A pandemia tem as costas largas


A pandemia foi o apenas o pretexto para cada um ir à sua vida e gerar eleições, o que não invalida que, antes de os portugueses votarem, sejam feitos contactos à socapa. Aliás, como em 2015: ainda não tinha havido votos e já namoravam às escondidas.


A pandemia impôs um conjunto de reajustamentos individuais, comunitários, nacionais e internacionais que sublinham a insustentabilidade dos modelos atuais para acorrer ao quotidiano, à emergência e à incerteza. Mas, se a pandemia impulsionou derivas menos positivas e tem as costas largas no assacar de responsabilidades pelo que não se fez ou pelo que deveria ter sido feito, também determinou a realização de iniciativas que, noutras circunstâncias, teriam menor probabilidade de ocorrer ou de ter relevância para as partes: os media, os partidos e os cidadãos. Os debates pré-eleitorais entre os candidatos são um bom exemplo da importância da alteração das circunstâncias na campanha. Com menos possibilidade de iniciativas de rua e de grandes concentrações de massas, que são cada vez mais exercícios logísticos caríssimos com fraca tradução em votos, mas com grade afago de egos, os debates entre os principais candidatos assumiram uma nova centralidade, também por via da maior presença das pessoas em casa e da amplificação dos conteúdos nas redes sociais e na internet.

Dos debates resulta claro que a pandemia foi mesmo o pretexto de divórcio para uma solução governativa em que as partes da equação não batiam certo desde o início sob o ponto de vista estrutural. A motivação tinha pés de barro. Só a circunstância alimentou o sonho de alguns de conjugar a vocação europeísta com a saída da União Europeia e do Euro, a participação na Aliança Atlântica com o desmantelamento da NATO e outras incompatibilidades que nenhuma quadratura do círculo resolveria. A circunstância da derrota eleitoral de 2015 a criou, a circunstância pandémica a matou. A trajetória era insustentável, nos termos, no ritmo e na escala, como o confirma o ambiente de zanga de comadres dos debates entre os parceiros da solução governativa. A pandemia foi o apenas o pretexto para cada um ir à sua vida e gerar eleições, o que não invalida que antes da pronúncia dos portugueses pelo voto, à socapa, sejam feitos contactos exploratórios para a noite de 30 de janeiro. Aliás, como em 2015, ainda não tinha havido votos, já namoravam às escondidas.

Jogar com o medo é uma tentação. Noutros tempos, com os quadros de referência claros, era meio caminho andado para assegurar a mobilização eleitoral suficiente para a vitória, agora nem tanto.

Primeiro, porque o quadro mental dos indivíduos e das comunidades é outro, como ficou evidenciado nas eleições autárquicas, em que os resultados oficiais surgiram, apesar da invocação de medos, sem se fazerem anunciar e sem serem captados pelas sondagens. O caso de Lisboa foi paradigmático da expressão de uma irritação que estava latente e foi ativada pela emergência de casos concretos que adensaram o desgaste eleitoral do poder em funções. É o problema do desfasamento entre a narrativa política e a realidade concreta ou percecionada das pessoas. Não bate certo, é tolerada, até que farta.

Segundo, porque a narrativa política construída por cada projeto partidário para levar a água ao moinho, deixou de ser um exercício unidirecional com o cidadão, existindo um maior escrutínio em relação aos conteúdos, com os diversos instrumentos de confirmação da veracidade das afirmações pelos media, pelos adversários e pelos cidadãos com memória. Por exemplo, como pode a tentação de instrumentalização política da justiça ser só agora tema, quando mudámos de Procuradora Geral da República da forma que o fizemos, persistimos em ter magistrados em funções políticas como membros do governo ou nos órgãos de direção de alguns clubes de futebol, e tivemos, até há bem pouco tempo, um membro do Conselho Superior do Ministério Público que era simultaneamente membro do órgão executivo da direção de um partido político, sendo formalmente agora apenas do órgão que nomeia, coloca, transfere, promove, exonera, aprecia o mérito profissional e exercer a ação disciplinar sobre os magistrados do MP. Ou que a principal alternativa política nomeou para esse órgão o marido de uma deputada da casa. Enfim, como não ter uma ideia negativa de quem constitucionalmente pode definir as regras e do próprio funcionamento do sistema judicial, uma das causas da progressão do populismo e de outros tipos de radicalismos.

Terceiro, porque os termos da equação eleitoral de 30 de janeiro são claros, continuidade ou mudança, sendo pouco relevantes as linhas vermelhas que são agora colocadas, porque, uma vez mais, as circunstâncias vão-se sobrepor aos valores e aos compromissos eleitorais para ditar as soluções de governabilidade possível.

