O conceito de amor é um universo fundamentado em sensações e convicções subjetivas que acabam por ditar quem somos, o que somos e o que queremos. Talvez até possamos dizer que esta é uma verdade universal. O que é o amor e como senti-lo? Não haverá resposta, apesar de, em termos amorosos e afetivos, vivermos ancorados numa “mononormatividade” que tem acabado por reger a maneira como nos relacionamos. Vemo-lo no quotidiano, ouvimo-lo nas conversas de família ou no café, argumentamo-lo com a lei, lemo-lo nos livros e assistimo-lo no cinema, onde nos dizem que, quando estamos indecisos entre dois amores, temos de escolher apenas um. Mas porquê? Porque é que temos de amar de uma forma “exclusiva” e “limitada”? Ou, por outro lado, como é que se condensa todo o amor que se sente apenas numa pessoa?
A diversidade daquilo que somos e da maneira como sentimos tem ramificado esse universo, levando a que muitas pessoas se interroguem, se explorem e se encontrem nas chamadas relações não monogâmicas consensuais.
Aqui, não temos de escolher entre um amor ou outro. Podemos ter três, quatro, cinco ou seis duma vez. As não monogamias consensuais, entre elas o poliamor e as relações abertas, ignoram precisamente esse conceito de exclusividade da monogamia e dizem, mesmo que ainda muito baixinho, que o amor se divide, triplica ou quadruplica e que é possível amar várias pessoas ao mesmo tempo.
A TRANSIÇÃO PARA A NÃO MONOGAMIA CONSENSUAL Mariana, Cris e Bruno conheceram-no há uns anos e, desde então, no seu podcast “Rambóia Com Moderação”, desmistificam conceitos, dão a conhecer a sua realidade sem medo de mostrar aquilo que são e a forma como vivem. “Abrir a relação e passarmos por tantas experiências, conexões e conversas com outras pessoas, e mesmo entre nós os dois, foi quase como passar a usar óculos”, começa por contar ai i Mariana, referindo-se à sua anterior relação monogâmica com Bruno. “É certo que sem esses óculos conseguíamos ver o mundo e viver bem a nossa vida, mas com os óculos (não monogamia) a vida tem mais cor e definição”, continua.
Tudo começou quando Bruno e Mariana, com 16 anos, atualmente 31 e 32, se conheceram no Fotolog, um site online criado antes do Facebook. A amizade acabou por dar lugar a uma relação, monogâmica, que durou nove anos, até deixarem ‘“entrar” outras pessoas: “Olhando para trás vemos que na realidade a nossa relação sempre foi um pouco diferente da maior parte das relações monogâmicas. Começou sem a promessa de um “felizes para sempre” – em adolescentes já dizíamos “é para ser bom enquanto durar, quando deixar de ser, acaba”. Mesmo durante a nossa época monogâmica era consentido entre nós que o outro flirtasse com outras pessoas (sem chegar a vias de facto) e permitido à Mariana beijar raparigas”, explicou Bruno, designer de produto e content creator durante a semana.
Entretanto o tempo foi passando, o casal foi tendo mais conversas e, juntamente com o “come out da Mariana como bissexual”, vieram também as ideias de manter uma relação exclusiva, mas experimentar um ménage a trois com outra mulher. “Era uma oportunidade de diversificar sexualmente, já que sempre fomos experimentalistas nesse sentido, e também de a Mariana poder concretizar fisicamente algo que já estava na sua mente e desejos há muitos anos. Isto foi sendo falado ao longo de anos e era mais uma fantasia do que algo que buscávamos ativamente”, explicou.
