas está ausente nas restantes (sangue Rh-negativo).
Quando uma mãe com sangue Rh-negativo engravida com um bebé que tem sangue Rh-positivo, a incompatibilidade de fator Rh impele o seu sistema imunitário a atacar os glóbulos vermelhos do seu feto. Este ataque, que começa ainda no útero e continua após o parto, pode induzir o aborto e causar anemia, icterícia e defeitos cerebrais nos recém-nascidos. O problema é mais provável em gestações posteriores em que o feto tem sangue Rh positivo.
Em meados dos anos 60 vários cientistas haviam já determinado ser possível prevenir e tratar a doença de Rhesus com anticorpos Anti-Rh(D) presentes no plasma de dadores raros, i.e. na parte líquida do sangue que se obtém após remoção de plaquetas, glóbulos vermelhos e glóbulos brancos [2]. Os investigadores australianos recrutaram assim rapidamente Harrison, desenvolveram injeções Anti-Rh(D) a partir do seu plasma e administraram a primeira delas em 1967.
Desde então, milhares de injeções produzidas do plasma de Harrison foram administradas às mães australianas durante a gestação e após o parto. As estimativas indicam que cerca de 2,4 milhões de bebés, incluindo uma das netas do próprio Harrison, beneficiaram daquelas doações. Como forma de reconhecimento por este serviço meritório, Harrison recebeu a Medalha da Ordem da Austrália em 1999 [1].
As injeções Anti- Rh(D) pré-natais e pós-parto possuem uma efetividade de cerca de 99%, sendo administradas anualmente cerca de 3,6 milhões de doses. Apesar disso, estima-se que cerca de 50% de mães em todo o Mundo que poderiam beneficiar deste tratamento, não o recebem, provavelmente devido a desconhecimento, indisponibilidade ou custo excessivo. Centenas de milhares de nascituros e bebés encontram-se assim em risco de contrair a doença de Rheus todos os anos [2].
As razões pelas quais o sangue de Harrison se revelou tão especial são desconhecidas, mas especula-se que os anticorpos Anti-Rh(D) tenham sido gerados na sequência das transfusões que recebeu. Um outro caso curioso de um indivíduo com sangue valioso foi o de Ted Slavin, um hemofílico que em meados dos anos 1950 foi exposto repetidamente ao vírus da hepatite B na sequência de inúmeras transfusões. Mais tarde descobriu-se que o plasma de Slavin possuía anticorpos anti-hepatite B raríssimos.
Percebendo o valor que o seu sangue poderia ter para empresas produtoras de testes de hepatite B, Slavin começou a vender o seu sangue à razão de 10 dólares por mililitro. Industriosamente, criaria também a empresa Essential Biologicals, que recolhia sangue de pessoas com fatores raros ou únicos. De forma mais altruística, Slavin doou o seu sangue ao cientista Baruch Blumberg, permitindo-lhe assim desenvolver e criar a primeira vacina contra a hepatite B, e com isso receber o prémio Nobel da Medicina em 1976 [3].
Embora os casos de Harrison e Slavin tenham resultado de circunstâncias não-intencionais, podemos ficcionar um mundo em que o corpo de um individuo é manipulado com intuito não de o tratar, mas de transformá-lo numa fábrica de anticorpos ou outras proteínas especiais. Felizmente existem hoje técnicas modernas de Bioengenharia que possibilitam produzir em laboratório anticorpos desenhados de forma racional para obter um determinado fim (e.g. tratar a Covid 19). Assim, James Harrison continuará provavelmente a merecer o epíteto de “o homem do braço de ouro”, que o singulariza como o indivíduo com o sangue mais valioso da história.
[1] Wang, A.B., For six decades, ‘the man with the golden arm’ donated blood — and saved 2.4 million babies, Washington Post, 12 de Maio 2018.
[2] Pegoraro V. et al., Hemolytic disease of the fetus and newborn due to Rh(D) incompatibility: A preventable disease that still produces significant morbidity and mortality in children, PLoS One, 15 (2020) e0235807.
[3] Blumberg et al., Ted Slavin’s blood and the development of HBV vaccine, New England Journal of Medicine, 312 (1985) 189.