Um super-herói bissexto

Um super-herói bissexto


Um anti-herói sem nenhum mérito, mas cheio de potencialidades como este Homem Voador, estreia-se num magro voluminho de 60 páginas e cerca de 100 tiras


Assim de repente, tiras humorísticas nacionais nos jornais, só estamos a ver Luís Afonso, repartindo o talento pela imprensa geral económica e desportiva. Fora isso, alguns clássicos lá de fora, os Peanuts do Charles Schulz e a Mafalda do Quino, do melhor que já se fez, e Macanudo, do argentino Liniers, série atual e distribuída para vários países pela velha King Features Syndicate (agência que representa dezenas de personagens, do Popeye ao Baby Blues).

Mais do que o cartoon, ou mesmo a ilustração, a crise tem sido devastadora, e a internet é um pau de dois bicos: se permite, por um lado, que muitos jovens autores divulguem o seu trabalho sem limites, por outro, a transumância para o online fez com que novos e velhos percam espaço no papel. Se as empresas perdem receitas, uma das primeiras sacrificadas é a tira de BD. Mas, por enquanto, não há melhor que o papel, como se verá a propósito do livro de hoje, Homem Voador, de José Pinto Carneiro e Álvaro, os mesmo autores de No Presépio… (2003)

Certo dia, um funcionário das finanças – cujo nome desconhecemos, mas a quem poderemos chamar Arménio – recolheu um cão que tinha a particularidade de falar. Em sinal de agradecimento, concede a Arménio um desejo, qualquer que ele fosse. Pensando que Zé Manel – assim se chama o cão – estivesse a gozar consigo, pede-lhe que o faça voar. E foi assim que nasceu mais um super-herói dos quadradinhos. Herói sem grandes qualidades, diga-se, pois não serve para muita coisa, a não ser proporcionar diferentes voos à mulher e orientar o trânsito lá em cima, quando não está ocupado a lidar com um drone do Pentágono ou da CIA, exemplos da argúcia daquelas fardas.

Apesar de ter tirado uma selfie com o Homem-Aranha, o Homem Voador tem dificuldade em fazer-se aceitar pela confraria dos super-heróis, não obstante máscara, capa e fato a preceito, obrigando-o a biscates pouco dignificantes, o que o leva ao divã do Doutor Freud….

Um anti-herói sem nenhum mérito, mas cheio de potencialidades como este Homem Voador, estreia-se num magro voluminho de 60 páginas e cerca de 100 tiras. Considerando o tempo que medeia entre as mais antigas, datadas de 2012, e as últimas, de 2021, a média que resulta é de dez tiras por ano. Ora Álvaro é um dos nossos melhores e mais prolíficos autores: os três volumes da série Conversas com os Putos – sobre a qual já aqui se escreveu – aí estão para o comprovar.

O que não seria desta criatura se os criadores estivessem obrigados a bulir diariamente, oferta houvesse para tal?… É verdade que não há entre nós grande tradição de tiras humorísticas: O Guarda Ricardo, essa grande figura criada por Sam, e mais recentemente José Bandeira, com Cravo & Ferradura. A obrigação quotidiana é o melhor desbloqueador do engenho. E aí está Luís Afonso, sempre fresco e sem mãos a medir… 

BDTeca

ABECEDÁRIO

Z, de Zig e Puce (Alain Saint-Ogan, 1925). Clássico da BD francesa e a primeira série franco-belga a usar filacteras, Zig e Puce são dois adolescentes – um esguio, anafado o outro – que vivem peripécias em todos os azimutes: do inevitável espaço sideral à Índia e ao Pólo Norte, onde adotaram o pinguim Alfred. Saint-Ogan pensou inicialmente que os rapazes iriam comê-lo, mas não teve coragem para sacrificar o boneco, no que fez bem, pois este viria a ser um dos ícones da BD e o primeiro símbolo do Festival de Angoulême. Nas décadas de 60 e 70, Greg, sempre ele, deu-lhes novo fôlego.

 

Livros

Trick et Balthazar, de Bob de Moor. Balthazar é um homenzinho bonacheirão, de cuja pantomina o autor – um dos grandes colaboradores de Hergé – se socorre para criar situações cómicas que nos fazem pensar. O Professor Trick, seu irmão é, pelo contrário irascível. Série pouco conhecida, as tiras foram reunidas em volume (BD Must).

O Combate Quotidiano, de Manut Larcenet. “Um relato, com toques de autobiografia, de um fotógrafo, já não tão jovem quanto isso, que decide trocar a cidade pelo campo, enquanto tenta encaixar as peças da sua vida: o trabalho, as angústias, a mulher, o passado… Ficção com contornos autobiográficos, em que o humor anda a par com uma reflexão tocante sobre as pequenas coisas da vida,” (co-edição A Seita / Arte de Autor).