Mark Fisher. O fim do mundo precisa de banda sonora

Mark Fisher. O fim do mundo precisa de banda sonora


Conhecido crítico da cultura, Mark Fisher (1968-2017) começa a chegar a Portugal através da VS Editor – que já tinha editado Realismo Capitalista e que agora edita Fantasmas da Minha Vida. 


Escrevendo maioritariamente sobre música pop dentro do contexto britânico – daí talvez alguma dificuldade para quem não esteja habituado àquele universo – Fisher consegue, no entanto, conferir a esta dimensões inesperadas, mostrando-as como aquilo que na realidade são, pequenos observatórios para o fim do mundo – laboratórios onde se entrelaçam desejos, angústias, mesmo para aqueles avessos a este universo. Esta tendência epocal, chamemos-lhe assim, já se encontrava presente em Realismo Capitalista. Mas enquanto este, apesar de todo o interesse que tem – nem que seja porque toma por objeto os produtos da cultura de massas, gesto particularmente ausente dentro do ensaísmo português – mantinha ainda dívidas demasiado explícitas, como se tudo aquilo que estivéssemos a ler fosse eco de outras coisas – Zizek, Badiou, entre outros – Fantasmas da Minha Vida consegue tornar prático o pensamento, isto é, excede e descola da armadura teórica que o primeiro livro tinha, que lhe conferia ao mesmo tempo o seu interesse mas também a sua limitação. 

Nada contra, evidentemente, o uso das armas que a teoria crítica contemporânea fornece para interrogar objetos, sejam eles da cultura de massas ou de outro âmbito – a academia é pródiga nesse género de aplicação, com resultados mais ou menos interessantes. Mas quando o pensamento se faz rente às coisas, por assim dizer, não recuando constantemente, quando se limita, de forma sóbria, a seguir, por vezes cegamente – como uma traça que não consegue deixar de caminhar em direção à luz, selando assim o seu destino -, os movimentos do seu objeto, é aí que o pensamento se faz carne e consegue descolar de toda e qualquer dívida – é aí, tantas vezes, que o pensamento se faz órfão. É isto que parece acontecer, de facto, em Fantasmas da Minha Vida e é isto que marca a sua diferença relativamente a Realismo Capitalista. 

No entanto, para além deste movimento da escrita e do pensamento – que consegue atingir níveis de depuração bastante interessantes – o que encontramos em Fantasmas da Minha Vida é uma sintomatologia: todo este universo que convoca (maioritariamente música pop dos últimos cinquenta anos, apesar de surgirem textos sobre cinema e literatura) é uma tentativa de juízo epocal, se isto ainda for possível, é a tentativa de cartografar um tom, uma tonalidade para a época, aquilo que Fisher apelida de “grão” – como na fotografia, como uma espécie de marca temporal única. 

Não é nada evidente que a época tenha uma qualquer tonalidade – o filósofo italiano Agamben, antes de se ter transformado num profeta louco, defendia exatamente isto, esta ausência de tonalidade. Há um termo alemão intraduzível, tornado famoso por um conhecido filósofo não muito recomendável, em que o que se encontra em causa é esse tom, essa tonalidade que não se reduz a uma sensação, mas a uma espécie de abertura em que tudo quanto existe surge segundo uma determinada modalidade (no tédio, por exemplo, todas as coisas nos são profundamente indiferentes e olham-nos a partir desta indiferença). O termo alemão é Stimmung, o filósofo é o nacional-socialista Heidegger, e Fisher, por sua vez, tenta cartografar ou criar uma Stimmung contemporâneo, algo como um tom da nossa época, do nosso tempo. 

“A convicção deste livro é a de que a cultura do século XXI é marcada pelo mesmo anacronismo e pela mesma inércia que atormentaram Sapphire e Steel na sua derradeira aventura. Porém, esta estase foi enterrada, soterrada sob um frenesi superficial de ‘novidade’, de movimento perpétuo. A ‘baralhação do tempo’, a montagem de épocas anteriores, deixou de ser digna de comentário: é tão predominante hoje em dia que já ninguém repara nela”

Mas o que surge, no entanto, nestas trezentas páginas de ensaios que vão de Joy Division a Kanye West, passando por diversos experimentalismos dentro dos subgéneros da pop contemporânea ou, inclusive, por Sebald, John le Carré, séries de televisão ou filmes, é um paradoxo: a tonalidade do nosso tempo é a absoluta ausência de tom, um universo frio, um sopro gelado numa estação meteorológica no Ártico. É essa ausência de tom, uma eternidade feita de plástico, que Fisher encontra, por exemplo, numa conhecida cantora inglesa, Amy Winehouse: “O que torna Valerie e os Artic Monkeys num caso típico de retro pós-moderno é a forma como representam o anacronismo. Embora sejam suficientemente ‘históricos’ – com uma sonoridade que à primeira audição passará como pertencendo ao período que imitam – há algo neles que não bate certo. As discrepâncias na textura – fruto do estúdio e das técnicas de gravação modernos – significam que não pertencem ao presente nem ao passado, mas a uma insinuada época ‘intemporal’”.

