O amor salva

O amor salva


Onde estão os bons e os maus? Em todo o lado, certamente. Mas o amor pode ser francamente libertador


Tolstói, conde e anarco-cristão excomungado pela igreja ortodoxa russa, acreditava que o amor salvava, praticava-o e escrevia-o: Onde está o amor, também está Deus (1885) é o título de um conto que fez seu, mais conhecido por A festa de Natal do Avô Panov. Eça de Queirós, cônsul e casado com a filha de um conde, também anarco-cristão e anticlerical, leitor do grande russo, acreditava igualmente nisso: leia-se, por exemplo, O suave milagre (1898). Amor ao outro, aos outros, uma boa ideia suscitada pela leitura desta narrativa em quadrinhos de Marcello Quintanilha (Niterói, 1971).

Escuta, formosa Márcia é o título de uma modinha de salão do Brasil imperial, de autor anónimo, que Márcia, protagonista desta história, enfermeira favelada, mãe solteira de um estafermo que dá pelo nome de Jaqueline, mas muito amada por Aluísio, um trolha que “é do bem” e pobre padrasto daquele estrupício, modinha que irá, romântica, adoptar como sua canção: “Escuta formosa Márcia / Tristes ais do teu pastor / São ais que a dar lhe ensinou / O tirano Deus Amor. // Eu nem suspirar sabia / Antes de te conhecer / Mas depois que vi teus olhos / Sei suspirar, sei morrer.”

Entre a favela, o hospital, com passagem por um condomínio privilegiado na zona sul do Rio, a narrativa é a vários títulos notável, desde logo pela empatia que demonstra, sem qualquer dose de maniqueísmo barato e primário, que poderia advir num episódio de vida numa sociedade desgovernada e iníqua, pela desigualdade. Onde estão os bons e os maus? Em todo o lado, certamente. O mal, exercido por pequenos delinquentes que coagem os moradores dos bairros pobres, traz sempre com ele um maior espalhafato (excepto no Carnaval), extensões do polvo organizado que por ali não pára, nem os sicários engravatados que dos seus escritórios nas zonas nobres da cidade exercem verdadeiramente o poder que oprime o povo. Mas no meio daquela selva, em que o ser humano luta para se manter à tona e sobreviver, o Amor pode ser francamente libertador. Pelo menos é o que nos ensina esta formosa Márcia de Quintanilha, cujos olhos doces não desmerecem a sua homónima da canção, que por amor maternal não desiste da desgraçada que pariu, e que há-de ter – presume-se, pois a narrativa é aberta – uma recompensa pela perseverança cuidadora que demonstra. Algo que aprendeu com Aluísio, o trolha.

Viver no Rio de Janeiro, sem ser favelado ou pertencer à bolha privilegiada que se entrincheira em condomínios fechados guardados por seguranças privados, deve ser uma experiência de vida que a classe média desta Lisboa tão amena e luso-tropical terá dificuldade em imaginar. História densa, com diálogos vivíssimos na linguagem de todos os dias e pranchas a abarrotar de vinhetas que acomodam o comércio do quotidiano – família, vizinhos, colegas, clientes, cúmplices, malfeitores e gente de bem – compõem o edifício narrativo desta novela gráfica de cores vivas, com as expressões humaníssimas saídas da mão de Marcello Quintanilha.

Escuta, Formosa Márcia
Texto e Desenho Marcello Quintanilha
Editora Polco, Lisboa, 2021 

BDteca

Abecedário

S, de (Os) Sobrinhos do Capitão / The Katzenjammer Kids (Rudolph Dirks, 1897). Considerada a primeira banda desenhada digna desse nome, recorrendo sistematicamente às filacteras de diálogo, fala-nos de uma dupla de miúdos terríveis, Hans e Fritz, de origem alemã, tal como o autor, que se entretêm a fazer a cabeça em água mãe, Dona Chucrutz, e a dois figurões já entrados em idade, o Capitão e o Inspector. A balbúrdia originada pelos dois diabretes atinge proporções épicas. O carisma irresistível das personagens, o exótico do cenário, tornaram-nos apetecíveis para os desenhos animados, realizados em finais da década de 1930 por nomes como Friz Freleng (Porky Pig, Pantera Cor-de-Rosa) ou a dupla Hanna-Barbera (Tom e Jerry, Flintstones).
 
Livros
Gente Remota, de Francisco Sousa Lobo. A Guerra Colonial e o colonialismo, como tema central de um livro cuja leitura se (nos) impõe. Nas palavras do autor, ele próprio nascido numa colónia que se quis libertar, trata-se dum “livro ficcional que nasceu de quatro longas entrevistas com ex-combatentes anónimos das chamadas guerras de África, conversas que tive em 2014. Não há nada inventado, no que corresponde às experiências de Guerra de Alfredo Jacinto, não teria capacidade para tal. Nem o crime da PIDE, nem a acção salvífica e presença de espírito de Alfredo ao salvar um soldado do colapso moral, nada foi inventado. Limitei-me a baralhar os dados. /Esta é uma pequena história de Portugal, esse país sem problemas de consciência, com uma memória selectiva, ao mesmo tempo sincera e senil.” (Chili com Carne)