Gangrenar ou remodelar?


Gangrena – Extinção da ação vital em parte determinada, seguida de decomposição e apodrecimento.


Apesar da Constituição e da Lei, o exercício político é uma expressão cívica com ampla margem de manobra ou arbitrariedade. Sendo um exercício para o qual confluem diversos interesses, condicionantes e circunstâncias, há momentos em que os protagonistas podem ser tomados pelos interesses próprios, parciais, ou pelas dinâmicas que surjam e se imponham como fatores de entrave à função. Tratando-se do exercício do poder ou do posicionamento para a sua conquista, havendo quem sustente que a mudança de protagonistas radica sobretudo na sua perda, parece evidente que ao longo dos últimos anos sem afirmaram duas dinâmicas contrárias, uma de vale tudo, em que os fins justificam todos os meios, e outra de serviços mínimos, na expectativa que a ação negativa do poder acabe por levar à sua degradação e à alternância política. São dinâmicas diferentes que assentam numa certa adesão ao imobilismo perante os factos e as evidências, totalmente contrária a uma sociedade cada vez mais agitada, volátil, sem memória e com sinais de deslaço social e de confiança nas instituições democráticas.

A ação política, na sua configuração ou na materialização, deve obedecer ao interesse geral, não aos interesses individuais, de grupo ou de expressões parciais dos valores em presença. É uma evidência que a democracia ganhava com uma oposição política com outro nível de consistência e com um escrutínio cívico e mediático sério, sem tribalismos de grupo ou agendas de afirmação nas vendas. A caminho das cinco décadas não temos nada disso e as redes sociais enfunadas pelo exercício irresponsável da liberdade de expressão (leviano e replicador), pelos grupos de interesses e pelos “ismos” da praça são palco de fenómenos que têm de ser contrariados pela assertividade, rigor e explicação do exercício das funções políticas públicas.

Há muita margem de manobra e de arbítrio da política, mas não é aceitável entregar tantos argumentos para a degradação do ambiente geral e para a afirmação dos “ismos” na sociedade portuguesa. Não há habilidade política ou malabarismo que consiga reverter os impactos no funcionamento da democracia, nas condições de governabilidade e no ambiente social.

A política está cada vez mais parecida com o futebol e até mesmo a afirmação do primeiro-ministro de que “não está prevista nenhuma remodelação no horizonte” soa à proclamação de confiança no treinador pelo presidente do clube na semana que antecede o seu despedimento pelos resultados obtidos. Mas, afinal, deve ou não haver remodelação?

Esta é uma daquelas matérias de total arbítrio do primeiro-ministro, sobretudo quando conta com o Presidente da República que temos e com as condições parlamentares que sustentam o Governo desde 2015. Pelo interesse geral, parece evidente que seria aconselhável remodelar, mas o interesse particular pode prevalecer. Em condições normais, uma remodelação governamental significa um novo impulso, sangue novo e um tempo de estado de graça para os novos titulares, mas isso implica que o recrutamento qualifique as soluções, que o exercício político emergente seja na realidade e na perceção das pessoas portador de energia, acerto e sentido. Uma remodelação em circuito fechado não acrescenta nada para a população, mas pode reforçar a coordenação da ação política, amiúde bloqueada pelo perfil da liderança e pela inexistência de cadeia de comando alternativa com ascendente sobre os restantes.

É preciso estancar a gangrena de degradação do ambiente que existe porque esta é lesiva da democracia. Depois de ter promovido uma solução política de Governo que posicionou a esquerda à esquerda no arco da governação, o atual exercício político está a dar um contributo muito importante para a consolidação social e eleitoral da extrema-direita. A nada ser feito, depois de patrono da esquerda, António Costa será o patrono da afirmação eleitoral da extrema-direita, desde logo, nas eleições autárquicas. Mesmo com atropelos das regras de sempre, de erros e de trapalhadas na preparação das autárquicas, o risco de não ser o mais votado nos Municípios e nas Freguesias é residual, mas a degradação do ambiente por via da gangrena da governação pode contaminar as eleições locais e os resultados dos candidatos do partido. Portanto, há uma razão de interesse geral e uma razão particular. Para quem está no poder central, só as legislativas podem interessar, mas os danos nos pilares e no funcionamento democrático deveriam ser uma preocupação central.

