“É um grande negócio. Só deixam entrar um quilo de alimentos como bolos secos, queijo embalado, fiambre e pouco mais. Mas pela cantina – é muito mais caro – entram todos os produtos”, começa por explicar ao i Eduardo. Revoltado perante o aumento dos preços dos produtos vendidos nos estabelecimentos prisionais através da página oficial da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, garante que “não interessa investigar e mexer nas prisões porque há muita gente a ganhar muito dinheiro com os presos e não convém falar dos mesmos”.
“Acho que até há uma base de ilegalidade. De qualquer modo, há um despacho que impedia que os preços tivessem um aumento superior a 5% após a compra. Esse despacho nunca foi cumprido e data de 2020. Não compreendemos o motivo pelo qual deve haver lucro nas cantinas das prisões”, questiona Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR, acrescentando que há pelo menos sete anos se conhece a inflação existente.
“Esta auditoria foi ordenada a 13 de Maio de 2014, já depois de ser conhecido o relatório preliminar que dava conta de que as cantinas das 49 prisões existentes lucram em média 680 mil euros por ano, mas só entregam 600 mil à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), retendo verbas sem autorização”, relatava o jornal Público a 31 de dezembro de 2014, acrescentando que “nessa inspecção foi ainda detectado um volume total de vendas de 8,3 milhões de euros nas cantinas que os auditores consideraram muito elevado para estar sem controlo”.
Já então era clarificado que “fonte do Ministério da Justiça adiantou que o relatório final dessa auditoria foi enviado ao Tribunal de Contas em Novembro para serem apuradas eventuais responsabilidades face a possíveis infracções financeiras”. Contudo, até hoje, nada mudou: muito pelo contrário, a situação agravou-se. “Baseando-se em razões de segurança, o Ministério da Justiça proíbe que as famílias levem o que quer que seja, só podem levar 1kg de comida por semana. E só pode ter certas condições. Mas não podem levar tabaco, produtos de higiene, etc. E, portanto, os reclusos são obrigados a comprar tudo na cantina. Há ali um monopólio completo”, explica, à sua vez, o dirigente da APAR.
“Se os preços são assim exorbitantes, serem ou não serem é indiferente porque os reclusos têm sempre de comprar tudo lá! Estamos a falar de coisas absolutamente essenciais para a sobrevivência de qualquer pessoa. Os reclusos não podem ir a outro lado!”, observa, adiantando que “atendendo a que as famílias não podem levar aquilo de que os reclusos necessitam, os estabelecimentos prisionais podiam vender ao mesmo preço que se vende nos supermercados”.
A título de exemplo, através da consulta da tabela de preços da cantina do Estabelecimento Prisional da Carregueira, na Chamusca, percebemos que uma caixa com um quilo de açúcar em saquetas custa, nos supermercados, 1,29€, enquanto na cantina o preço era de 1,96€ e foi aumentado para 2,77€. Um garrafão de água do Luso, que custa, no exterior, 1,35€ é vendido a 1,74€; uma caixa de chá, vendida, no exterior, a 0,41€ custa 1,10€ na cantina e 1 caixa com 66 pastilhas efervescentes “Corega” custa, na cantina, 17,59€ enquanto, no exterior, uma com 108 unidades fica por 13€.
“Havia a regra dos 5%, portanto, já tinham lucro, mas agora há coisas 200 e 300% mais caras! Não há ninguém neste país que não saiba que a maioria dos reclusos é oriunda de famílias muito pobres que fazem um esforço muito grande para entregar 20 ou 30 euros aos mesmos semanalmente”, lamenta o secretário-geral, declarando que aqueles que estão privados de liberdade por terem cometido crimes têm direito a quatro refeições por dia.
“Sabemos que a empresa que serve as refeições tem de tirar lucro, pagar faturas e ordenados, mas… É óbvio que o recluso tem forçosamente de comprar produtos alimentares na cantina. A qualidade da comida é péssima. Já demos conta disto à DGRSP e estamos absolutamente convencidos de que isto só é permitido pelo desconhecimento do diretor neste aspecto. Acredito que esteja a ser feito à revelia dele. A APAR tem as tabelas que podem confirmar isto. Habitualmente, denunciamos e temos depois a certeza de que os assuntos são tratados. Não nos lembramos de ter feito alguma denúncia à atual direção sem haver, da parte desta, pelo menos, uma investigação profunda”, confessa, admitindo que “tentam repor a justiça”.
Uma realidade há muito conhecida No final de 2014, o Público dava conta de que haviam sido inspecionadas “com mais pormenor as cantinas de oito cadeias, entre elas as de Lisboa, Algarve, Olhão, Silves, Guarda, Izeda, Guimarães e Odemira. Os inspectores concluíram que, em média, as cantinas das prisões lucram anualmente 47,15 euros por recluso, sendo que algumas delas definem margens de lucro de 20% nos seus produtos, uma taxa superior à margem entre 8% a 12% que está definida por despacho da DGRSP”. O plano de atividades 2021 deste organismo revela que pretendiam “reforçar a padronização de procedimentos na gestão dos serviços de cantina e de venda direta nos dos estabelecimentos prisionais, nomeadamente através da fixação das margens de lucro dos produtos vendidos”.
