A violação de direitos humanos em Odemira


As autoridades portuguesas têm vindo a olhar para o lado em relação ao que se passa em Odemira. Agora sabe-se que em lugar de protegerem os migrantes, as forças de segurança ainda exercem sevícias sobre os mesmos.


Há duas semanas critiquei neste jornal a junção da Justiça com a Administração Interna, tendo referido que essa junção “é extremamente perigosa para o Estado de Direito, precisamente pela confusão que estabelece entre valores fundamentais do Estado, como a Justiça e a Segurança, que muitas vezes conflituam entre si”. Nessa altura antecipei que passaria uma imagem terrível a nível internacional se ocorresse neste momento um episódio como a morte do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk nas instalações do SEF. Disse então que “a primeira coisa que se salientaria a nível mundial seria que a autoridade policial que iria investigar o crime e a autoridade policial sob investigação tinham exactamente a mesma tutela governamental”.

Passados quinze dias, o país foi efectivamente confrontado com um episódio muito grave relativamente a alegadas violações de direitos humanos, praticados por uma força policial, sobre migrantes em Odemira. Segundo foi noticiado, vários imigrantes asiáticos teriam sido sujeitos a sevícias por agentes da GNR, as quais teriam passado inclusivamente pela utilização de gás pimenta. Trata-se de uma situação muito grave, em termos de violação de direitos humanos, uma vez que o gás pimenta é uma arma antimotim, correspondendo a um gás lacrimogéneo, que pode causar irritação nos olhos, cegueira, sensação de pânico, e em alguns casos até a morte. A sua utilização pelas forças de segurança, fora de um quadro de defesa contra motins, constitui por isso uma gravíssima violação de direitos humanos, cujas responsabilidades têm que apuradas até às últimas consequências.

Há bastante tempo que a situação em Odemira tem preocupado a Ordem dos Advogados, especialmente a sua Comissão de Direitos Humanos. A situação foi potenciada pela Resolução do Conselho de Ministros 179/2019, de 24 de Outubro de 2019, que estabeleceu um regime especial e transitório aplicável ao Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Mira, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina. Essa Resolução permitiu durante dez anos a colocação de alojamentos de trabalhadores no parque natural, os quais foram equiparados a construções complementares de actividade agrícola. Nessas instalações foi permita a colocação de 16 trabalhadores em cada unidade de alojamento, sendo que cada um disporia apenas de um espaço no dormitório de 3,4 metros. A Assembleia Municipal de Odemira aprovou, logo em Novembro de 2019, uma moção em que todos os eleitos manifestavam “a sua mais profunda indignação sobre a Resolução do Conselho de Ministros 179/2019”, e a sua preocupação “que não seja fixado limite máximo (global) de colocação de trabalhadores agrícolas em alojamentos temporários nas explorações agrícolas”.

Naturalmente que, após o surgimento da pandemia, essa situação de sobrelotação iria potenciar um grave surto de Covid-19 entre esses trabalhadores, como efectivamente se verificou. A resposta do Governo foi, no entanto, absolutamente desastrosa, passando pela requisição total de um equipamento turístico, com habitações que estavam a ser utilizadas pelos seus titulares, que eram assim privados do seu domicílio para o mesmo passar a ser ocupado por terceiros. Posteriormente a requisição acabou por ser restrita às habitações desocupadas, mas a medida causou justo receio de que o direito à inviabilidade do domicílio tivesse deixado de ser respeitado em Portugal.

Entretanto, ficou a saber-se as condições de verdadeira exploração a que os trabalhadores migrantes eram sujeitos. Segundo averiguou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, estes trabalhadores são recrutados por intermediários, que lhes cobram avultadas quantias por um contrato-promessa de trabalho. Não possuem documentação que lhes permita o acesso à saúde ou a qualquer ajuda da segurança social, vivendo sem protecção laboral e em alojamentos sem as adequadas condições de habitabilidade e salubridade. Apesar disso, existe um clima de submissão e silêncio entre os migrantes, em virtude de pretenderem obter a legalização que lhes permitiria uma vida melhor na Europa, que os leva a não reagir contra a exploração de que são vítimas.

As autoridades portuguesas têm vindo a olhar para o lado em relação ao que se passa em Odemira. Agora sabe-se que em lugar de protegerem os migrantes, as forças de segurança ainda exercem sevícias sobre os mesmos. É mais do que tempo de a nossa Justiça se separar da Administração Interna e actuar rapidamente para proteger os migrantes e punir os infractores.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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