Acresce que remodelar mais tarde, depois das autárquicas tem ainda um problema para o esforço de recuperação da pandemia que se impõe. Se remodelar agora, quem entra tem tempo para entrar nos dossiers e estar preparado para materializar a bazuca na segunda metade do ano, para fazer chegar o dinheiro à economia, às empresas e às pessoas. Senão é preciso dar mais tempo ao tempo, algo de que não dispomos.

Por último, é preciso ter muita atenção ao cansaço pandémico e às dificuldades das pessoas, algumas decorrentes dos impactos da pandemia na economia. Há o risco de se gerar uma repulsa popular similar à que existiu em relação às medidas da troika, em que a intolerância dos cidadãos com o exercício político, por maiores que sejam as narrativas das tribos políticas, se aproxima de valores negativos, sendo implacáveis com tudo e com todos. A governabilidade das instituições democráticas, no sentido da construção de uma sociedade com equilíbrios básicos, coesão e integração, pode ser afetada pela persistência dos erros e dos casos na ação governativa.

Não havendo paralelo em democracia das condições do exercício governativo no quadro da emergência de saúde pública, pelo desgaste e pela imprevisibilidade inicial, deixar que a degradação prossiga a gangrena é transformá-la em mais um problema por resolver. Não é bom para democracia, mas só o primeiro-ministro pode fazer alguma coisa.

 

NOTAS FINAIS

INFEÇÃO. É uma espécie de estirpe lusa de bom aluno, passar do 8 para o 80 em vários setores, sem cuidar de que na aplicação de soluções radicais existem impactos relevantes nas pessoas, nas empresas e na competitividade nacional, que outros Estados Membros não aplicam. No limite esta aplicação sem sentido de equilíbrio pode levar à destruição de projetos importantes para a economia nacional e de centenas de postos de trabalho. Outros Estados membros da União Europeia agradecem.

 

INFLAMAÇÃO. A deriva proibicionista no quadro da pandemia está cada vez mais esgotada, por cansaço e saturação das pessoas. O registo agora deveria ser o de se poder fazer, mas com regras, as de sempre, ainda que com a vacina, a par da promoção e valorização do certificado digital como pressuposto do regresso à normalidade possível.

 

Escreve à segunda-feira


Gangrenar ou remodelar?


Gangrena – Extinção da ação vital em parte determinada, seguida de decomposição e apodrecimento.


Apesar da Constituição e da Lei, o exercício político é uma expressão cívica com ampla margem de manobra ou arbitrariedade. Sendo um exercício para o qual confluem diversos interesses, condicionantes e circunstâncias, há momentos em que os protagonistas podem ser tomados pelos interesses próprios, parciais, ou pelas dinâmicas que surjam e se imponham como fatores de entrave à função. Tratando-se do exercício do poder ou do posicionamento para a sua conquista, havendo quem sustente que a mudança de protagonistas radica sobretudo na sua perda, parece evidente que ao longo dos últimos anos sem afirmaram duas dinâmicas contrárias, uma de vale tudo, em que os fins justificam todos os meios, e outra de serviços mínimos, na expectativa que a ação negativa do poder acabe por levar à sua degradação e à alternância política. São dinâmicas diferentes que assentam numa certa adesão ao imobilismo perante os factos e as evidências, totalmente contrária a uma sociedade cada vez mais agitada, volátil, sem memória e com sinais de deslaço social e de confiança nas instituições democráticas.

A ação política, na sua configuração ou na materialização, deve obedecer ao interesse geral, não aos interesses individuais, de grupo ou de expressões parciais dos valores em presença. É uma evidência que a democracia ganhava com uma oposição política com outro nível de consistência e com um escrutínio cívico e mediático sério, sem tribalismos de grupo ou agendas de afirmação nas vendas. A caminho das cinco décadas não temos nada disso e as redes sociais enfunadas pelo exercício irresponsável da liberdade de expressão (leviano e replicador), pelos grupos de interesses e pelos “ismos” da praça são palco de fenómenos que têm de ser contrariados pela assertividade, rigor e explicação do exercício das funções políticas públicas.

Há muita margem de manobra e de arbítrio da política, mas não é aceitável entregar tantos argumentos para a degradação do ambiente geral e para a afirmação dos “ismos” na sociedade portuguesa. Não há habilidade política ou malabarismo que consiga reverter os impactos no funcionamento da democracia, nas condições de governabilidade e no ambiente social.

