Jean-Marc Sauvé. “Quando o mal se veste com as vestes e aparência de salvação, é o cúmulo da perversão”

Jean-Marc Sauvé. “Quando o mal se veste com as vestes e aparência de salvação, é o cúmulo da perversão”


Em entrevista ao i, o presidente da comissão que investigou abusos na Igreja em França apela a que todos os países façam o mesmo: “Hoje estou convencido que o silêncio não significa que não aconteceu nada”.


Jean-Marc Sauvé liderou a comissão que expôs no início do mês centenas de milhares de casos de abuso sexual de menores na Igreja francesa ao longo dos últimos 70 anos. Duro nas conclusões, que admite que o chocaram, diz que a expectativa é perceber se a Igreja Católica consegue transformar o peso de décadas de inação em energia para mudar o que tem de ser mudado. Mas vai mais longe: defende que, além de comissões independentes em todos os países para fazer um levantamento de casos de abusos sexuais contra menores em instituições ligadas à Igreja, sejam lançadas “campanhas de verdade” que investiguem os abusos contra menores e violência sexual em todas as esferas e reformulem as políticas públicas de proteção de menores e pessoas vulneráveis. Numa entrevista por escrito ao i, o vice-presidente honorário do Conselho de Estado francês, que teve como a maioria dos franceses da sua geração formação católica – e que durante o inquérito recebeu, entre as muitas mensagens, a de um antigo colega que lhe confessou ter sido violentado por um padre que lhes tinha ensinado música há 60 anos – fala do que o impressionou ao longo de dois anos e meio de trabalho à frente da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (CIASE). Não tem dúvidas de que esta realidade está à espera de ser exposta noutros países, tal como estava em França, onde escrevem que o relatório põe fim à ideia de uma exceção francesa. “Hoje estou convencido de que o silêncio não significa, em caso algum, que nada aconteceu”, diz. 

O mundo ficou chocado com as conclusões da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja (CIASE) apresentadas no início do mês, que apontaram para mais de 300 mil menores vítimas de abusos por clérigos e pessoas ligadas à Igreja ao longo dos últimos 70 anos em França. Quando começou a ter consciência da dimensão dos abusos sexuais no seio da Igreja católica?

Foi uma tomada de consciência progressiva. Se fizemos apenas 6500 contactos correspondentes a 2700 vítimas depois do pedido público de testemunhos que lançámos em 2019, essas audições que realizámos impressionaram muito os membros da comissão quer pelo modus operandi dos predadores quer pelas consequências das suas ações. A partir desse momento, ficámos com o pressentimento de que o número real de vítimas poderia ser muito mais elevado do que aquele número de pessoas que se apresentaram à comissão para contar a sua história. Mas o que mudou de vez a nossa perceção foi perceber, em março desde ano, os resultados do inquérito à população, com uma amostra de 28 mil pessoas.

É com esse inquérito que chegam a uma estimativa de 330 mil crianças e jovens vítimas de abusos em instituições ligadas à Igreja francesa desde 1950, 216 mil vítimas de clérigos e religiosos. Continuam a receber denúncias e testemunhos?

Com o apelo por testemunhos identificámos 2700 vítimas, o que significa 1,25% do total de vítimas estimado, e identificámos ainda 4800 vítimas nos arquivos da Igreja que foram consultados pela comissão. Desde a divulgação do relatório no passado dia 5 de outubro já recebemos mais de 200 novos casos. A diferença entre o número estimado de vítimas e o número de vítimas que falaram connosco é tão grande que poderemos vir a receber muito mais nas próximas semanas.Na apresentação das conclusões disse ter visto o mal absoluto e que hoje consegue perceber melhor a que ponto pode chegar o sofrimento.

Desses milhares de testemunhos, o que o marcou mais?

