Por Paulo Ferreira, professor catedrático do Instituto Superior Técnico
No ano letivo de 2020/2021, o número de estudantes inscritos no 1.º ano, pela primeira vez, em estabelecimentos de ensino superior, foi cerca de 144 mil, de acordo com o Ministério da Ciência e Tecnologia do Ensino Superior. Contudo, há cerca de 29% de estudantes que, depois de entrarem no ensino superior, desistem de prosseguir os estudos. Outros 11% pedem transferência para outros cursos. E, ainda, cerca de 30% das vagas ficam por ocupar quando consideramos o ensino público e privado. No caso dos alunos desistentes, assumindo um custo para o Estado de 7769 euros, por estudante, por ano, segundo a OCDE, estamos a falar de um investimento de quase 325 milhões de euros.
Este panorama levanta várias questões sobre o sistema de admissão ao ensino superior em Portugal. Este processo tem um impacto enorme no futuro de muitos jovens e das suas famílias, para além de estar subjacente o que realmente significa esta oportunidade e quem a merece. Sabemos que, para muitos cursos, não haverá vagas para todos, pelo que o sistema de admissão exige uma reflexão séria e cuidada.
De acordo com o Decreto-lei n.º 90/2008 de 30 de maio, a seriação dos candidatos é baseada numa nota de candidatura, cuja fórmula é definida pelos seguintes critérios: a classificação final do ensino secundário, com um peso não inferior a 50%; a classificação da prova ou das provas de ingresso, com um peso não inferior a 35% e a classificação dos pré-requisitos de seriação, quando exigidos, com um peso não superior a 15%. Contudo, a maioria dos cursos requer 65% para o primeiro critério e 35% para o segundo. Poucos cursos exigem o terceiro critério e, quando o fazem, é geralmente por ausência de capacidades motoras e/ou sensoriais, como, por exemplo, nos cursos de desporto ou medicina. Ou seja, a admissão no ensino superior, em Portugal, é essencialmente uma questão de notas, muitas das quais baseadas em exames.
Quais as limitações deste sistema? Envia uma mensagem inequívoca ao alunos sobre o que as faculdades mais valorizam e, portanto, a sociedade – as notas. Cria-se nos alunos e nos pais uma ansiedade nesta corrida por mais e melhores notas, que distorce o objetivo real do ingresso no ensino superior – a procura pelo conhecimento e o desenvolvimento pessoal e profissional. Tem também, muitas vezes, o efeito de promover, nas escolas e nos alunos, uma cultura de trabalho para melhorar o seu desempenho em exames, esquecendo o pensamento criativo e crítico, as competências sociais e humanas, sendo estas características essenciais para o sucesso em ambientes altamente competitivos. Pode ainda representar uma vantagem significativa, por parte de alguns alunos, relativamente às notas obtidas no ensino secundário, dado que cada escola tem autonomia para definir o seu modelo de atribuição de notas. Adicionalmente, as universidades não têm qualquer poder de decisão sobre quem ingressa no 1.º ano dos cursos, nem sequer sobre o número de alunos que podem admitir. Apresentam rácios aluno/professor superiores às melhores instituições congéneres europeias, o que tem impacto na qualidade do ensino, na prática laboratorial e na experiência geral do aluno. Por último, não permite criar diversidade académica, através de um equilíbrio entre homens e mulheres, da representatividade dos vários estratos socioeconómicos, bem como de uma maior internacionalização.
Quer isto dizer que devemos afastar as notas do processo de admissão? Evidentemente que não. Porém, temos de alargar os critérios para que a seleção seja mais holística e permita mais autonomia às universidades.
A principal função do processo de admissão no ensino superior é avaliar a qualidade e o potencial de um aluno para uma determinada área de estudo, características que não se restringem à questão das notas. Em muitas profissões, há fatores cruciais que exigem um escrutínio mais alargado. Quanto melhor e mais eficiente for este processo, menores serão as desistências e as transferências, promovendo, deste modo, o desenvolvimento de alunos motivados e bem-sucedidos profissionalmente.
Neste sentido, a Universidade de Harvard publicou, em 2016, o trabalho ‘Turning the Tide: Inspiring Concern for Others and the Common Good Through College Admissions’, tendo chegado às seguintes recomendações, para além das convencionais notas de entrada: considerar o envolvimento no serviço comunitário; avaliar a maturidade ética dos alunos; dar prioridade à qualidade versus quantidade; aferir experiências de trabalho multirraciais e culturais e analisar a participação em projetos que permitam desenvolver o sentido de responsabilidade. No fundo, estas recomendações vão no sentido de olhar para o processo de admissão ao ensino superior de uma forma holística, que também inclui os valores e atitudes, bem como atividades extracurriculares.
Em Portugal, o uso de um algoritmo, com base num conjunto de notas, é, neste momento, um processo obsoleto na admissão ao ensino superior. É um método que parece objetivo e, portanto, quantificável, ao contrário da avaliação da maturidade e da responsabilidade dos alunos, por exemplo. Todavia, não existe nenhuma avaliação que seja objetiva de uma forma absoluta.
Qual deverá, então, ser o sistema a implementar? O processo de admissão deve ser mais personalizado, estabelecendo uma interação forte entre os estudantes do ensino secundário e as universidades e os seus departamentos de admissões, no sentido de se entender as preferências de estudo e encontrar o curso adequado. Por outro lado, as universidades devem ter total autonomia sobre os critérios e o número de admissões. Estes critérios de admissão devem incorporar não só as notas , mas também cartas de recomendação, preenchimento de um formulário com questões sobre ética, responsabilidade e diversidade, e uma entrevista.
Esta autonomia permite às universidades terem uma gestão sustentada, tendo em conta o número de docentes e as infraestruturas existentes, para além de admitirem no seu campus estudantes motivados e com competências para se tornarem os futuros líderes e influenciarem positivamente a sociedade. Dada esta autonomia, é importante que as universidades sejam rigorosamente escrutinadas pela tutela em termos de resultados e transparência do processo.
O processo de admissão na universidade não é apenas uma transição do ensino secundário para o ensino superior. Está intimamente ligado à forma como identificamos e comunicamos, enquanto sociedade, os valores que consideramos importantes para o nosso futuro. Os alunos admitidos são, assim, o reflexo deste processo e os futuros pilares de Portugal. Como disse Nelson Mandela: “A educação é a arma mais poderosa que temos ao nosso dispor para mudar o mundo”.