Um diagnóstico de diabetes em pandemia. “No meio do azar, tivemos sorte”

Um diagnóstico de diabetes em pandemia. “No meio do azar, tivemos sorte”


Carolina, de 11 anos, foi diagnosticada com diabetes tipo 1 em abril de 2020. A mãe conta como encarou a doença e um lado em que o confinamento foi uma ajuda: deu tempo para preparar o regresso à normalidade. Em véspera do Dia Mundial da Diabetes, Sara Quinta dá o testemunho, que acredita que pode…


“Tem lá agora diabetes”. Sara Quinta lembra-se de como lá em casa ninguém achou que pudesse mesmo ser essa a explicação para o cansaço da filha, a sede e idas mais frequentes à casa de banho. Como uma criança ativa de 10 anos, Carolina multiplicava-se em atividades, de aulas de hip hop, zumba e dança de ventre, a que se juntavam então os ensaios diários para a festa de Carnaval com o grupo de dança. “A certa altura comecei a achar que podia ser diabetes porque o meu pai é diabético e os meus avós também. Conhecia os sintomas da diabetes tipo 2, mas não conhecia a diabetes tipo 1, e o meu marido e o meu filho, que é mais velho, diziam: ‘Lá estás tu com estas coisas, anda só mais cansada com as atividades todas’. Até que de repente ficámos confinados, a escola fechou e começámos a levar mais a sério”, conta a mãe.

Estávamos em março de 2020, passa agora mais de ano e meio, tempo em que, nesta família de Elvas, não foi a covid-19 que obrigou a mudar tudo, mas essa doença que nos mais velhos chega silenciosamente e no caso da diabetes tipo 1 se manifesta geralmente assim, durante a infância e com uma progressão rápida. Ambas, diabetes tipo 1 e 2, resultam no excesso de glicose no sangue, porque o pâncreas deixa de fazer bem o seu papel na produção de insulina que permite que o açúcar dos alimentos (e a maioria dos hidratos de carbono que comemos são convertidos em glicose num espaço de 15 minutos a duas horas) seja transformado em energia.

Sobre as diferenças entre uma e outra ou o que implicaria Carolina ser diagnosticada com diabetes, Sara lembra que nada sabia à partida, mas naqueles primeiros tempos de covid-19 acabaram por ir atrasando a ida ao médico, não havia consultas e tinham ficado sem médico de família. “Fomos deixando passar um tempo porque parecia melhorar”, recorda. Até um dia em que Carolina não conseguiu comer e só vomitava: “Fomos ao centro de saúde de urgência, o médico não ia medir a glicemia mas falei-lhe dos sintomas e pediu o teste. Estava com 340 de glicemia. Quando chegámos a hospital estava com 380 e ficámos logo internadas”, recorda a mãe.

Chegaria em pouco tempo o diagnóstico no Hospital de Portalegre, para onde foram referenciados, com o receio do vírus a vir ao de cima. “Estava tudo em alerta. Só havia um caso de covid-19 no hospital mas estava um caos. No meio do azar, tivemos muita sorte, porque a equipa foi fantástica. Quando chegámos à urgência a Carolina teve de fazer o teste de covid-19 e toda a gente tinha de esperar os resultados na ala covid. Ela ia num estado lastimável, o médico bateu o pé e disse que ela não podia ir para o covidário porque não tinha sintomas e no estado em que estava não se sabia o que poderia acontecer se apanhasse covid. Na altura ainda se esperava um dia ou dois para ter o resultado do teste à covid-19, quando veio a dizer que era negativo já estava confirmado o diagnóstico de diabetes tipo 1.”

Começava assim, descreve a mãe, um processo de aprendizagem que hoje está interiorizado. Em véspera do Dia Mundial da Diabetes, que se assinala este domingo, Sara Quinta explica que tanto no hospital como na Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, para onde foram encaminhadas depois, teve também a sorte de apesar da pandemia conseguir sempre acompanhamento, embora considere que o testemunho entre famílias é importante e por isso tem-se disponibilizado para ajudar outros na mesma situação, conta.

“A Carolina esteve internada uma semana, a partir daí foi começar a viver com a doença. Nessa semana no hospital eu pude ficar com ela mas nem podia sair do quarto. Mal dormi para fazer esquemas para aprender tudo. Começou logo a fazer insulina, na altura com uma caneta, e agora já tem desde março uma bomba automática que lhe dá a insulina 24 horas por dia, em micro doses, e depois insulina rápida nas refeições”, conta.

