RESUMO
Com o regresso dos talibãs[i] ao poder no Afeganistão, vinte anos depois da intervenção militar dos Estados Unidos que levou ao seu derrube, a Comunidade Internacional (CI) enfrenta agora um sério desafio no que ao reconhecimento do novo governo diz respeito, tendo em consideração os preocupantes e recorrentes sinais que têm sido dados pelas novas autoridades afegãs no domínio dos direitos humanos. O reconhecimento da legitimidade da actual liderança afegã por parte da CI vai, inevitavelmente, depender da materialização das promessas talibãs feitas por ocasião do processo de negociações de 29 de Fevereiro de 2020, entre os Talibãs e os Estados Unidos, que teve lugar em Doha, no Catar, num acordo que mereceu o apoio da China, da Rússia e do Paquistão. Da sua parte, a Administração norte-americana acusa reiteradamente a liderança talibã de estar a pôr em causa as conquistas alcançadas pelo povo afegão. Entretanto, a sociedade norte-americana, incluindo a Instituição Militar, vive entre os sentimentos de alívio e de humilhação pela inusitada saída do território e pelas situações dramáticas a que foram sujeitos todos aqueles que ao longo de muitos anos serviram os interesses da nação americana. O actual cenário é, pois, de profunda incerteza quanto ao posicionamento dos membros da Comunidade Internacional relativamente ao reconhecimento do governo do novo Emirado Islâmico do Afeganistão.
ANÁLISE
Na sequência da tomada do poder a 15 do passado mês de Agosto, foi anunciado pelos Talibãs, a 7 deste mês, o novo governo provisório do Afeganistão, inteiramente masculino, liderado por Mohammad Hasan Akhund. O novo gabinete integra figuras com passagem pelo elenco governativo do período de 1996 a 2001, durante o qual Akhund assumiu sucessivamente as funções de ministro das Relações Exteriores e as de vice-primeiro-ministro. O elenco inclui outro destacado elemento, Sirajuddin Haqqani, líder da Rede Haqqani, que ocupa a pasta do Interior. Haqqani está referenciado pelo FBI na lista dos Mais Procurados[ii] pela justiça norte-americana, devido ao seu envolvimento em diversas acções terroristas. A par dos Estados Unidos, as próprias Nações Unidas consideram a Rede Haqqani como uma das mais sinistras a actuar no sul da Ásia, constituindo-se como uma nova e séria ameaça terrorista global.
Apesar das promessas tornadas públicas pela liderança talibã sobre o respeito dos direitos humanos da população afegã, a par das garantias expressas de que jamais o território afegão será usado por grupos terroristas para o lançamento de ataques contra países vizinhos e preparação de acções que tenham como destinatários os países ocidentais, continuarão a ser, por largo tempo, uma profunda preocupação sobre a sua real capacidade ou vontade de as materializar. Ao longo dos últimos dias, são muitos os relatos de amputações e execuções sumárias de membros da sociedade, bem reveladoras da matriz conservadora e radical dos talibãs, considerados já pela Administração norte-americana como “abusos flagrantes” dos direitos humanos[iii].
Noutro domínio, dada a contiguidade territorial com a China, a Rússia, o Paquistão e os Estados da Ásia Central é colocada uma séria e delicada questão sobre os meios que as suas lideranças terão â sua disposição para conter de modo efectivo o risco das crescentes acções terroristas e o tráfico de drogas que lhe está associado. É sabido que tanto para o Paquistão como para os Estados Unidos o caminho seguido não estava nos seus planos iniciais, tendo em consideração os graves problemas postos pela retirada desordenada das forças norte-americanas e da OTAN e de cidadãos afegãos. Este facto tem levado o Paquistão a hesitar em reconhecer o governo talibã, manifestando a intenção de proceder a consultas a outros países tanto da órbita regional como internacional, em particular China, a Turquia e os próprios Estados Unidos. Esta posição é tão mais significativa se considerarmos as relações de proximidade entre a Islamabad e os talibãs. De resto, o Paquistão foi um dos primeiros países a reconhecer o governo talibã, em 1996. Claramente, a liderança paquistanesa deseja evitar uma eventual precipitação no reconhecimento do novo governo talibã, ao mesmo tempo que pretende obter garantias das autoridades de Cabul relativamente a uma efectiva neutralização de grupos insurgentes anti-Paquistão que actuam a partir do território afegão. De recordar que na passagem dos talibãs pelo poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001, apenas três países reconheceram o seu governo. Para além do Paquistão, somente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos expressaram o seu apoio ao governo de então.
