Alix o Intrépido, apareceu em 1948 nas páginas da revista Tintin, mostrando as aventuras de um jovem gaulês, antigo escravo adotado por um patrício romano. A adesão dos leitores “dos 7 aos 77 anos”, foi imediata, para surpresa do próprio Hergé, em cujos estúdios o ainda jovem autor trabalhava; e em breve Jacques Martin (1921-2010) ganharia a autonomia necessária para consagrar-se inteiramente à sua obra. Alix, principalmente, mas também Lefranc, de que já aqui falámos, entre outros. Até uma idade avançada e com problemas de visão, Martin interveio nos livros, contando também com assistentes que, adotando-lhe o estilo, continuaram o seu trabalho.
O sucesso de Alix deve-se, quanto a nós, à circunstância de relatar as peripécias de um jovem gaulês na Roma de Júlio César e à arte de narrar de Martin, construindo episódios em que perpassa sempre algo de inusitado. Acresce um grande rigor de investigação, que fez do autor um nome também respeitado pelos historiadores. Características que tentaremos desenvolver quando tratarmos do Alix canónico.
Com dezenas de milhões de álbuns vendidos, as histórias prosseguem, correndo ao lado de uma sequela, Alix Senator (desde 2012), e uma prequela Alix – Origens (2019), este num estilo gráfico inspirado pela manga japonesa, que nos parece muito bem, porém dividindo a crítica. Sempre defendemos que a continuação das séries quando o autor original se retira não deveria cingir-se a uma simples cópia da matriz, mas a partir dela evoluir no que respeita ao argumento, sem traições ao espírito do universo tratado; e quanto aos desenhos, quanto mais marcadamente o novo autor assumir a sua personalidade, maior é o risco, mas também o interesse pelo desafio.
O álbum de hoje, Alix Senator – 1. As Águias de Sangue, vai por aí. Thiery Démarez (Raincy, 1971) afasta-se do estilo da “escola de Bruxelas”, a linha clara, procurando, no entanto, uma reconstituição historicamente credível a exemplo do Alix canónico; se a atitude nos agrada por princípio, a verdade é que o seu estilo, por vezes hiper-realista, não nos preenche. O mesmo não se dirá do argumento de Valérie Mangin (Nancy, 1973), historiadora de formação, especializada em história institucional, e com uma obra extensa de BD, revelando-se conhecedora não só da história de Roma, como do universo de Alix e da arte narrativa específica da BD.
O herói gaulês tornado político é, dobrados os cinquenta anos, senador no início do governo de Augusto, de quem é cunhado. Estamos em 12 a.C., preparando-se o imperador para a investidura como pontífice máximo. O cadáver do anterior dignitário, rival de Augusto, fora encontrado esventrado, os porcos a chafurdarem-lhe as entranhas, diz-se que atacado pelo próprio Júpiter sob a forma de águia. Pouco depois será a vez de Agripa, genro do imperador e seu sucessor designado, a conhecer a mesma sorte, numa conspiração urdida não se sabe por quem. Alix – agora na companhia de Tito, fruto da união com Lídia Octávia, irmã de Augusto, e Khephren, filho do inseparável companheiro egípcio Enak –, procurará perceber o que está por detrás do sucedido, num jogo complexo de incertezas e sombras que recaem sobre a narrativa. O maduro senador Alix vai ao encontro do jovem combativo de outrora.
Alix Senator
1. As Águias de Sangue
Autor Valérie Mangin
Desenho Thierry Démarez
Edição Gradiva, Lisboa, 2021
BDTECA
Abecedário: C de Calvin and Hobbes (Bill Watterson, 1985). Há um arco de volta perfeita que transporta os sonhos feéricos do Pequeno Nemo 80 anos para a frente, ao encontro do sonhar acordado de Calvin, seu par na marca que imprimiu na história dos comics e na memória de milhões. Deixar a mente voar nos bancos da escola, quando não nos interessa nada do que a professora está para ali a dizer – quem nunca foi o astronauta Spiff ou o Homem Estupendo?… Watterson é um mago que nos abriu os portais da infância, partilhando connosco o segredo que só ele e Calvin conhecem: na verdade, Hobbes é um tigre a sério.
Discurso direto: Yann, atual argumentista de Thorgal, foi o último a trabalhar com Rosinski, antes de o mestre polaco se retirar. À pergunta sobre como se processava a relação de trabalho entre ambos, Yann responde, em entrevista dada ao mensário L’Immanquable, em 2018: «Grzegorz é uma pessoa muito agradável. […] Procedi da mesma maneira que Jean Van Hamme, ou seja, forneci um argumento que ele compôs segundo o seu critério.» Muitas vezes o argumentista faz o plano de cada prancha, o découpage, dando pouca margem ao desenhador. Com Rosinski, não por capricho, mas por talento desmesurado, tal não seria possível.