Outros mundos

Outros mundos


O Homem de Lugar Nenhum é um dos bons lançamentos recentes da BD nacional, embora seja um pouco ingrato falar de uma obra de que saiu apenas o primeiro de dois volumes


Se apanhares uma borboleta preta e a prenderes nas tuas mãos, e lhe sussurrares ao ouvido ‘lugar nenhum’, um tipo de óculos escuros aparece do nada para te bater com um fémur humano.” Palavras de um desconhecido dirigidas num bar a um dos protagonistas da narrativa de hoje – um homem não nomeado, mas de algum lugar –, que estava mais interessado em trocar olhares com uma jovem mulher.

Escrita por Tiago Barros (Lisboa, 1990), com desenhos de Fábio Veras (Lisboa, 1997) – de quem já aqui falámos a propósito de Filhos do Rato (2019, com texto de Luís Zhang –, O Homem de Lugar Nenhum é um dos bons lançamentos recentes da BD nacional, embora seja um pouco ingrato falar de uma obra de que saiu apenas o primeiro de dois volumes.

História de procura externa e interior, com uma dimensão também catárctica no que respeita ao argumentista, saído de uma cirurgia delicada, põe-nos em dois universos em simultâneo: o real, onde se move o homem de algum lugar, e o outro, o de lugar nenhum, que pode ser a morada da morte, da inconsciência ou de um mundo que corre a par do nosso, ensaiando-se uma meditação sobre o tempo: finito ou infinito?; com princípio, meio e fim ou antes correndo numa linha circular, sendo “a vida um gradiente de experiências em paralelo?” 

Esse lugar nenhum, solar, numa velha cabana à beira de um campo de morangueiros, onde jaz a carcaça de um comboio acidentado, é onde habita o homem de óculos escuros que acabará por bater com um fémur humano no homem de algum lugar, a eles se juntando um terceiro homem desesperado por uma perda (amorosa?) e um quarto elemento, desta vez uma mulher em busca do irmão, a única até aqui nomeada: Luxúria. Nesse outro lugar surgem uma espécie de gigantes mitológicos com quem o homem de óculos escuros se aconselha: Mike, Neil e Alan (uma homenagem a três demiurgos dos comics contemporâneos, Mignola, Gaiman e Moore).

Os quatro reunidos, empreendem assim uma busca na terra inóspita dos goblins, procurando cada um algo que lhes foi roubado pelo seu rei. Um destacamento desses seres fantásticos irá ao seu encontro, e é aí que o homem de lugar nenhum tem de decidir-se a enfrentá-los. Porquê? Por um graal particular, certamente, que ficaremos a conhecer no segundo volume, e que é insusceptível de não ser procurado,

Quando estão em causa princípios inapeláveis, há que investir por eles, contra qualquer destacamento, real ou figurado, em nome de valores, que, segundo o narrador, nos permitem dormir à noite, olhar os outros nos olhos, esperar a morte com um sorriso pacificado. Porque, se abandonarmos esses princípios – escreve-se – “se os deixarmos cair, eles desfazem-se em pedaços. / Caminharias sobre os seus cacos durante o resto da vida.” Um texto com vários desafios, que Veras pôs em quadradinhos com inteligência e desenvoltura.

BDteca

ABECEDÁRIO

P, de Pitanga (Arlindo Fagundes, 1985). Barbeiro de luxo ao domicílio e motard, eterno cachecol às bolinhas pretas e t-shit de riscas à Pat Metheny, Pitanga, homem de acção que enfrenta criminosos com estilo, é uma das mais carismáticas personagens da BD portuguesa, pese embora a fraca produtividade, apenas com três álbuns publicados.

 

 

LIVROS

Abandonos, de Ricardo Santo. “Misturando realidade e ficção, esta história revela-nos a luta de um grupo de pessoas que após uma tragédia se uniram na causa comum de preservar o património natural e cultural da Serra da Estrela. Esta banda desenhada fala sobre os dilemas internos de quem cresceu e de quem vive no interior. É uma reflexão sobre as consequências do seu abandono.” (Escorpião Azul, Lourinhã, 2021). 

 

 

 

A l’Heure où les Dieux Dorment Encore, por Cosey. Criador de Johnatan, o suíço Cosey viaja pelos mesmos lugares da sua personagem. No final do ano passado foi publicado um belo livro de esboços, apontamentos, mas também aguarelas ou desenhos a tinta-da-china, num misto de diário gráfico e caderno de viagem. (Daniel Maghen, Paris, 2021)