Cerca de nove anos depois do início da relação, “com muita segurança e confiança um no outro” e depois de já terem experimentado “imensa coisa sexualmente a dois”, Mariana e Bruno conversaram sobre passar da fantasia à ação: “A pergunta era ‘se podemos estar com uma pessoa juntos, porque não podemos estar separados?’. E foi assim que decidimos os parâmetros da relação aberta. Na altura, definimos imensas regras, com ênfase na ‘monogamia romântica’ sem exclusividade sexual, que com o passar do tempo foram caindo ou sendo renegociadas porque não nos faziam sentido. Eventualmente viemos a perceber que nem no afeto romântico somos monogâmicos e decidimos que cada um tem direito a gerir as suas relações e amores como deseja – somos seres individuais que têm uma relação em conjunto, e não uma entidade ‘casal’ que funciona acima de tudo o resto”, elucida Mariana. Pelo caminho, surgiu Cris, uma jovem empresária no ramo de estética, de 25 anos. Cris deu match no Tinder com Bruno, não sabendo que ele era marido de Mariana e, entretanto, a sua união já dura há mais de três anos.
A DISTINÇÃO ENTRE RELAÇÃO ABERTA, SWING E POLIAMOR “Foi muito importante não só a parte da experiência de abrir a relação mas de todo o repensar do porque é que estávamos numa relação monogâmica antes”, continua Mariana. “Que processos da sociedade nos tinham feito optar pela monogamia? Tinha sido uma decisão informada ou algo quase que imposto? Porque é que não ouvíamos falar de modelos de relação alternativos? O que é que a sociedade ganha em manter a família tradicional nuclear monogâmica (hint: perpetua o patriarcado, o capitalismo e a dependência do Estado). Todos estes pensamentos vieram também com mais acesso a informação e um maior envolvimento no ativismo feminista e queer. O que viemos a perceber é que somos mais felizes e auto-conscientes sendo não monogâmicos e tendo a nossa liberdade e individualidade”, sublinha a também a representante do PolyPortugal, o coletivo português que se foca em não monogamias consensuais e o maior grupo de discussão e apoio para pessoas que se interessam e/ou praticam o poliamor no nosso país.
“Quando falo de poliamor, falo de uma variante específica das não monogamias consensuais que não é extensível às outras e, por isso, nunca uso o poliamor como um sinónimo para não monogamias consensuais, é sempre um fenómeno especifico”, elucida Daniel Cardoso (pessoa de género não-binário que pediu explicitamente para que fosse usada linguagem neutra), que realiza investigação na Manchester Metropolitan University, no Reino Unido, é Prof. Associade da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e responsável pelo Projecto CNM-MOVES: Consensual Non-Monogamies and Social Movements. Segundo Daniel, o conceito de poliamor, tal como o conhecemos hoje, “surge no princípio dos anos 90 e surge de duas alas diferentes, ou seja, há uma associada a movimentos neo-pagãos derivados do movimento hippie norte-americado dos anos 60 e 70 e, por outro lado, existe uma ala cosmopolita, liberal que passa por uma certa democratização da ideia de igualdade de género, da ideia de liberdade sexual, de verdade sexo-afetiva entre diferentes pessoas”, explica. “Depois há o coalescer destas ideias numa palavra específica e identidade específica que tem como enfoque não apenas a prática de sexo com várias pessoas, mas a possibilidade de estabelecer laços afetivos de intimidade significativos com mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, sem que isso implique que se goste mais ou menos de uma ou outra pessoa”, continua, frisando que essa vertente é a que acaba por ter mais expressão sendo focada “numa crítica à ligação entre a mono normatividade e o sistema patriarcal”. “O poliamor é uma vertente muito apostada numa abordagem liberal, individualizada, autonomizada dos relacionamentos com busca de ideias de satisfação e de realização pessoal em relações em contraponto à ideia dos relacionamentos tradicionais enquanto uma espécie de obrigação para com a família, a sociedade ou para com Deus”, afirma.
