A crise no Cazaquistão – um novo episódio em busca do império perdido?


RESUMO Tudo começou no primeiro dia deste novo ano, com o anúncio do inesperado e acentuado aumento dos preços da energia, levando o país a enfrentar os mais violentos protestos desde a sua independência, em 1991, naquele que é justamente considerado um dos principais produtores de petróleo do mundo, e detentor de abundantes recursos naturais,…


RESUMO

Tudo começou no primeiro dia deste novo ano, com o anúncio do inesperado e acentuado aumento dos preços da energia, levando o país a enfrentar os mais violentos protestos desde a sua independência, em 1991, naquele que é justamente considerado um dos principais produtores de petróleo do mundo, e detentor de abundantes recursos naturais, o que faz da economia do Cazaquistão a mais forte da Ásia Central.

A grave situação gerada com a revolta popular, levaria mesmo o presidente Kassym-Jomart Tokayev a solicitar a rápida intervenção da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO)[1], com o propósito de restabelecer a estabilidade no país.

Apesar de ser considerado um dos países mais prósperos e estáveis da Ásia Central, a classe dominante nunca conseguiu esconder, nem sequer conter, a crescente onda de corrupção que vem assolando o país, o que tem levado ao longo do tempo a esporádicas e tímidas manifestações de descontentamento por parte da sua população. 

Com os recentes tumultos, e o envio de tropas russas para o território do Cazaquistão, ao abrigo da aliança militar [CSTO], e uma indisfarçável ligação ao Kremlin, poder-se-á estar num contexto de grande oportunidade para o aumento da influência russa junto desta antiga república soviética, com todas as consequências daí resultantes no actual panorama geoestratégico que põe em confronto a China e os Estados Unidos da América, e respectivos aliados.

 

ANÁLISE

O ano que agora começa trouxe ao xadrez político internacional um novo conflito, num país aparentemente estável, governado por uma elite autocrática, com recurso a eleições fraudulentas, onde a ausência de liberdade de expressão tem sido uma das notas dominantes, desde o colapso da União Soviética, em 1991. Na verdade, desde a sua independência, o Cazaquistão nunca registara tamanha onda de protestos. O motivo terá sido o aumento dos preços dos combustíveis. Todavia, as causas são bem mais profundas, justificadas por um crescente descontentamento da sociedade cazaque, que não colhe os benefícios resultantes da enorme riqueza petrolífera. Os salários são baixos, a par de condições de trabalho inaceitáveis e de um sistema de saúde ineficaz. E tudo vai acontecendo num ambiente de profunda e crescente corrupção, com os últimos anos a serem reveladores de um sistema social com sérios problemas de funcionamento, agravado pela falta de oportunidades para as camadas mais jovens da população.

Uma das promessas eleitorais do actual presidente, que assumiu o cargo em Março de 2019, foi a de proceder a reformas promissoras, mas em lugar de uma abertura à sociedade, passou a reprimir a dissidência, prendendo todos aqueles que criticavam as políticas do governo ou denunciavam a corrupção existente[2]. As eleições são, de facto, permanentemente manipuladas, sem espaço para a oposição[3].

Os graves acontecimentos registados logo nos primeiros dias deste ano, num país assolado por enormes desigualdades e profundo défice democrático, com a população a reclamar profundas mudanças políticas, rapidamente se espalharam por todo o território, numa intensidade crescente, levariam imediata e liminarmente o governo a associá-los ao “terrorismo internacional”, e a pedir o apoio de tropas estrangeiras, numa manifesta incapacidade para pôr termo à escalada de violência. Neste contexto, rapidamente foi mobilizada uma força de manutenção de paz da CSTO, liderada pela Rússia, com um total de 3 mil militares, que incluía, igualmente, elementos da Arménia, Bielorrússia, Quirguistão e Tajiquistão[4]. Por agora, este apoio manterá no poder Tokayev e a sua clique. O preço desta solidariedade saber-se-á mais tarde, na convicção de que um dos principais objectivos de Vladimir Putin está alicerçado na restauração da influência russa em todo o espaço que representava a extinta União Soviética, dentro do qual o Cazaquistão representa uma razão acrescida, tanto pela forte presença de população russa no seu território, como pelos seus consideráveis recursos energéticos.

