História do cerco de Lisboa


Ao contrário do que sucede no Brasil, a Ordem dos Advogados não pode em Portugal requerer a fiscalização da constitucionalidade das leis. Infelizmente nenhuma das entidades com competência para o efeito tomou qualquer iniciativa de fiscalização da constitucionalidade destas sucessivas medidas atentatórias de direitos fundamentais.


Através da Resolução do Conselho de Ministros 76-A/2021, de 17 de Junho, foi estabelecida uma proibição de circulação de e para a área metropolitana de Lisboa no passado fim-de-semana, a qual se traduziu assim na colocação sob cerco de três milhões de cidadãos. É evidente que essa situação se traduziu numa suspensão do direito constitucional de deslocação dessas pessoas, que a Constituição reconhece no seu art. 44º, uma vez que os residentes nessa área metropolitana deixaram de se poder deslocar livremente no território nacional, só o podendo fazer naquela área restrita.

A suspensão desse direito constitucional só poderia ocorrer no âmbito do estado de emergência, conforme exige o art. 19º da Constituição, o que não é o caso. Mesmo que esta situação fosse considerada uma simples restrição do direito de deslocação, a mesma teria que resultar de uma lei do parlamento ou decreto-lei autorizado, conforme exigem os arts. 18º e 165º, nº1, b), da Constituição e nunca de uma simples resolução do governo, que constitui um mero regulamento, não sujeito a autorização parlamentar nem a promulgação pelo Presidente da República. Ora, é manifesto que três milhões de pessoas não podem ser colocadas sob cerco por via de um simples regulamento do Governo.

Foi invocado pelo próprio Governo que estaria legitimado a aprovar esta resolução por via da Lei de Bases da Protecção Civil (Lei 27/2006, de 3 de Julho) e da Lei de Bases da Saúde (Lei 95/2019, de 4 de Setembro). Em primeiro lugar, o art. 112º, nº5, da Constituição proíbe expressamente as leis de criarem novas categorias de actos legislativos ou atribuir a actos de outra natureza a função de integrar os seus preceitos, pelo que nunca uma lei poderia permitir que através de uma resolução do governo fossem colocadas três milhões de pessoas sob cerco. Mas a verdade é que nem sequer essas lei autorizam semelhante interpretação. Em primeiro lugar, o art. 3º da Lei de Bases da Protecção Civil refere que a mesma se aplica a acidentes graves ou a séries de acidentes graves, sendo uma pandemia uma realidade completamente distinta. E a Base 34 da Lei de Bases da Saúde limita-se a prever que em caso de emergência de saúde pública o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de excepção indispensáveis, em nada autorizando a emissão pelo governo de resoluções a restringir os direitos fundamentais das pessoas. Temos assim que o Governo apresenta como fundamentação jurídica de uma medida claramente inconstitucional a aplicação conjugada de duas leis, quando nenhuma delas a permite.

O art. 281º, nº2 da Constituição prevê que a constitucionalidade das leis pode ser fiscalizada pelo Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Provedora de Justiça, Procuradora-Geral da República e um décimo dos Deputados à Assembleia da República. Ao contrário do que sucede no Brasil, a Ordem dos Advogados não pode em Portugal requerer a fiscalização da constitucionalidade das leis. Infelizmente nenhuma das entidades com competência para o efeito tomou qualquer iniciativa de fiscalização da constitucionalidade destas sucessivas medidas atentatórias de direitos fundamentais. O Presidente da República, que não pretende voltar a decretar o estado de emergência declarou que o Governo “agiu de acordo com a sua competência”, parecendo assim que o Governo tem constitucionalmente competência para cercar qualquer parcela do território nacional através de um simples regulamento.

Utilizei para título desta crónica o do romance de Saramago, História do Cerco de Lisboa. Mas a situação começa antes a parecer-se antes com a descrita no seu romance Ensaio sobre a Cegueira, que demonstra até onde podem ir os excessos do poder político perante uma epidemia. Ora, a única coisa que pode limitar eventuais excessos do poder político é a constituição do país, sendo que o seu sistemático desrespeito através da criação de sucessivos precedentes perigosos, pode levar a que a mesma se transforme numa constituição semântica, que ninguém aplica. Era o que sucedia com a constituição do Estado Novo, cujo art. 8º reconhecia direitos e garantias individuais aos cidadãos, os quais eram, porém, excepcionados nos seus parágrafos e nunca aplicados. Caso isso venha a suceder, o nosso Estado de Direito constitucional será a principal vítima desta pandemia.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990