A cordialidade geral dos debates pré-eleitorais será em breve substituída por uma crescente agressividade do discurso político, pelo recurso a notícias falsas e distorções das propostas adversárias, pela emergência de memórias ou de casos que desgastem o poder e as alternativas e pela expressão, mais ou menos visível, dos interesses em presença, tão evidentes nas antecipações do debate entre António Costa e Rui Rio e em todas as análises que vão sendo feitas pelos “comentadores” de plantão. Para além do que é visível, às vezes à descarada, há muita coisa a fervilhar fora do alcance da vista desarmada sobre a manutenção do poder, a preservação dos interesses salvaguardados pelo atual poder, a mudança política e os interesses descontentes com a atual solução governativa. É uma realidade que também conta, menos que o voto dos cidadãos a 30 de janeiro, se não o conseguir capturar.

A pandemia tem as costas largas, impôs um esforço individual e comunitário descomunal, determinou grandes ajustes de resposta às necessidades, não consegue mascarar a necessidade de opções políticas equilibradas, sustentáveis e com sentido de futuro ou de mudanças nas respostas públicas e na organização da sociedade. Por maiores que sejam as limitações dos políticos e dos projetos partidários de turno, o tempo exige vontade e opções com relevância estrutural, sob pena dos pilares do Estado e da sociedade deixarem de corresponder às nossas necessidades e às ambições como comunidade de destinos, num território e com um perfil de soberania.

A 30 de janeiro, qualquer que seja a perspetiva, é importante participar e para depois continuar a exigir ao longo do mandato. É desta fibra que se fazem as democracias. A fibra de cidadãos participativos, exigentes, tolerantes e atentos às realidades, sem medos nem capturas.

NOTAS FINAIS
MAIS OLHOS QUE BARRIGA. Não sei se faz parte do contrato celebrado na visita à AutoEuropa, mas invocar Marcelo Rebelo de Sousa para sustentar a ausência de riscos de uma maioria absoluta não lembra ao Diabo quanto mais aos terrestres. Pelo agrado popular e dos poderes instalados, são vários os silêncios e anuências presidenciais, que só não são mais evidentes porque PCP e BE foram parte da solução governativa e não amplificaram as ocorrências.

NÃO TUGE, NEM MUGE. Há uma deriva de intolerância do PAN com realidades que fazem parte da identidade e das economias de territórios sintonizados com o PS. No mínimo, o enleio de tango pós-eleitoral impunha que ficasse claro da parte da direção do PS se a proibição das touradas, essa expressão de intolerância com a diferença mascarada de progressismo, é aceitável a troco da sobrevivência política de uma solução governativa.

Escreve à segunda-feira

A pandemia tem as costas largas


A pandemia foi o apenas o pretexto para cada um ir à sua vida e gerar eleições, o que não invalida que, antes de os portugueses votarem, sejam feitos contactos à socapa. Aliás, como em 2015: ainda não tinha havido votos e já namoravam às escondidas.


A pandemia impôs um conjunto de reajustamentos individuais, comunitários, nacionais e internacionais que sublinham a insustentabilidade dos modelos atuais para acorrer ao quotidiano, à emergência e à incerteza. Mas, se a pandemia impulsionou derivas menos positivas e tem as costas largas no assacar de responsabilidades pelo que não se fez ou pelo que deveria ter sido feito, também determinou a realização de iniciativas que, noutras circunstâncias, teriam menor probabilidade de ocorrer ou de ter relevância para as partes: os media, os partidos e os cidadãos. Os debates pré-eleitorais entre os candidatos são um bom exemplo da importância da alteração das circunstâncias na campanha. Com menos possibilidade de iniciativas de rua e de grandes concentrações de massas, que são cada vez mais exercícios logísticos caríssimos com fraca tradução em votos, mas com grade afago de egos, os debates entre os principais candidatos assumiram uma nova centralidade, também por via da maior presença das pessoas em casa e da amplificação dos conteúdos nas redes sociais e na internet.

Dos debates resulta claro que a pandemia foi mesmo o pretexto de divórcio para uma solução governativa em que as partes da equação não batiam certo desde o início sob o ponto de vista estrutural. A motivação tinha pés de barro. Só a circunstância alimentou o sonho de alguns de conjugar a vocação europeísta com a saída da União Europeia e do Euro, a participação na Aliança Atlântica com o desmantelamento da NATO e outras incompatibilidades que nenhuma quadratura do círculo resolveria. A circunstância da derrota eleitoral de 2015 a criou, a circunstância pandémica a matou. A trajetória era insustentável, nos termos, no ritmo e na escala, como o confirma o ambiente de zanga de comadres dos debates entre os parceiros da solução governativa. A pandemia foi o apenas o pretexto para cada um ir à sua vida e gerar eleições, o que não invalida que antes da pronúncia dos portugueses pelo voto, à socapa, sejam feitos contactos exploratórios para a noite de 30 de janeiro. Aliás, como em 2015, ainda não tinha havido votos, já namoravam às escondidas.