O regresso dos talibãs ao governo do Afeganistão tem, inevitavelmente, consequências de natureza geoestratégica e securitária, não só de âmbito regional, como também no plano internacional. Actualmente, tanto a China, como a Rússia, potências às quais se juntam o Irão e a Turquia, tudo farão para tirar partido da retirada norte-americana da região. Por ocasião da tomada de Cabul, a China, a Rússia e o Irão acabariam por manter abertas as suas embaixadas na capital afegã, o que mostra bem a orientação da sua política externa face ao novo poder afegão. Já os Estados Unidos, que encerraram a sua embaixada em Cabul, dão sinais de, no curto prazo, se mostrarem avessos ao reconhecimento do governo talibã, algo que está a resultar num aceso debate no seio do Congresso norte-americano. Também a Rússia, onde os talibãs são considerados, ainda, um grupo terrorista, e a China, que mantiveram contactos com os talibãs ao longo dos últimos meses, tendentes a uma maior cooperação económica e técnica, não se têm mostrado disponíveis para um rápido reconhecimento do novo governo de Cabul, para cujas lideranças são, igualmente, prioritárias as questões relacionadas com a segurança fronteiriça. Da sua parte, a China estará atenta às manobras de grupos terroristas instalados em território afegão, e aos insurgentes paquistaneses, que já por diferentes ocasiões visaram as estruturas do projecto CPEC (Corredor Económico China-Paquistão), de fundamental importância económica para a região[iv].
Da sua parte, o Irão, que ocupa um espaço geográfico estrategicamente importante, já tornou público que fará depender o reconhecimento dos novos governantes, com os quais tem mantido ao longo da história relações algo conflituosas, do modo como estes vierem a conduzir a política do país. Já no plano global, a vitória talibã, a par da retirada norte-americana, afigura-se para Teerão como uma excelente oportunidade para o relançamento das suas relações externas e o eventual abrandamento das sanções internacionais a que tem estado sujeita.
Mais a Ocidente, a União Europeia e o Reino Unido, principais patrocinadores da ajuda ao Afeganistão, têm mostrado sérias reservas no reconhecimento do regime Talibã. Para os Estados ocidentais, as fundamentadas apreensões assentam na actual volatilidade social afegã que poderá conduzir a uma nova onda migratória para a Europa e aos riscos de recrudescimento do terrorismo jihadista internacional. Alguns analistas acreditam mesmo que caso as democracias ocidentais imponham sanções económicas ao novo governo de Cabul, é de admitir o recurso talibã ao apoio financeiro da Al Qaeda, em nome dos estreitos laços que, desde há muito, unem as duas entidades, e o resultado de tal ajuda para a segurança do Ocidente. Certo é que esta conquista talibã teve já o triste condão de provocar um novo alento do terrorismo jihadista internacional. A população mundial vive, pois, momentos de incerteza relativamente à forma como a situação no Afeganistão irá influenciar as futuras acções dos grupos e das organizações terroristas, para as quais, inevitavelmente, só o tempo dará resposta. Não será, assim, de estranhar a justificada hesitação da Comunidade Internacional no que ao reconhecimento do novo governo afegão diz respeito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quase um mês volvido sobre o anúncio do novo governo do Afeganistão pelas forças talibãs, nenhum membro da Comunidade Internacional reconheceu, ainda, o novo elenco governativo, num momento em que se acentua a já de si grave crise humanitária. A nova liderança afegã continua a mostrar-se incapaz de conciliar o seu fundamentalismo doutrinário com as condições que lhe são impostas internacionalmente sobre o estrito respeito pelos direitos humanos de toda a população. O relato dos sucessivos e graves acontecimentos dos últimos dias tem sido a demonstração dessa incapacidade. Se os novos líderes afegãos quiserem obter o reconhecimento da Comunidade Internacional terão inequivocamente de fazer uso de um elevado sentido de persuasão, do qual tanto o investimento estrangeiro como a urgente ajuda humanitária dependerão. Para o novo governo afegão, os próximos tempos são decisivos para a reconstrução de uma sociedade historicamente massacrada. Cabe aos seus dirigentes materializar as muitas promessas feitas sobre a implementação de um modelo de governação baseado num genuíno respeito pelos direitos humanos de toda a população afegã, a par da firme recusa de apoio aos grupos terroristas que proliferam pelo seu território. Convenhamos que, de momento, os sinais não têm sido nada animadores.
Lisboa, 27 de Setembro de 2021
João Henriques
Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris
[i] Movimento fundamentalista e nacionalista islâmico, surgido no início da década de 1990, no norte do Paquistão, na sequência da retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.
[ii] Disponível em: https://www.fbi.gov/wanted/terrorinfo/sirajuddin-haqqani
[iii] AL JAZEERA, 25 de Setembro de 2021.
[iv] NEWSWEEK, 27 de Setembro de 2021.