A política está cada vez mais parecida com o futebol e até mesmo a afirmação do primeiro-ministro de que “não está prevista nenhuma remodelação no horizonte” soa à proclamação de confiança no treinador pelo presidente do clube na semana que antecede o seu despedimento pelos resultados obtidos. Mas, afinal, deve ou não haver remodelação?

Esta é uma daquelas matérias de total arbítrio do primeiro-ministro, sobretudo quando conta com o Presidente da República que temos e com as condições parlamentares que sustentam o Governo desde 2015. Pelo interesse geral, parece evidente que seria aconselhável remodelar, mas o interesse particular pode prevalecer. Em condições normais, uma remodelação governamental significa um novo impulso, sangue novo e um tempo de estado de graça para os novos titulares, mas isso implica que o recrutamento qualifique as soluções, que o exercício político emergente seja na realidade e na perceção das pessoas portador de energia, acerto e sentido. Uma remodelação em circuito fechado não acrescenta nada para a população, mas pode reforçar a coordenação da ação política, amiúde bloqueada pelo perfil da liderança e pela inexistência de cadeia de comando alternativa com ascendente sobre os restantes.

É preciso estancar a gangrena de degradação do ambiente que existe porque esta é lesiva da democracia. Depois de ter promovido uma solução política de Governo que posicionou a esquerda à esquerda no arco da governação, o atual exercício político está a dar um contributo muito importante para a consolidação social e eleitoral da extrema-direita. A nada ser feito, depois de patrono da esquerda, António Costa será o patrono da afirmação eleitoral da extrema-direita, desde logo, nas eleições autárquicas. Mesmo com atropelos das regras de sempre, de erros e de trapalhadas na preparação das autárquicas, o risco de não ser o mais votado nos Municípios e nas Freguesias é residual, mas a degradação do ambiente por via da gangrena da governação pode contaminar as eleições locais e os resultados dos candidatos do partido. Portanto, há uma razão de interesse geral e uma razão particular. Para quem está no poder central, só as legislativas podem interessar, mas os danos nos pilares e no funcionamento democrático deveriam ser uma preocupação central.

Acresce que remodelar mais tarde, depois das autárquicas tem ainda um problema para o esforço de recuperação da pandemia que se impõe. Se remodelar agora, quem entra tem tempo para entrar nos dossiers e estar preparado para materializar a bazuca na segunda metade do ano, para fazer chegar o dinheiro à economia, às empresas e às pessoas. Senão é preciso dar mais tempo ao tempo, algo de que não dispomos.

Por último, é preciso ter muita atenção ao cansaço pandémico e às dificuldades das pessoas, algumas decorrentes dos impactos da pandemia na economia. Há o risco de se gerar uma repulsa popular similar à que existiu em relação às medidas da troika, em que a intolerância dos cidadãos com o exercício político, por maiores que sejam as narrativas das tribos políticas, se aproxima de valores negativos, sendo implacáveis com tudo e com todos. A governabilidade das instituições democráticas, no sentido da construção de uma sociedade com equilíbrios básicos, coesão e integração, pode ser afetada pela persistência dos erros e dos casos na ação governativa.

Não havendo paralelo em democracia das condições do exercício governativo no quadro da emergência de saúde pública, pelo desgaste e pela imprevisibilidade inicial, deixar que a degradação prossiga a gangrena é transformá-la em mais um problema por resolver. Não é bom para democracia, mas só o primeiro-ministro pode fazer alguma coisa.

 

NOTAS FINAIS

INFEÇÃO. É uma espécie de estirpe lusa de bom aluno, passar do 8 para o 80 em vários setores, sem cuidar de que na aplicação de soluções radicais existem impactos relevantes nas pessoas, nas empresas e na competitividade nacional, que outros Estados Membros não aplicam. No limite esta aplicação sem sentido de equilíbrio pode levar à destruição de projetos importantes para a economia nacional e de centenas de postos de trabalho. Outros Estados membros da União Europeia agradecem.

 

INFLAMAÇÃO. A deriva proibicionista no quadro da pandemia está cada vez mais esgotada, por cansaço e saturação das pessoas. O registo agora deveria ser o de se poder fazer, mas com regras, as de sempre, ainda que com a vacina, a par da promoção e valorização do certificado digital como pressuposto do regresso à normalidade possível.

 

Escreve à segunda-feira