E a psicóloga e responsável pelo projeto Amores Plurais, que “facilita caminhos pelas relações não monogâmicas de forma ética e inclusiva”, Marcela Aroeira, concorda: “O poliamor é um processo relacional dentro de um posicionamento político que é a não monogamia. Esse posicionamento vai contra a norma. Cria as próprias regras e acordos e faz uma crítica à imposição de leis que restringem a autonomia sobre o nosso próprio corpo”, declara por telefone ao i. “No poliamor reina a ideia de que o amor não se divide, multiplica-se e que a comunicação é essencial para o bem-estar de todas as pessoas”, ressalta Cris.
Contudo, como se distinguem os conceitos que habitam o próprio conceito das relações não monogâmicas consensuais? “Eu acho que mais do que elucidar sobre as diferenças, primeiro é importante elucidar sobre as semelhanças”, aponta Daniel Cardoso. “Ou seja, relações abertas, swing e poliamor são formas de relação não monogâmica consensual. Aquilo que se altera, em última análise, são os pressupostos acerca de que tipo de envolvimentos estão ou não estão incluídos dentro desta ideia de abertura”, adiantou. É possível então que as pessoas tenham relações não monogâmicas fechadas, por exemplo, uma família poliamorosa de três pessoas em que aquelas três pessoas só querem estar umas com as outras, “não é um relacionamento aberto, porque não está aberto à entrada de novas pessoas no relacionamento, ou ao estabelecimento de novos relacionamentos sexo-afetivos, mas, mesmo assim, continua a ser uma relação de não monogamia consensual”, explicou. Por outro lado, tanto as relações abertas como o swing, por definição, normalmente focam-se num casal central que tem uma espécie de primazia sexo-afetiva e, “no caso das relações abertas, geralmente o que acontece é que cada uma das pessoas tem relacionamentos estritamente sexuais com outras pessoas, separadamente ou às vezes em conjunto e, no swing, aquilo que acontece é que esse casal, geralmente, tem relacionamentos também sexuais em conjunto com outros swingers, troca de parceiros, etc.”.
O “outro” é propriedade minha? Além de se terem interrogado sobre a maneira como viviam a relação, nessa altura, Mariana e Bruno foram explorando “como é que a monogamia perpetua o patriarcado, o capitalismo e a dependência do Estado”. “A monogamia valoriza a ideia de família tradicional: um pai, uma mãe e filhos, com o pai como cabeça de casal. Através da monogamia, consegue mais facilmente garantir que as posses do homem são passadas para os seus herdeiros de sangue – já que a mulher não pode estar com outros homens. (Aos homens nunca foi exigida tanta monogamia quanto à mulher, se pensarmos em todas as traições consentidas que houve ao longo dos anos, e na forma como se “olha para o lado” quando se sabe que o homem trai, ao contrário do escrutínio enorme pelo qual as mulheres passam)”, sublinha Mariana.
Também Daniel Cardoso assinala não só a importância da reflexão sobre “a instituição da propriedade privada dentro de um sistema patriarcal”, como também “da forma como a monogamia é, acima de tudo, um sistema de gestão do controlo de transmissão patrilinear da propriedade”. “Porque no fundo, a monogamia existe para as mulheres de uma forma que não existe para os homens”, afirma.
Do ponto de vista jurídico, durante muito tempo, a penalização da violação do casamento só era um problema do ponto de vista jurídico para a mulher, ou então era um problema do ponto de vista jurídico para o homem única e exclusivamente quando este deixava de alocar os seus recursos económicos principais à sua família oficial. “A verdade é que já na Grécia antiga conseguimos encontrar uma série de obras e de tratados justamente a promover e a estipular a prática da monogamia como sendo a forma de organização familiar mais desejada, mais estável e que faz mais sentido. Mas se formos pegar na lupa e analisar a definição de monogamia que eles utilizavam, não tem nada a ver com a nossa definição. Lá, se um homem fizesse sexo com um escravo ou com uma escrava, isto não contava como estar a violar o preceito da monogamia. Porquê? Porque o escravo era um objeto e fazer sexo com um objeto não viola isso… Da mesma maneira que, se um homem fizesse sexo com uma mulher casada, mesmo que ele fosse solteiro, era absolutamente inaceitável porque estava a violar os direitos de propriedade do marido dessa mulher”, esclarece. “Acima de tudo, estamos a falar de algo que pré-data claramente a Igreja católica e, na verdade, a Igreja católica e os princípios cristãos associados à monogamia vão beber muita da sua argumentação a alguma da filosofia de inspiração grega e greco-romana”.