O mais grave foi a descoberta do trauma causado pelas agressões sexuais. É um ataque à vida, uma verdadeira obra de morte que se traduz numa impossibilidade duradoura de viver e de ser para as vítimas. Mais de metade das vítimas consideram a sua saúde mental má ou muito má, isto décadas depois das agressões a que estiveram sujeitas na infância. E as consequências dos abusos fazem-se sentir em particular na vida afetiva, familiar e sexual destas pessoas. Um segundo aspeto que se tornou muito chocante foi ver como a mensagem de salvação da Igreja foi destorcida para apaziguar os impulsos sexuais. Descobrimos uma verdadeira subversão por parte dos agressores dos ensinamentos da Igreja e da confiança depositada nessa mesma Igreja. Quando o mal se insinua num culto e se veste com as vestes e aparência de salvação, é o cúmulo da perversão.

Do lado da Igreja, sentiu que houve negação, ingenuidade ou obediência por parte de quem não sabia de nada?

A Igreja vive neste momento mais do que um mal-estar: sente vergonha e dor profunda, quer ao nível da hierarquia, quer ao nível dos fiéis. Neste momento, não vejo qualquer negação ou tentativa de contestar as conclusões e análises que foram feitas pela comissão. A questão agora é perceber se a prostração atual poderá ser convertida em energia positiva para mudar o que tem de ser mudado. 

Se se pode falar de um modus operandi comum, que padrões conseguiram identificar?

A maior parte dos abusos ocorreu durante os primeiros 20 anos do período de 70 anos que estudamos: 56% das agressões sexuais, 120 mil, ocorreram antes de 1970. A maioria aconteceu no contexto de instituições de ensino privadas com internato e, em menor medida, nas paróquias. A saída de padres e religiosos das instituições de ensino no início dos anos 1970 praticamente fez desaparecer os abusos em contexto escolar. O fim da civilização paroquial [expressão usada habitualmente para descrever o passado histórico em que a Igreja dominava a vida em comunidade], com os seus padres todo-poderosos que formavam 70% da juventude, levou a uma quebra dos abusos paroquiais. Em contrapartida, o número daquilo a que chamamos “abusos educativos” torna-se mais importante a partir dos anos 70: falamos de abusos cometidos em campos de férias, peregrinações, retiros, acompanhamento espiritual…

Escrevem nas vossas conclusões que a atitude da Igreja em relação a estes casos evoluiu ao longo do tempo, mas continuou demasiado centrada na proteção da instituição. Em que é que se aperceberam disso?

No estudo que fizemos dos arquivos e em particular dos arquivos centrais da Igreja de França, que nos permitiram ver como a Igreja tratou os casos de padres em dificuldades, e não só pedófilos mas também padres deprimidos ou alcoólatras. Entre 1950 e 1970, houve uma verdadeira política de assistência e acompanhamento a estes padres com o objetivo de evitar qualquer escândalo público e manter estas pessoas no sacerdócio. A Igreja era completamente indiferente às vítimas, mas procurava ocupar-se dos padres. Esta política entra em colapso a partir de 1970 com a crise sacerdotal e a saída de muitos padres. Os estabelecimentos de acolhimento e estruturas de apoio aos padres “problemáticos” fecham as portas sem que a Igreja continue a responder aos padres faltosos ou reconheça as vítimas. Só a partir dos anos 2000 é que as coisas começaram gradualmente a mudar, por lado no garantir de cuidados médicos aos padres com perturbações de pedofilia e ao mesmo acolher e ouvir as vítimas. 

Concluem que apenas 4% dos casos de abusos contra menores foram sinalizados. O que vos diz esta percentagem?

Muitas coisas. Em primeiro lugar diz-nos que as crianças não falaram. E quando falaram, os pais não acreditaram nelas ou não fizeram nada que fosse útil ou eficaz. Os casos de abuso sexual na Igreja evidenciam uma clara falta de lucidez e de capacidade de resposta por parte dos pais, agravada pela confiança cega muitas vezes depositada na Igreja. Constatei mesmo, nas audições em que participei, que persiste um grande ressentimento das vítimas para com os seus pais. Muitas vítimas culpam os pais por nada terem feito e por os terem colocado, conscientemente ou não, na mão de predadores. Os pais, por sua vez, culpam os seus filhos por não se terem manifestado, por não terem falado.