Se o diagnóstico é mais antigo – já Roland Barthes dizia que “não vivemos a aceleração da História, mas a aceleração da pequena história” -, aquilo que torna interessante Fantasmas da Minha Vida, além da sintomatologia erigida a partir de um território nada evidente, é o facto de se dirigir a espaços determinados, como se a música tivesse, a dada altura, de se medir com certas utopias concretas que encontramos um pouco por todo o lado. 

É significativo que Fisher já não procure a literatura para conseguir cartografar esta ausência de tonalidade da época, quando ela tomou a dianteira durante grande parte do século XX (século do qual, talvez, ainda não tenhamos saímos) e que encontre na música pop e nos seus subgéneros esta ausência, este vazio. No entanto, a música funciona aqui segundo duas ou três funções, a primeira das quais é uma certa capacidade de fuga que uma ou outra geração encontrou nela – “a pop era o portal para escapar ao prosaico”, como afirma, e, durante algum tempo, as guitarras, os baixos e as baterias serviam para recusar o tempo e o espaço, para se afastar de tudo, para se ser estrangeiro no seio da família, da escola, do bairro.

Mas não é apenas isto, porque é na música pop que Fisher vai encontrar o espaço. Porque, de facto, Fantasmas da Minha Vida parece ser em última análise, um livro que orbita sobre um conjunto de espaços determinados que fazem hoje parte da nossa paisagem. Há, sem dúvida, os espaços devolutos das cidades, que também nele comparecem, com os subgéneros musicais que aderem a estes como se fossem suas emanações – com a sua coleção de seres fantasmagóricos, seres deixados para trás no movimento imparável do progresso. Mas estes espaços arruinados facilmente ganham uma aura romântica – que é o mesmo que dizer que se tornam fotografáveis, instagramizáveis, cheios de uma autocomiseração de tons nostálgicos. 

Mas depois há outros, e é a partir desses que Fisher vai conseguir interrogar esta ausência de tonalidade. São espaços insituáveis, apesar de os encontrarmos com frequência, não são daqui nem dali (para usar as categorias do antropólogo Marc Augé). Não têm passado nem futuro, podendo, portanto, ser tudo, convocar todos os tempos e espaços. São os “não-lugares”, parques de estacionamento, aeroportos, zonas de trânsito, centros comerciais, estações de serviço de bombas de gasolina. Não são lugares onde o tempo e a história parou, são lugares pós-apocalípticos de onde qualquer tempo se retirou – são lugares insones, de pesadelo, onde as coisas olham a partir de uma facies hippocratica.

“A dado momento no novo e inquietante filme de Chris Petit, Content, atravessamos de carro o porto de contentores de Felixstowe. Foi para mim um momento perturbador, pois Felixstowe fica a poucos quilómetros do local onde vivo atualmente – o que Petit filmou poderia ter sido captado a partir da janela do nosso carro. (…) Os hangares e as gruas ameaçadoras são tão genéricos que me pus a pensar se aquele porto de contentores não seria um sósia situado noutra parte qualquer do mundo. Tudo isto veio de certa forma sublinhar a descrição que o texto de Petit faz daqueles ‘edifícios cegos’ à medida que a sua câmara os vai percorrendo: ‘não-lugares’, ‘barracões prosaicos’, ‘os primeiros edifícios de uma nova era’, que tornaram ‘a arquitetura redundante’”.

Conhecemos bem demais esta paisagem – são cada vez mais as nossas cidades, o nosso horizonte inultrapassável. Mas talvez a imagem mais impressiva, que dá o tom a este conjunto de ensaios onde a música funciona como uma sonda envidada a este tipo de espaço, surja logo nas primeiras páginas a partir de uma série de televisão dos anos 70 e 80. “A derradeira imagem da série televisiva britânica Sapphire and Steel parecia destinada a assombrar a mente adolescente. As duas personagens principais, interpretadas por Joanna Lumley e David McCullum, veem-se no que parece ser um café de berma de estrada da década de 1940. Está a passar na rádio um simulacro de uma agradável Big Band de jazz ao estilo Glenn Miller. Um outro casal, um homem e uma mulher com roupas da década de 1940, está sentado numa mesa vizinha. A mulher, ao levantar-se, diz: ‘A armadilha é isto. Isto é nenhures, e é para sempre’”. 

Joy Division, Burial, Tricky, Caretaker, com todas as diferenças que os caracterizam, são emanações desse café de beira de estrada. Lá fora, só há uma noite gelada, vazia, sem vivalma. O cenário, a imagem derradeira, é pós-apocalíptico. Mas o fim do mundo que nunca chega ao fim precisa de banda sonora.