Pelo meio, teve uma formação para ajudar a converter todos os hidratos de carbono ingeridos nas doses de insulina a dar a Carolina, um processo feito com o apoio da APDP, onde receberam também formação para usar a bomba. “Tirando a parte em que estamos em pandemia e a proximidade com a equipa médica não é normal, uma consulta é presencial e outra é por telefone, nunca me senti desacompanhada. É como digo, no meio do azar estamos rodeados de pessoas excelentes”. Mas acredita que foi a forma como ajudaram a família a aceitar a doença, tanto no hospital como na APDP, que acabou por ser determinante. “A base para o sucesso é a aceitação. Não adianta nada estarmos a chorar, porque é me aconteceu a mim, porque é que lhe aconteceu a ela. O meu lema é: aconteceu, ok, vamos fazer aquilo que temos de fazer e ver qual é o melhor caminho. A gente aceita, faz o melhor e bola para a frente. Hoje em dia temos imensa informação, imensa tecnologia, recebemos a bomba sem custo nenhum”, diz Sara, que quer sobretudo que a filha, sabendo que vai ter de viver com a insulina para o resto da vida, tenha uma vida normal em que pode fazer tudo. “Recuso-me a que não seja assim e é isso que tento fazer todos os dias.”

E aqui, mais uma vez, no meio do azar, a pandemia foi uma ajuda. “Não havia festas de anos, não ia almoçar com as amigas. Não era por ela não poder ir, mas não sabia o que ela ia comer e como gerir isso. Uma das coisas boas da pandemia e de estar em casa quando tudo isto aconteceu foi dar-me tempo para conseguir aprender e arranjar estratégias para quando tudo voltasse à normalidade. Também ajuda ela ter agora 11 anos, já consegue ter responsabilidade para eu estar descansada – entre aspas, porque nunca se está totalmente”, conta a mãe.

E a normalidade chegou sem sobressaltos. Carolina voltou à escola presencial com os colegas no ano passado, faz educação física e aulas de zumba, e as primeiras festas de anos também já aconteceram sem problemas. “Habituamo-nos. Ela não é muito de bolos, mas já sabemos o que vai comer, sei que se comer três rebuçados, um salame, tem de receber aquela dose de insulina. E também lhe digo, sabes que um rebuçado tem oito hidratos. São as contas que aprendemos a fazer e temos uma lista que nos foi dada que ajuda a converter os hidratos. Sei que 20 hidratos de carbono são uma unidade de insulina. Há coisas que já sabemos de cor. Uma maçã pequena, 120 gramas, são 12 hidratos. Agora com a bomba é só colocar os hidratos, mas com as canetas era fazer contas de três simples para saber a dose.” Foi outra matemática em tempo de pandemia? “Uma médica lá da APDP dizia que a mãe está top… Era a minha pior disciplina e agora virei pró”, sorri Sara Quinta, que diz que a filha, agora no 5.º ano, também se adaptou rapidamente e que essa foi uma aprendizagem para todos. “Hoje a bomba anda sempre com ela e já nem nota. A primeira coisa que me disseram na APDP foi: ‘A sua filha não é doente, tem uma doença. Só é doente se a diabetes não estiver controlada’. Tem de levar insulina porque o pâncreas dela deixou de funcionar, mas todos nós dependemos de insulina. Disse-lhe que como uma amiga dela tem de tomar comprimidos todos os dias para o coração, este é o comprimido dela. Por incrível que pareça, os miúdos têm uma capacidade extraordinária de adaptação. No início dizia: ‘Filha, vou ter de picar outra vez’ e ela respondia ‘deixa estar mãe, eu faço’.

De todo este processo, ficou com a impressão de que por vezes falta ainda informação a pais e professores, sobretudo quando se veem a braços com a doença e ao longo destes meses apercebeu-se por exemplo de crianças com diabetes tipo 1 que deixaram de ir à escola. “Tenho-me disponibilizado para ajudar com aquilo que fui aprendendo, porque há coisas em que eu também gostava de ter tido esse apoio logo no início”, explica.

Muito para recuperar João Raposo, diretor clínico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal e presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia, admite que no caso da diabetes tipo 1, diagnosticada sobretudo na infância, a pandemia terá tido menos impacto no atraso no diagnóstico, considerando que existe ainda alguma falta de informação que por vezes leva a um acompanhamento inadequado de crianças e jovens. “A diabetes tipo 2 domina a comunicação sobre a diabetes e isso faz com que exista ainda algum desconhecimento da parte da população e das famílias”, diz o médico. No caso da diabetes tipo 2, fala-se mas a doença é muitas vezes assintomática e só com rastreios a funcionar bem, com avaliação de risco para diabetes, é possível aumentar os diagnósticos atempados. É nesta frente que a pandemia causou um maior retrocesso, com milhares de casos por diagnosticar, quando o diagnóstico precoce já era um desafio. “Com base na incidência expectável na população, sabemos que temos mais de um milhão de casos de diabetes em Portugal e que 40% dos casos de diabetes, mais de 300 mil, não estarão diagnosticados”, diz o médico.

Sara e a família foram encaminhadas para a APDP, mas no ano passado a associação recebeu apenas referenciações de cerca de mil novos doentes, quando costumam ser 2 mil e teve também mais constrangimentos ao funcionamento. A nível nacional, terão ficado por fazer entre 10 mil e 20 mil diagnósticos, de acordo com os registos feitos nos centros de saúde. Nos últimos anos têm sido diagnosticados anualmente nos centros de saúde 60 mil a 70 mil novos doentes e no ano passado, revela o relatório de acesso ao SNS, foram 51.834 novos casos, uma média de 142 casos por dia. O objetivo do Programa Nacional de Diabetes que vigorou entre 2017-2020 era aumentar em 30 mil o número de novos diagnósticos anuais de diabetes, como o objetivo de tornar o diagnóstico mais precoce, o que não aconteceu.