Alertam para o perigo da sacralização da figura do padre e uma das recomendações da comissão foi no sentido de serem avaliadas as exigências éticas do celibato, aproveitando a discussão que houve no Sínodo da Amazónia sobre ministérios para leigos. O celibato dos padres pode ser ligado a esta história de abusos na Igreja?

O relatório não estabelece uma relação causal entre a disciplina do celibato e o abuso sexual de menores. Obviamente não foi a obrigação do celibato que levou alguns predadores em massa a abusar de dezenas de crianças de 10 e 12 anos. Aconteceu mesmo o contrário: foi o estado sacerdotal e o celibato que foram, em alguns casos, deliberadamente escolhidos para permitir satisfazer pulsões pedo-criminosas. Dito isto, o celibato tem contribuído em alguns casos para aumentar a sacralidade do sacerdote, o que pode ter favorecido o domínio espiritual e pessoal e, consequentemente, os casos de abusos.

A comissão faz um total de 45 recomendações às organizações eclesiais e à sociedade no geral, de exigir que a Igreja faça avaliações anuais destes casos e que verifique sempre os antecedentes criminais de todas as pessoas que admite ou coloca a trabalhar com menores e pessoas vulneráveis (sejam religiosos ou leigos); Do dever de indemnizar as vítimas ao que se ensina na catequese, que defendem que em todas as circunstâncias deve favorecer o espírito crítico dos jovens e que existe o direito canónico e as leis da República. Qual é a sua maior expectativa?

Não há uma hierarquia nas nossas recomendações, são todas importantes. Mas o primeiro passo necessário é mesmo proteger as crianças, eliminando firmemente os abusadores e verificando as origens dos clérigos e religiosos e todos os que contactam com crianças de forma habitual. E é preciso pôr em prática um dispositivo independente que monitorize as agressões sexuais na Igreja e a forma como são tratadas. É preciso também lutar contra todos os desvios que levaram a aumentar a autoridade e a sacralidade dos sacerdotes e religiosos e que permitiram uma distorção do acompanhamento espiritual e do sacramento da penitência. É preciso reformar em profundidade o direito canónico e rever o governo da Igreja para dar mais responsabilidade aos leigos.

Teve uma educação católica, andou na catequese, foi escuteiro. Pergunto-lhe, até enquanto pessoa com o mesmo percurso, se se sentiu desiludido, uma parte da dissimulação?

Qualquer católico só pode ficar esmagado por aquilo que este relatório revelou e eu não sou exceção. O que é grave não são apenas as faltas graves cometidas por padres e por religiosos abusadores e por vezes pela hierarquia que encobriu ou ocultou essas faltas. O mais grave foi o fracasso generalizado da instituição eclesial, que não captou os débeis sinais emanados pelas vítimas, não soube tomar as medidas necessárias que se impunham e não soube pôr em prática verdadeiras medidas de prevenção. Houve negligências e falhas graves de vigilância a todos os níveis.

Que mensagens o têm sensibilizado mais desde que apresentaram as conclusões?

Desde que publicámos o relatório, a Igreja expressou vergonha e tem falado deste peso tanto nas declarações na comunicação social como nas celebrações, nas missas. Ainda não fixou um calendário para as decisões a tomar, em particular sobre uma questão que acaba por ser muito sensível que é o reconhecimento da sua responsabilidade e o pagamento de indemnizações às vítimas. As duas conferências, a conferência dos bispos e a conferência dos religiosos, vão reunir-se em Lourdes em novembro e aí veremos de forma mais clara que conclusões é que a Igreja tira do relatório. A receção do nosso trabalho na imprensa e na sociedade civil foi unanimemente favorável. Quanto a uma franja tradicionalista na Igreja, tem sido notavelmente discreta, mesmo que comece a desafiar o método que a comissão usou para estimar o número de vítimas. Da minha parte, saliento que as duas câmaras do Parlamento francês querem ouvir-me, sem dúvida para refletir sobre medidas que possam ser votadas. Penso que em relação à Igreja católica, o Parlamento não terá nenhuma medida específica a tomar. Mas deve tomar posição sobre o problema muito grave da violência sexual na sociedade francesa que trouxemos também à luz. O estudo pedido pela comissão estima que 5,5 milhões de franceses que hoje têm mais de 18 anos foram vítimas de abusos quando eram menores.