De acordo com a psicóloga especialista em poliamor, vivemos, portanto, o amor de forma muita limitada na nossa sociedade. Não fomos ensinados a pensar nele de uma forma mais ampliada: “A base do amor na nossa sociedade é o medo, por isso é compreensível que as pessoas tenham receio de se abrirem para nutrir relações de diversas formas, sem estarem formatadas num único padrão”, acredita.
As maiores dificuldades e desafios do poliamor De acordo com Mariana e Bruno, sem dúvida que abrir a relação é um passo difícil de dar, pois há muita insegurança e medo de como isso vai afetar a relação. Como lidar com isso? O segredo é a comunicação, a honestidade, a paciência, a introspeção e a responsabilidade afetiva: “Abrir a relação é um bocado pegar numa casa que já está construída e começar a partir paredes e acrescentar quartos. Se não tivermos cuidado e segurança, facilmente se manda abaixo uma parede-mestra e cai a casa/relação toda”, reflete Bruno, acrescentando que, no entanto, se o fizermos com calma, com planos e informação “pode sair um projeto lindo e que se assemelha muito mais ao que pretendemos para a nossa vida”. Agora, com Cris, e com os outros relacionamentos que podem existir dentro desse, a gestão de tempo é um ponto importante a ter em consideração, bem como a transparência e confiança para gerir o amor que um/a parceiro/a sinta por outra pessoa. “Quando nos dizem toda a vida que a nossa ‘cara-metade’ se apaixona por outra pessoa, porque já não nos ama a nós, torna-se bastante difícil não ver essa mudança na dinâmica como uma ameaça à relação original”, elucida Bruno. No entanto, o que lhe diz a experiência é o contrário: “Afinal é possível amar várias pessoas ao mesmo tempo e manter vários relacionamentos”. Mas claro que, para isso, segundo o designer de produto, é necessária uma ótima comunicação e muita sinceridade. “É preciso também saber ouvir algo que nos pode magoar e deixar inseguros mas perceber que uma nova paixão não significa sermos ‘trocados’”, considera.
“E é preciso renegociar as necessidades na relação – quanto tempo é que o meu parceiro me vai poder dar agora? Que momentos especiais podemos continuar a ter? Que hierarquia precisa de ser desconstruída? Com o passar do tempo fica mais fácil ir explicando aquilo que sentimos às pessoas com quem já nos relacionamos”, acrescenta Mariana, revelando que nesta relação os três tentam evitar hierarquia ao máximo. “Entre nós há várias relações: 2 relações romântico-sexuais (Mariana e Bruno e Cris e Bruno), uma relação de familiaridade e amizade (Mariana e Cris) e uma relação de família (Mariana, Cris, Bruno) – estas relações todas têm diferentes níveis de dedicação de tempo, de atenção, têm necessidades diferentes”.
COMO GERIR A “ENTRADA” DE NOVOS AMORES? Cris, por sua vez, dá-nos a conhecer a dinâmica existente na relação, de cada vez que um dos integrantes comece outro alguém. Assim que começa a conversar ou a sair com uma nova pessoa (por norma isso começa sem muitas expectativas românticas ou de tempo), a informação é logo dada aos parceiros. Com o passar do tempo, com as conversas e ao estar com essa nova pessoa, se se for apercebendo que é alguém que quer que faça parte da sua vida mais regularmente, comunica. Se começar a sentir um carinho muito grande pela nova pessoa, mais uma vez, transmite-o aos seus parceiros. “Algo que não se deve mesmo fazer é sair com alguém, dizer aos parceiros que é algo casual, e de repente dizer-lhes que afinal há ali intenções de uma relação mais estruturada e romântica”, sublinha a empresária no ramo da estética.