Da sua parte, a China, que, tal como a Rússia, partilha uma extensa fronteira com o Cazaquistão, de quem recebe importantes fornecimentos de gás natural, observa atentamente o desenrolar dos acontecimentos, ciente da larga importância geostratégica do território cazaque.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Beneficiando de largos recursos energéticos, e governado por uma autocracia considerada progressista, e um modelo para as outras antigas repúblicas soviéticas, o Cazaquistão acabou por revelar uma liderança incapaz de responder aos mais legítimos anseios de uma população afectada por elevadas taxas de desemprego, fortemente agravadas pela COVID-19. Os protestos, que rapidamente se alastraram a todo o território, saldar-se-iam na morte de 164 cidadãos e na detenção de cerca de 8 mil insurgentes.

Ao pedir a intervenção da CSTO e o envolvimento da Rússia, Tokayev poderá ter penhorado a sua liderança, para além de abrir espaço a novos sentimentos nacionalistas num país que vive uma relação geostratégica algo complexa com as potências vizinhas, o que se configura como uma oportunidade para o Kremlin reafirmar a sua hegemonia na Ásia Central.

Numa altura em que as teorias da conspiração estão muito em voga, e em jeito de resposta à questão colocada em titulo, parece oportuno formular uma outra: a quem poderá interessar um novo "episódio" de conflito interno, em mais uma das antigas repúblicas soviéticas?

 

João Henriques Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris.


[1] É uma aliança militar intergovernamental assinada em 15 de ,maio de 1992, que integra, actualmente a Arménia, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão, a Rússia e o Tajiquistão.

[2] TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Disponível em: https://www.transparency.org/en/countries/kazakhstan

[3] CARNEGIE ENDOWMENT FOR INTERNATIONAL PEACE. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2022/01/06/kazakhstan-s-unprecedented-crisis-pub-86137

[4] CARNEGIE MOSCOW CENTER, 6 de Janeiro de 2022.

 

A crise no Cazaquistão – um novo episódio em busca do império perdido?


RESUMO Tudo começou no primeiro dia deste novo ano, com o anúncio do inesperado e acentuado aumento dos preços da energia, levando o país a enfrentar os mais violentos protestos desde a sua independência, em 1991, naquele que é justamente considerado um dos principais produtores de petróleo do mundo, e detentor de abundantes recursos naturais,…


RESUMO

Tudo começou no primeiro dia deste novo ano, com o anúncio do inesperado e acentuado aumento dos preços da energia, levando o país a enfrentar os mais violentos protestos desde a sua independência, em 1991, naquele que é justamente considerado um dos principais produtores de petróleo do mundo, e detentor de abundantes recursos naturais, o que faz da economia do Cazaquistão a mais forte da Ásia Central.

A grave situação gerada com a revolta popular, levaria mesmo o presidente Kassym-Jomart Tokayev a solicitar a rápida intervenção da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO)[1], com o propósito de restabelecer a estabilidade no país.

Apesar de ser considerado um dos países mais prósperos e estáveis da Ásia Central, a classe dominante nunca conseguiu esconder, nem sequer conter, a crescente onda de corrupção que vem assolando o país, o que tem levado ao longo do tempo a esporádicas e tímidas manifestações de descontentamento por parte da sua população. 

Com os recentes tumultos, e o envio de tropas russas para o território do Cazaquistão, ao abrigo da aliança militar [CSTO], e uma indisfarçável ligação ao Kremlin, poder-se-á estar num contexto de grande oportunidade para o aumento da influência russa junto desta antiga república soviética, com todas as consequências daí resultantes no actual panorama geoestratégico que põe em confronto a China e os Estados Unidos da América, e respectivos aliados.