A comissão que liderou foi criada pela Conferência Episcopal Francesa e pela Conferência de Religiosos e Religiosas de França em 2018. Escrevem a certa altura no vosso relatório que põe fim a uma ideia de “exceção francesa”, depois de anos em que foram sendo conhecidos casos de abusos massivos noutros países. Em Portugal, os casos conhecidos, poucos, vão sendo vistos como pontuais. As Igrejas de todos os países deviam avançar com uma comissão como a vossa? 

Penso que todos os países que ainda não o fizeram devem pôr em marcha comissões para deitar luz sobre a violência sexual contra menores e pessoas vulneráveis, tanto na Igreja Católica como no resto da sociedade. O que foi feito nos países anglo-saxónicos e no norte da Europa, bem como no Chile, deve se generalizado. Hoje estou convencido que o silêncio não significa, em caso algum, que nada aconteceu. Houve demasiado sofrimento. É preciso reconhecê-lo e tirar consequências para que não aconteça novamente.

Um dos argumentos que por vezes surge é como saber que um testemunho corresponde ao que realmente aconteceu. Em Portugal essa ideia já foi expressa por exemplo para justificar por que motivo a Igreja não diz quantos casos lhe foram denunciados ou está a investigar. Como é que lidaram com essa hipótese?

Com certeza que sempre existiram mitómanos e pessoas que inventam histórias. Encontrámos algumas. Mas essas pessoas constituem uma minoria muito pequenas das vítimas que se apresentam como tal quando fazemos um apelo por testemunhos ou uma sondagem. O que é certo é que as agressões sexuais são muito numerosas em todos os países e na maioria das vezes permanecem ocultas, porque provocam vergonha e culpa nas vítimas. Vítimas que não querem “destruir a família”, podendo esta família ser a sua família natural, um círculo de amigos ou uma comunidade laica(como um clube desportivo ou uma escola) ou uma comunidade eclesial. Estamos a falar de situações que causam muito sofrimento e que não se limitam a um único meio. Todas as nossas sociedades sairiam honradas se se dispusessem a lançar luz sobre estes crimes e pôr em prática medidas para que não voltem a acontecer. Em França, o Governo criou uma comissão inspirada neste modelo da comissão da Igreja católica para deitar luz sobre os casos de incesto nas famílias e casos de violência sexual em todas as instituições públicas e privadas [a Comissão Incesto – Ciivise, criada em março, começou em setembro a recolher testemunhos]. 

Tendo tido funções públicas nas últimas décadas, ficou impressionado quando o inquérito que promoveram junto da população concluiu que 14,5% das francesas com mais de 18 anos e 6,4% dos homens foram vítimas de abusos quando eram menores, 5,5 milhões de pessoas? 

Foram resultados impressionantes mas não surpreendentes, já que havia alguns inquéritos anteriores que nunca tinham saído muito dos círculos académicos. Hoje as pessoas podem falar e o que descobrimos é assustador. Todos os anos em França há 160 mil novas vítimas de abusos sexuais menores de idade. É intolerável. 

O movimento MeToo foi decisivo para que esta realidade se tornasse mais visível. Falharam também os Estados e a sociedade civil?

O público está a tomar consciência desta realidade e penso que é preciso avançar em todos os países com operações de verdade e tirar consequências para as políticas públicas. Os Estados falharam amplamente nas suas políticas de proteção de menores e pessoas vulneráveis. No nível de desenvolvimento económico, social e cultural a que chegámos o que se passou e se continua a passar é inaceitável. É preciso dar um novo ênfase a políticas nesta área.