A conversa é, por isso, uma constante na relação: “Conversamos sempre uns com os outros sobre todas as pessoas que podem influenciar as relações que existem entre nós. Se houver alguma red flag que a pessoa que está a iniciar o relacionamento não está a ver, os outros podem falar sobre ela. Não quer isso dizer que possam impedir a relação de continuar, dizemos sim para ter cuidado para não sair magoado, ou que tememos que isso nos afete a nós”, explica. O polycule (este núcleo de pessoas com relações cruzadas) diz fazer exatamente o contrário, “vemos as green flags e vemos como a nova pessoa lhe está a trazer felicidade, e por isso apoiamos na exploração de outras relações”, frisa Mariana, destacando o termo “compersão”, que “é sentir felicidade pela felicidade do meu parceiro, mesmo que a fonte seja outra relação. “Compersão é sentir felicidade ao ver outra pessoa a fazer o meu parceiro feliz. Felicidade e amor em 2º grau!”, elucida.
A GESTÃO DOS CIÚMES Contudo, isso não significa que nas relações não monogâmicas consensuais, neste caso, no poliamor, não se sinta ciúmes. Aquilo que a investigação mostra, segundo Daniel Cardoso, é que, grosso modo, existe ciúme ou existe essa possibilidade neste tipo de relações, mas ao contrário dos ideais “mononormativos”, este não é tratado nem como uma prova de amor, nem como algo inescapável ou algo que pode ser utilizado como uma espécie de arma de arremesso. “Ou seja, dentro do ideal monogâmico, cada parceiro tem a obrigação de tentar por tudo, minimizar toda e qualquer possibilidade de ciúme que a outra pessoa possa sentir. Num contexto monogâmico isso levaria quase a uma situação de poder de veto absoluto de uma pessoa sobre a outra. Portanto, aquilo que a investigação mostra que se procura fazer nestas relações, é justamente ser um trabalho proativo de desconstrução do ciúme, mas também, ao mesmo tempo, tentar perceber exatamente qual é a génese desse ciúme”, descreve.
OS MITOS EM TORNO NO POLIAMOR No que concerne aos mitos que têm “assombrado” as relações não monogâmicas consensuais, segundo Daniel Cardoso, todos eles estão ancorados na ideia de que a monogamia tem uma série de marcadores de superioridade face à não monogamia. O primeiro mito é de que “a monogamia permite uma vida sexual mais satisfatória, na medida em que, se uma pessoa está numa situação de não monogamia consensual, então não consegue ligar-se ou conectar-se tão bem com o seu parceiro/a”. O segundo é que a monogamia é “uma estratégia útil na prevenção de infeções sexualmente transmissíveis”. Contudo, dados empíricos mostram que isso não é verdade: “Cada pessoa só pode falar da sua própria monogamia, mas normalmente esta é assumida sendo uma característica da relação. No conceito de relações que se autoidentificam como sendo monogâmicas, a verdade é que os níveis da chamada infidelidade conjugal são bastante altos no geral, o que quer dizer que uma pessoa monogâmica pode muito perfeitamente ser a recetora de uma infeção sexualmente transmissível transmitida pela parceira/o, porque essa pessoa está a fazer sexo com outras, mesmo quando ela não sabe”, elucida.