 

ANÁLISE

O ano que agora começa trouxe ao xadrez político internacional um novo conflito, num país aparentemente estável, governado por uma elite autocrática, com recurso a eleições fraudulentas, onde a ausência de liberdade de expressão tem sido uma das notas dominantes, desde o colapso da União Soviética, em 1991. Na verdade, desde a sua independência, o Cazaquistão nunca registara tamanha onda de protestos. O motivo terá sido o aumento dos preços dos combustíveis. Todavia, as causas são bem mais profundas, justificadas por um crescente descontentamento da sociedade cazaque, que não colhe os benefícios resultantes da enorme riqueza petrolífera. Os salários são baixos, a par de condições de trabalho inaceitáveis e de um sistema de saúde ineficaz. E tudo vai acontecendo num ambiente de profunda e crescente corrupção, com os últimos anos a serem reveladores de um sistema social com sérios problemas de funcionamento, agravado pela falta de oportunidades para as camadas mais jovens da população.

Uma das promessas eleitorais do actual presidente, que assumiu o cargo em Março de 2019, foi a de proceder a reformas promissoras, mas em lugar de uma abertura à sociedade, passou a reprimir a dissidência, prendendo todos aqueles que criticavam as políticas do governo ou denunciavam a corrupção existente[2]. As eleições são, de facto, permanentemente manipuladas, sem espaço para a oposição[3].

Os graves acontecimentos registados logo nos primeiros dias deste ano, num país assolado por enormes desigualdades e profundo défice democrático, com a população a reclamar profundas mudanças políticas, rapidamente se espalharam por todo o território, numa intensidade crescente, levariam imediata e liminarmente o governo a associá-los ao “terrorismo internacional”, e a pedir o apoio de tropas estrangeiras, numa manifesta incapacidade para pôr termo à escalada de violência. Neste contexto, rapidamente foi mobilizada uma força de manutenção de paz da CSTO, liderada pela Rússia, com um total de 3 mil militares, que incluía, igualmente, elementos da Arménia, Bielorrússia, Quirguistão e Tajiquistão[4]. Por agora, este apoio manterá no poder Tokayev e a sua clique. O preço desta solidariedade saber-se-á mais tarde, na convicção de que um dos principais objectivos de Vladimir Putin está alicerçado na restauração da influência russa em todo o espaço que representava a extinta União Soviética, dentro do qual o Cazaquistão representa uma razão acrescida, tanto pela forte presença de população russa no seu território, como pelos seus consideráveis recursos energéticos.

Da sua parte, a China, que, tal como a Rússia, partilha uma extensa fronteira com o Cazaquistão, de quem recebe importantes fornecimentos de gás natural, observa atentamente o desenrolar dos acontecimentos, ciente da larga importância geostratégica do território cazaque.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Beneficiando de largos recursos energéticos, e governado por uma autocracia considerada progressista, e um modelo para as outras antigas repúblicas soviéticas, o Cazaquistão acabou por revelar uma liderança incapaz de responder aos mais legítimos anseios de uma população afectada por elevadas taxas de desemprego, fortemente agravadas pela COVID-19. Os protestos, que rapidamente se alastraram a todo o território, saldar-se-iam na morte de 164 cidadãos e na detenção de cerca de 8 mil insurgentes.

Ao pedir a intervenção da CSTO e o envolvimento da Rússia, Tokayev poderá ter penhorado a sua liderança, para além de abrir espaço a novos sentimentos nacionalistas num país que vive uma relação geostratégica algo complexa com as potências vizinhas, o que se configura como uma oportunidade para o Kremlin reafirmar a sua hegemonia na Ásia Central.

Numa altura em que as teorias da conspiração estão muito em voga, e em jeito de resposta à questão colocada em titulo, parece oportuno formular uma outra: a quem poderá interessar um novo "episódio" de conflito interno, em mais uma das antigas repúblicas soviéticas?

 

João Henriques Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris.


[1] É uma aliança militar intergovernamental assinada em 15 de ,maio de 1992, que integra, actualmente a Arménia, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão, a Rússia e o Tajiquistão.

[2] TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Disponível em: https://www.transparency.org/en/countries/kazakhstan

[3] CARNEGIE ENDOWMENT FOR INTERNATIONAL PEACE. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2022/01/06/kazakhstan-s-unprecedented-crisis-pub-86137

[4] CARNEGIE MOSCOW CENTER, 6 de Janeiro de 2022.