João Raposo diz que, no caso da diabetes tipo 1, são diagnosticadas 350 a 400 crianças e jovens por ano e, embora esperando que tenha havido menor impacto neste universo, aguardam-se dados mais detalhados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), sublinhando que o país não sabe ao certo quantos casos estão diagnosticados, porque ao contrário da diabetes tipo 2, o diagnóstico é feito nos hospitais e habitualmente não é coligido. A associação promoveu uma petição para a criação de um registo nacional de diabetes do tipo 1, entregue no Parlamento com mais de 4300 assinaturas, e em outubro foram aprovados projetos de resolução nesse sentido, mas entretanto não houve desenvolvimentos.

João Raposo defende que se no caso dos diagnósticos que não foram feitos em 2020 poderá haver uma recuperação este ano, mas sem um impacto muito significativo nos doentes, é com o rastreio de complicações associadas à diabetes tipo 2 que existe neste momento maior preocupação. Aqui, os dados publicados pela ACSS no relatório de acesso ao SNS no ano passado, que João Raposo lamenta não terem sido fornecidos com mais detalhe à Sociedade Portuguesa de Diabetologia, mostram uma quebra significativa.

O rastreio da retinopatia diabética, apontado como uma das prioridades do Programa Nacional de Diabetes do Ministério da Saúde por ser uma das principais causas de cegueira evitável nos adultos, chegou em 2020 a 102.487 doentes, uma quebra de 55% face a 2019, com a percentagem de doentes rastreados a cair de 33% em 2019 para 14% em 2020. Foi o número mais baixo de doentes rastreados desde 2014. Já quanto à avaliação do risco de pé diabético, causa de amputações, foram feitas 489.829 avaliações, correspondendo a 58,9% dos utentes com registo de diabetes, o que indica um decréscimo de 17% (- 96.073 avaliações do pé nos CSP), comparativamente com o ano de 2019, revela o documento da ACSS, que o i consultou.

A única área em que houve melhorias foi no alargamento do acesso às bombas de insulina, financiadas pelo Estado a todos os jovens com diabetes tipo 1 até aos 18 anos. No ano passado, foram adquiridas 523 bombas e em dezembro havia 3537 crianças e jovens já a usar este sistema de administração de insulina, que permite um maior controlo de glicemia. Carolina entrará já no balanço de 2021, depois de ter recebido a sua bomba em março deste ano.

“Neste momento, mais do que perceber porque é que houve todo este impacto no último ano, é importante decidir rapidamente qual pode ser a estratégia para voltarmos ao normal”, defende João Raposo, considerando que, uma vez que a pandemia não acabou, é preciso perceber que recursos estão disponíveis nos centros de saúde ainda a braços com o seguimento de casos covid-19, como podem ser reforçados os rastreios e adesão para evitar que os diagnósticos continuem a atrasar-se e que aumentem as complicações evitáveis, como amputações e cegueira, que a associação teme que tenham aumentado em 2021 mas também ainda não tem dados. Estima-se que uma em cada sete pessoas com diabetes tem uma úlcera de pé ao longo da vida e que cerca de 50% das amputações podem ser prevenidas. Antes da pandemia, Portugal já era um dos países da União Europeia com mais amputações.

“Continuamos com dificuldades no acompanhamento regular dos doentes, a pandemia não acabou e sabemos que os recursos são finitos, mas é urgente haver uma estratégia de recuperação”, defende o responsável, considerando que a comunicação é também central, para que os doentes adiram mesmo se a situação da pandemia voltar a agravar-se. “A mensagem de que os diabéticos eram um grupo de risco da covid-19, o que é verdade, afastou as pessoas dos cuidados de saúde. Mesmo no final do ano passado, quando foram retomados os rastreios, o que observámos foi que compareciam menos pessoas porque tinham medo.” 

Agora, com a chegada do inverno e perante um novo aumento de casos de covid-19, mesmo com a vacina, o médico sublinha a necessidade de equilibrar a comunicação para gerar menos incerteza na população e nos doentes crónicos em particular, que precisam de ser acompanhados. “Tem-se falado muito da comunicação durante a pandemia. Passamos a mensagem da importância da vacinação, depois cai-se numa certa banalização do risco, depois regressa a preocupação e isto provoca incerteza nas pessoas, que podem começar outra vez a ficar com medo e a começar a isolar-se, enquanto outras acham que o vírus não tem importância nenhuma e fazem tudo sem restrições. É preciso encontrar um ponto intermédio de sensibilização para garantir o controlo da epidemia mas que ao mesmo tempo todas as pessoas têm um acompanhamento adequado”, apela João Raposo.