Jogar com o medo é uma tentação. Noutros tempos, com os quadros de referência claros, era meio caminho andado para assegurar a mobilização eleitoral suficiente para a vitória, agora nem tanto.

Primeiro, porque o quadro mental dos indivíduos e das comunidades é outro, como ficou evidenciado nas eleições autárquicas, em que os resultados oficiais surgiram, apesar da invocação de medos, sem se fazerem anunciar e sem serem captados pelas sondagens. O caso de Lisboa foi paradigmático da expressão de uma irritação que estava latente e foi ativada pela emergência de casos concretos que adensaram o desgaste eleitoral do poder em funções. É o problema do desfasamento entre a narrativa política e a realidade concreta ou percecionada das pessoas. Não bate certo, é tolerada, até que farta.

Segundo, porque a narrativa política construída por cada projeto partidário para levar a água ao moinho, deixou de ser um exercício unidirecional com o cidadão, existindo um maior escrutínio em relação aos conteúdos, com os diversos instrumentos de confirmação da veracidade das afirmações pelos media, pelos adversários e pelos cidadãos com memória. Por exemplo, como pode a tentação de instrumentalização política da justiça ser só agora tema, quando mudámos de Procuradora Geral da República da forma que o fizemos, persistimos em ter magistrados em funções políticas como membros do governo ou nos órgãos de direção de alguns clubes de futebol, e tivemos, até há bem pouco tempo, um membro do Conselho Superior do Ministério Público que era simultaneamente membro do órgão executivo da direção de um partido político, sendo formalmente agora apenas do órgão que nomeia, coloca, transfere, promove, exonera, aprecia o mérito profissional e exercer a ação disciplinar sobre os magistrados do MP. Ou que a principal alternativa política nomeou para esse órgão o marido de uma deputada da casa. Enfim, como não ter uma ideia negativa de quem constitucionalmente pode definir as regras e do próprio funcionamento do sistema judicial, uma das causas da progressão do populismo e de outros tipos de radicalismos.

Terceiro, porque os termos da equação eleitoral de 30 de janeiro são claros, continuidade ou mudança, sendo pouco relevantes as linhas vermelhas que são agora colocadas, porque, uma vez mais, as circunstâncias vão-se sobrepor aos valores e aos compromissos eleitorais para ditar as soluções de governabilidade possível.

A cordialidade geral dos debates pré-eleitorais será em breve substituída por uma crescente agressividade do discurso político, pelo recurso a notícias falsas e distorções das propostas adversárias, pela emergência de memórias ou de casos que desgastem o poder e as alternativas e pela expressão, mais ou menos visível, dos interesses em presença, tão evidentes nas antecipações do debate entre António Costa e Rui Rio e em todas as análises que vão sendo feitas pelos “comentadores” de plantão. Para além do que é visível, às vezes à descarada, há muita coisa a fervilhar fora do alcance da vista desarmada sobre a manutenção do poder, a preservação dos interesses salvaguardados pelo atual poder, a mudança política e os interesses descontentes com a atual solução governativa. É uma realidade que também conta, menos que o voto dos cidadãos a 30 de janeiro, se não o conseguir capturar.

A pandemia tem as costas largas, impôs um esforço individual e comunitário descomunal, determinou grandes ajustes de resposta às necessidades, não consegue mascarar a necessidade de opções políticas equilibradas, sustentáveis e com sentido de futuro ou de mudanças nas respostas públicas e na organização da sociedade. Por maiores que sejam as limitações dos políticos e dos projetos partidários de turno, o tempo exige vontade e opções com relevância estrutural, sob pena dos pilares do Estado e da sociedade deixarem de corresponder às nossas necessidades e às ambições como comunidade de destinos, num território e com um perfil de soberania.

A 30 de janeiro, qualquer que seja a perspetiva, é importante participar e para depois continuar a exigir ao longo do mandato. É desta fibra que se fazem as democracias. A fibra de cidadãos participativos, exigentes, tolerantes e atentos às realidades, sem medos nem capturas.

NOTAS FINAIS
MAIS OLHOS QUE BARRIGA. Não sei se faz parte do contrato celebrado na visita à AutoEuropa, mas invocar Marcelo Rebelo de Sousa para sustentar a ausência de riscos de uma maioria absoluta não lembra ao Diabo quanto mais aos terrestres. Pelo agrado popular e dos poderes instalados, são vários os silêncios e anuências presidenciais, que só não são mais evidentes porque PCP e BE foram parte da solução governativa e não amplificaram as ocorrências.

NÃO TUGE, NEM MUGE. Há uma deriva de intolerância do PAN com realidades que fazem parte da identidade e das economias de territórios sintonizados com o PS. No mínimo, o enleio de tango pós-eleitoral impunha que ficasse claro da parte da direção do PS se a proibição das touradas, essa expressão de intolerância com a diferença mascarada de progressismo, é aceitável a troco da sobrevivência política de uma solução governativa.

Escreve à segunda-feira