“Estamos convictos de que isto vai mudar. Com estes valores, em todas as cadeias os preços das cantinas são uma vergonha. De um modo geral, não ultrapassam a margem dos 5%, mas estes valores ultrapassam todos aqueles que já tínhamos visto”, diz Vítor Ilharco, que, em janeiro passado, emitiu um comunicado em que abordou este tema em nome da APAR. “Lembremos a notícia publicada, há uns anos, na revista do Associação Sindical dos Juízes, onde se denunciava que as 49 cantinas das cadeias portuguesas tinham tido, num único ano de actividade, um lucro de 680.000 euros! Hoje a situação mantém-se mas, ainda assim, há prisões que ultrapassam todos os limites”, escreveu.
“Isto é verdade! Para que tenham o mínimo a família, semanalmente, tem de lhes dar dinheiro. Deviam acabar com isso e deixarem os familiares levar os produtos. Já não basta ter um familiar detido em Alcoentre, não ter familiares com carro e pagar 70 euros de Uber para poder ir às visitas? Temos de gastar fortunas. Aquilo que se passa nas prisões é uma vergonha”, critica Carla Cristina, indo ao encontro da perspetiva de Anabela. “Que vergonha! Em Coimbra vi eu um guarda prisional comprar bananas para vender lá dentro. E quem quiser ver os guardas logo ao pequeno-almoço a comer bifanas e a beber litradas de vinho e cerveja. Ao almoço é igual. Como estamos na república das bananas, é tudo a roubar os mais pequenos”.
Em termos legais, se analisarmos o Artigo 50.º do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, compreendemos que “em cada estabelecimento prisional existe um serviço de cantina ao qual o recluso pode recorrer para aquisição dos alimentos ou outros produtos e objectos úteis à sua vida diária, constantes de lista aprovada por despacho do director-geral”. A segunda alínea esclarece que “o director do estabelecimento prisional fixa e publica em ordem de serviço o dia da recepção das requisições e o dia da distribuição dos alimentos, produtos e objectos, divulgando ainda os respectivos preços, que devem aproximar-se o mais possível dos preços de venda ao público”.
Ao longo do artigo, entende-se algumas especificidades das cantinas, pois “os alimentos, produtos e objectos são entregues ao recluso contra recibo, “todas as aquisições de bens e produtos efectuadas pelo recluso fazem-se por débito directo e imediato ao saldo do cartão de utente” e ficamos a saber igualmente que “a pedido do recluso, o saldo do cartão de utente é creditado quinzenalmente por débito no respectivo fundo de uso pessoal, até ao limite previsto no n.º 7”.
“Nos estabelecimentos prisionais onde o cartão de utente ainda não se encontre em funcionamento, a requisição do recluso só é satisfeita após confirmação da existência de saldo no seu fundo de uso pessoal, ficando logo cativa a verba correspondente”, enuncia, sendo também elucidado que “o director-geral fixa anualmente o saldo máximo do cartão de utente e o valor máximo que cada recluso pode despender, quinzenalmente, nas aquisições de cantina”. Já o Artigo 43.º refere que “apenas é permitido o uso de utensílios de barbear descartáveis e de máquinas de barbear fornecidos pelo estabelecimento prisional ou adquiridos pelo recluso através do serviço de cantina”. No entanto, as dúvidas que possamos ter acerca do funcionamento destes espaços não se dissipam.
No regulamento anteriormente referido, a última menção feita às cantinas é no Artigo 52.º, no qual se lê que “os procedimentos relativos à administração e gestão dos serviços de cantina e de venda directa, bem como os relativos à conta corrente do recluso, são aprovados por despacho do director-geral”.
Em “As Nossas Prisões – III Relatório”, de 2003, no excerto onde se analisava as cantinas dos estabelecimentos prisionais, encontrava-se a seguinte informação: “Ao nível alimentar, a existência de cantina permite, na verdade, a aquisição de alimentos para toma entre as refeições, por vezes em sua substituição, sem que aqui ocorram, pelo menos de forma tão acentuada, os riscos inerentes à entrega directa por visitantes ao recluso”.
“Também a outros níveis, como a imprescindível aquisição de bens necessários à higiene pessoal, a existência de cantina, qualquer que seja a sua forma, é incontornável em qualquer estabelecimento, valendo também aqui as considerações quanto à bondade da restrição da entrega directa. Dispondo todos os estabelecimentos de um serviço deste tipo, varia contudo a sua forma, procedimento e, em consequência, a sua eficácia”, continuava, sendo adicionado que “dispõem de cantina, como espaço físico apropriado, a grande maioria dos estabelecimentos prisionais, funcionando as mesmas normalmente junto das salas de convívio e dos bares, com acesso directo dos reclusos e algumas cumulativamente com o sistema de requisição”.
“Nos casos em que a cantina não se encontra fisicamente acessível aos reclusos, designadamente porque se situa fora da zona prisional, é o acesso à mesma mediado através do sistema de requisição, como é o caso dos EP de Alcoentre, Coimbra, Funchal, Izeda e Monsanto”, mas já há 19 anos a Provedoria de Justiça recomendava “que seja reduzida a entrada de outros alimentos, direccionando, quando possível, a aquisição desses bens para a cantina do EP ou adoptando método de distribuição que não torne provável a entrega ao recluso destinatário do bem concreto que foi entregue mas de um outro com as mesmas características”.
“É uma vergonha de justiça, muitos deles não tem nada, as famílias também pouco ou nada têm de dinheiro para os ajudar… Como fazem esses reclusos? É muito triste como ninguém faz nada… Obrigado, APAR”, é um dos desabafos que se podem encontrar no Facebook da associação, enquanto um dos últimos resume os relatos do i. “Infelizmente é a realidade que os nossos parentes vivem. Coisas pelas quais os guardas pagam pouco e na cantina os reclusos pagam muito caro… Como eu costumo dizer, o Estado tem ladrões autorizados”.