Em terceiro lugar, há o mito de que “as relações monogâmicas são mais satisfatórias do ponto de vista relacional”. Portanto, “que a satisfação relacional nas relações monogâmicas é superior”. Em quarto lugar, temos o mito que está assente precisamente na ideia dos ciúmes, que nos diz que as relações monogâmicas são uma melhor ferramenta de gestão de ciúmes. “Mais uma vez, a investigação mostra que isto não é o caso. Especialmente porque a gestão dos ciúmes normalmente é feita de forma menos conflitante em relações não monogâmicas, do que em relações monogâmicas”, frisa. E depois existe ainda o mito de que “as relações monogâmicas são mais estáveis e portanto, são um ambiente mais saudável para educar e criar crianças”. “Mais uma vez, a investigação mostra que isto não é verdade. Que em contextos de relações não monogâmicas consensuais, geralmente existem mais recursos e mais pessoas disponíveis para cuidar das crianças e, portanto, o nível de cuidado é igual ou superior. Na verdade o que a investigação mostra é que os principais problemas que famílias não monogâmicas com crianças enfrentam, são problemas de estigmatização social, não são problemas endógenos da relação, são sim problemas exógenos à relação”, conclui.
Marcela Aroeiro faz ainda questão de elucidar sobre a maneira como o poliamor ainda é vivido de forma diferente por homens e mulheres devido às pressões sociais que constroem os estereótipos de género, porque vivemos, no seu entender, “numa sociedade machista, misógina e sexista”. “Quando quebramos com a estrutura monogâmica, levantamos muitas outras violências que estão enraizadas na nossa sociedade. E como vivemos numa sociedade patriarcal, nós mulheres sofremos muito mais com essas mudanças. Podemos ser mais crucificadas do que os homens, mas por outro lado é um mal que vem por bem, porque temos a possibilidade de resgatar a nossa autonomia nesse processo”.
A proteção das pessoas poliamorosas Apesar de nunca terem sentido discriminação por serem não monogâmicos, pois muitas vezes ou as pessoas nem se apercebem (assumem que somos amigos, ou um casal e uma amiga, ou um casal e uma irmã) ou simplesmente guardam para si as suas opiniões, Mariana, Cris e Bruno já leram muitos comentários de ódio para com relações não monogâmicas, incluindo dirigidos a pessoas que lhes são muito queridas e que os acabam por afetar. “Não há forma de falar do poliamor com pessoas que o consideram o fim do mundo. Não querem ouvir, não ouçam. Nem têm que ouvir ou aceitar – não é sobre a vida delas, é sobre a nossa e as das outras pessoas não monogâmicas e questioning. Para pessoas que realmente não querem aprender ou ouvir falar de modelos de relacionamento e identidades alternativas, nada a fazer”, defende Mariana.
Para combater a discriminação existente, segundo a investigação de Daniel Cardoso, e muitas das entrevistas que realizou ao longo do seu processo, existe uma aposta muito clara por grupos de ativistas na questão da visibilidade pública, mediática, quotidiana. “Conforme as pessoas se vão habituando e vão assistindo à existência de mais pessoas neste tipo de relações (que não precisam e não estão no armário) aos poucos isso vai permitindo que haja mais informação, maior sensibilização que, por sua vez, dê acesso a recursos, infraestruturas e ajuda, que lhes permita explorar essa possibilidade com alguma solidez, ao invés de haver esta lógica de rejeição interna ou de ‘não isto não é sequer possível’”.
Mas quem defende estas pessoas? “Ninguém”, declara Daniel Cardoso, dizendo que têm de se proteger a elas mesmas. “Em Portugal temos uma lei que criminaliza a bigamia com pena de prisão. Claro que não é possível sequer nós casarmo-nos com duas pessoas, mas se alguém o tentasse fazer incorreria numa pena de prisão que acho que vai até cinco anos. Portanto, não é uma questão de ausência de proteção, é sim uma questão de criminalização, não de relações poliamorosas, mas da possibilidade do reconhecimento legal dessas relações”, revela Daniel, adiantando que nos EUA, continuam a existir leis contra a bigamia, mas a maneira como se passa ao lado disso é através das civil partnership que não são diretamente equivalentes a um casamento e, por conseguinte, não infringem a legislação associada à proibição da bigamia. “Tudo o que tenha que ver com orientação relacional, muitas das vezes não é sequer ainda reconhecido como sendo uma coisa real, quanto mais estar abarcada por leis de antidiscriminação”, lamenta.